Prólogo

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Uma Única Barreira

Setembro de 1886.

Embarco no navio. Deixo para trás minha infância, tendo somente comigo meu nome. Malika. A única coisa que irá me fazer lembrar de meu lar. Meu nome.
Lá dentro, como era de se esperar, somos amarrados uns aos outros. Para a minha sorte, em meu navio se encontra minha mãe, minha tia e boa parte da minha tribo, composta apenas de mulheres.
Por esse motivo, não sei o que é me apaixonar. Tentei de todas as maneiras descobrir por mim mesma o que é isso, mas só soube pelas palavras da minha mãe e de minha tia.
Por sorte fico perto da mesma. Ela é sete anos mais velha do que eu. Tem vinte e cinco anos e nos damos muito bem.

- Como acha que é o Brasil? - pergunta.

- Quente.

- Pior que nosso lar?

- Por favor não toque nesse assunto e muito menos diga essa palavra - me mexi tentando inultimente ficar mais confortável.

- Olha eu sei que está triste. Todas nós estamos. Mas você deveria ser grata. Fomos colonizadas por portugueses sabendo falar a língua dos mesmos...

- E O QUE ISSO VAI MUDAR? CONTINUAREMOS ESCRAVAS! E-S-C-R-A-V-A-S! - explodi. Lana tentava ver o lado positivo de tudo.
Ela parecia não entender que nós não éramos mais quem já fomos.
Nossa vida mudaria drasticamente daqui para frente. E nada, nada que ela tentasse fazer iria mudar isso.
Lana não disse mais nada e eu também não estava afim de falar.

20 de Setembro de 1886.

Fazia vinte dias que estava naquele barco e não dava uma palavra. Um terço da minha tribo já havia morrido. A dor que senti inicialmente foi imensa, mais tinha que me acostumar com isso querendo ou não.

A dieta era basicamente peixes absurdamente salgados, bolachas de água e sal e uma água salobra.
Eu dormia mais do que qualquer coisa. Tinha medo de dormir, pois tinha medo de morrer, mas quando não aguentava de cansaço, pegava num sono e acordava bruscamente algumas horas depois.

Essa era minha rotina. Comer o pouco que tinha e dormir o pouco que conseguia. Tudo era pouco : Noites dormidas, dias sem cansaço, conversas, comida...
Só duas coisas não eram poucas e não seriam poucas nem tão cedo : a dor e a saudade.

25 de Setembro de 1886.

Não aguentava mais aquilo. Assim que acordei das minha poucas horas de sono hoje vi minha mãe doutro lado do navio e ela não havia acordado. Depois de um tempo, alguns tripulantes chegaram com a comida e ficaram olhando para ela.
Mexeram com ela, chutaram-na e diziam coisas do tipo : " O quê está acontecendo com ela" " Acorde! ".
Então, eles se entreolharam e constataram o que eu mais temia. Estava morta.
Nada de muito serimorial foi feito. Seu corpo magro nos braços de um homem. Seu corpo magro jogado. Seu corpo magro no mar.

Olhei para Lana e não foi preciso dizer uma palavra. Seus olhos diziam tudo.
Senti que iria chorar. Não queria demonstrar nada na frente daqueles trogloditas brancos, mas não era mais uma mulher da tribo, era minha mãe. Não aguentei e desabei. Me deitei no colo de Lana que me falava palavras de consolo enquanto massageava meu cabelo.

Era difícil se acalmar, quando a pessoa que lhe está acalmando, está com uma aparência pior que a sua.
Nesse dia, perdi uma mãe, ela, uma irmã, o céu, ganhou mais um anjo.
Voltei a falar com Lana. Não com palavras. Apenas com gestos e olhares.
Nossos laços se fortaleceram agora. Não éramos apenas duas escravas num navio. Éramos duas escravas que tinham uma a outra.

Lana não via mais o lado positivo das coisas naquele dia. Pelo contrário, ela parecia achar que aquele dia não podia ficar pior.

25 de Outubro de 1886.

Não tinha noção de tempo ali. Me sentia presa em um só lugar. Como se estivesse pregada ali naquele navio, era como parcialmente eu estava já que não podia me levantar.

O cheiro de fezes e urina invadia minhas narinas de uma forma desagradável. A minha ânsia de vômito era grande, somando com a maresia sofrida todos os dias, vomitava assim que acordava.
Mais uma coisa para temer naquele lugar de desespero : morrer sufocada pelo próprio vômito.

Olhei para Lana esperando a sua morte. Não que eu queresse isso, mas já estava traumatizada.
Conheci uma menina de minha idade no navio, o que me fazia diminuir as conversas com Lana.
Lori era bem amigável e muito menos expressiva que eu.
Nossas conversas variavam bastante e amava os poucos segundos que quando estava conversando com ela, esquecia que era uma escrava.

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