9 - Uma luz

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A carruagem balançava sem para enquanto suas enormes rodas giravam sobre os montes de neve. Eu sentia os solavancos toda vez que Guilherme me pressionava um pouco mais perto do seu corpo. A qualquer momento, se ele me pressionasse mais, nossos corpos iam se fundir, eu tinha certeza disso. Um último solavanco forte que nos jogou para frente me fez puxar a cortina que estava fechada. Olhei para fora e vi que tínhamos chegado ao destino final. A enorme pedra lisa estava ali.

Assim que a atravessamos, do outro lado estava papai, me esperando com uma carruagem. Entrei em silêncio e esse foi o modo que fiquei por dois dias seguidos depois da minha chegada. Eu não conseguia falar com ninguém, por mais que todo mundo tentasse. Mal passava alguma comida pela minha garganta e tudo que traziam para eu comer voltava intocado.

Eu estava agindo como se Declan já estivesse morto. Ele ainda não estava. Nenhuma noticia além da doença do Rei de Squamaeigrae havia chegado ao castelo, então isso queria dizer que a situação continuava a mesma. Ele podia não estar morto, mas eu sentia como se estivesse. Algumas vezes, durante a madrugada, quando eu acordava sozinha no meu quarto, era como estar de voltar àqueles dias que eu havia ficado doente e Declan cuidava de mim durante a noite. Eu o vi parado ao lado da minha cama, me observando.

Claro que eu sabia que aquele não era o Declan de verdade, apenas uma parte dele, ou uma projeção dele feita pela minha mente. Não importava. Toda vez que eu o via, meus olhos se enchiam de lágrimas que corriam sem o menor esforço pelo meu rosto. Ele nunca falava nada, apesar de eu implorar para que ficasse vivo, implorar para que não me deixasse, não agora que as coisas pareciam estar indo tão bem em todos os aspectos da minha vida; eu implorava para que não morresse e levasse parte de mim com ele.

Mas nada disso parecia fazer diferença, porque ele apenas me encarava com aqueles olhos verdes e nenhum som saia dos seus lábios. Era frustrante. Ao menos, havia o conforto que eu podia agarrar sua mão e sentir como se aquele fosse ele mesmo, como se seu corpo estivesse presente dentro do cômodo comigo.

Ninguém mais entrava no meu quarto desde o dia que voltamos de Squamaeigrae, exceto, é claro, por Red que trazia e levava minhas bandejas intocadas. Guilherme havia tentado ficar comigo após o retorno para o castelo, mas eu tinha deixado claro o que queria, expressando apenas o meu silêncio. Eu sabia que estava sendo difícil para ele, não era como se eu não me importasse com meu namorado, eu apenas precisava desse tempo de luto sozinha.

Eu ouvia quando alguém se aproximava no corredor e parava na minha porta por alguns instantes e depois voltava a andar com passos hesitantes. Era fácil distinguir de quem era os passos. O salto de tia Bea tocando o chão toda às vezes em que ela cruzava o corredor, o som baixo do voltar caminhar dela me partia o coração. Tia Bea sempre havia sido tão boa em cuidar de mim, como uma segunda mãe, mas eu não podia deixar ela se aproximar nesse momento. Algo dentro de mim estava acontecendo e dizia que isso era entre eu e eu.

Os passos confiantes de papai eram sempre os que mais me assustavam. Todo o momento em que eu via seus sapatos escurecerem um ponto de luz embaixo da fresta da porta, eu imaginava que ele iria arrebentar a porta e entrar, mesmo que eu não o quisesse aqui. Papai dificilmente aceitava um não com facilidade. Mas, então, eu ouvia seu suspiro cansado e seus passos fortes voltavam a ecoar no chão de pedra do corredor.

Guilherme. Ah, Guilherme me partia o coração! Eu ouvia quando ele se aproximava lentamente da porta, podia até mesmo ouvir quando ele se encostava de leve na madeira grossa. Conseguia deslumbrar sua imagem na minha mente, e isso, doía.

Ele era sempre o que ficava mais tempo parado. Ele entendia o que eu estava passando, por isso, eu sabia que ele não estava fazendo nenhuma pressão para que o deixasse entrar e tentar falar comigo. Eu conseguia imaginar sua imagem toda vez que parava na frente da minha porta. Os olhos caídos, com um pouco de olheiras, o cabelo bagunçado com algumas mechas caindo na testa, os ombros curvados quando ele encostava a testa contra a madeira da porta como se pudesse me ver, e então, depois de um tempo seus passos mais silenciosos se afastavam.

Coração de Sangue - livro 2 da série Coração AzulOnde histórias criam vida. Descubra agora