21 - Filme de terror

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Após Damen partir, o sono começou a pesar nos meus olhos e eu me entreguei com prazer, infelizmente, ele não foi tão bom quando o esperado. Meu subconsciente estava agitado; imagens de Thales cercavam meu cérebro, mas não eram imagens que eu tinha guardadas comigo, eram memórias de outra pessoa. Como se as memórias de Thales estivesse se tornando parte das minhas. Eu via um Thales pequeno treinando truques simples de magia, seus cabelos loiros colados sobre a testa por causa do grande esforço que o fazia suar, eu podia ver quando a magia não funcionava como ele queria e a grande decepção nos olhos da criança e dos adultos que a observava.- Você é uma decepção para nós, Thales. – ouvi a voz de um homem falar para a pequena criança que mais uma vez havia falhado em um simples feitiço. – Eu e sua mãe estamos, completamente, decepcionados com você. Você é uma vergonha para nossa família. A voz do homem que eu escutava era do pai de Thales, e meu coração doeu em pensar em uma criança inocente ouvindo isso dos próprios pais. Eram palavras fortes para se usar com crianças.Duas mãos me agarraram pelos ombros no meio do meu sono me fazendo acordar aterrorizada. Meu coração se acalmou quando vi que as mãos que me seguravam eram de Guilherme. Deixei meu coração diminuir o ritmo e então respirei fundo olhando-o preocupada. - O que você está fazendo aqui? – indaguei baixinho com medo de mamãe poder nos ouvir do quarto ao lado. - Você também está tendo esses sonhos? – perguntou ainda me segurando pelos ombros e com a voz falhada.- Que sonhos?- Com uma criança, uma criança loira. – respondeu desesperado.- Guilherme, se acalme. Explique-me melhor sobre esse sonho. Que criança loira?- Eu não sei quem é a criança. Eu só a vejo praticando magia sem parar, errado diversas vezes e um homem a repreendendo por errar. – ele senta na cama ao meu lado e me olha com os olhos preocupados, eu podia ver um pouco de medo neles.- Um garoto? - Sim, um garoto loiro de cabelos bagunçados. Você também está sonhando com ele?- É Thales. – respondi e vi seus olhos se arregalarem de surpresa. – Eu estava sonhando com ele antes de você me acordar.- Eu sabia que isso não era apenas um sonho. O que é isso? Por que estamos sonhando com Thales? - Tenho que contar algo. – suspirei derrotada desviando o olhar.Foi difícil falar, mas dessa vez não deixei nenhum detalhe de fora. Contei sobre Ramon, contei sobre Thales. Contei como eu conseguia ver Thales e de como eu havia o enfrentado na rua naquela mesma noite, da conclusão que havia chegado. Do laço de sangue forjado entre nós.Quando terminei, ele estava em completo silêncio apenas encarando meu rosto como se eu estivesse ficando louca. Ele parecia tão chocado com tudo isso que me questionei se havia feito o certo ao contar. Era informação demais com o que lidar de uma vez só. Eu mesma tinha dificuldade em lidar com toda a história. Ele já tinha tantos problemas envoltos da questão do exílio que contar mais problemas meus só iriam piorar a situação, mas ele merecia saber a verdade.- Por que você só está me contando isso agora? – foi à primeira coisa que ele disse depois de um tempo que pareceu eterno me encarando.- Não queria deixar você mais preocupado do que já está.- Mais preocupada? Alicia, você tem noção de como eu estava me sentindo todo esse tempo? Eu achei que estava ficando louco! Achei que essas sensações estranhas de que algo estava errado com você eram coisas da minha cabeça por causa do tempo que estamos tendo que passar longe, achei que fosse meu cérebro gritando de medo de perder você outra vez. E você não queria me preocupar mais? – ele estava praticamente gritando.- Fale baixo, mamãe pode ouvir você. – pedi me sentindo a pior pessoa do mundo.- Coloquei um feitiço de silêncio no quarto. – descartou meu pedido com um aceno de mão e levantou da cama começando a andar de um lado para o outro, pensativo.Fiquei observando enquanto ele andava de um lado para o outro sem nenhuma vez se virar para mim. Eu não tinha muito que falar depois de ouvir o que ele disse. Eu estava me sentindo à pior pessoa do mundo por ter escondido isso por tanto tempo. Eu estava concentrada em me sentir um lixo quando ele se virou na minha direção e me encarou mais calmo.- Como podemos romper esse laço de sangue forjado? – perguntou direto.- Eu não sei. Eu mal consigo entender o que é isso de verdade. Damen diz que não é possível entre pessoas de espécies diferentes e Thales é diferente de mim.- Não muito. – ele respondeu e o encarei confusa.- O que você quer dizer com não muito?- Ele pode ser um Imortal, mas a magia dele surgiu do mesmo modo que a sua. Estava adormecida no sangue dele.- Como você sabe disso?- Tive mais do que um sonho com aquela criança. – respondeu e pude ver seu corpo tremer de leve com a lembrança dos sonhos.- Damen disse que não é possível quebrar um laço de sangue, a única coisa que pode rompê-lo é a morte. E eu já morri e ainda estou ligada a Thales. - Tem que haver alguma maneira. A ligação de vocês só foi feita quando os dois estavam morrendo, tem que ter algo que desfaça. – ele voltou a andar de um lado para o outro no quarto.Fique em silêncio tentando entender mais sobre tudo o que estava acontecendo. Thales era um Imortal, teoricamente, tinha que ser difícil matá-lo, mas eu consegui apenas acertando seu corpo com a espada. Eu deveria morrer fácil, mas ao que parece meu coração não deixava de bater de forma alguma. Era mesmo meu Coração Azul que estava me mantendo viva ou era outra coisa? E se quando eu me liguei a Thales pelo sangue nossos papeis se invertesse? Se eu estivesse com a imortalidade dele e ele tivesse adquirido minha mortalidade? Eram tantas perguntas que minha cabeça já estava começando a doer. Ouvi um som vindo de fora da minha janela e olhei espantada para Guilherme que havia parado de andar. Ele ficou parado me olhando e olhando novamente para a janela parecendo decidir o que fazer. Antes que ele pudesse decidir, joguei as cobertas para o lado e abri a janela. Pude sentir quando ele se posicionou atrás de mim e espiou por cima do meu ombro.Meu corpo começou a suar repentinamente quando me dei conta de que não havia nada do lado de fora, até porque estávamos no segundo andar e não havia sacada na minha janela, não teria como ter algo nela. Porém, a sensação de ter algo errado estava dominando todo meu corpo e vi que Guilherme também estava sentindo isso. Olhei em todas as direções da rua e tudo parecia calmo como sempre. Afastei-me da janela e saí do quarto. - Aonde você vai? – perguntou Guilherme correndo atrás de mim e sussurrando para que mamãe não o ouvisse. - Descobrir o que foi isso. – respondi e saí da casa.Na frente da casa tudo parecia normal, nada indicava que alguma coisa tinha tocado minha janela, mas a sensação de algo errado não me deixava de jeito nenhum. Olhei para todos os lados da rua e não vi nada. Olhei novamente quando percebi um movimento pelo canto do olho, mas era como se não tivesse nada ali. Deveria ter sido minha imaginação.Eu estava prestes a voltar para dentro de casa quando outra vez vi algo se movendo na minha visão periférica. Olhei para Guilherme e percebi que ele também havia visto algo. Corri em direção ao movimento e Guilherme veio atrás. Quando cheguei ao local onde eu havia visto algo se mexer, vi um garoto loiro de costas para nós. Thales.Comecei a me aproximar devagar e o garoto virou na nossa direção. Ele sorriu do mesmo modo como Thales sorria - o sorriso que me causava arrepios atualmente. Senti Guilherme pegar minha mão e entrelaçar nossos dedos. O garoto continuou sorrindo e então saiu correndo. Encarei Guilherme, confusa, e corremos atrás do menino loiro.O garoto corria sem parar, eu não sabia para onde ele estava indo, ele entrava em ruelas e atravessava algumas grades obrigando Guilherme usar magia para que passássemos. O dia já estava clareando quando finalmente alcançamos a criança. Meu coração estava em um ritmo acelerado e eu sentia dores da panturrilha, fazia muito tempo desde a última vez que eu havia me exercitado tanto. Um Thales garoto estava parado, sorrindo para nós como se correr por uma hora não tivesse nenhum efeito sobre ele, e eu suspeitava de que não tinha. Ele se parecia demais com um fantasma. O menino outra vez sorriu para nós e uma esfera vermelha surgiu nas suas costas, ele se virou para entrar e olhei desconfiada para Guilherme querendo saber o que fazer. Ele deu de ombros e me puxou na direção da esfera.Meu coração falhou uma batida quando me dei conta de onde estávamos. Olhei envolta procurando algo que me garantisse que eu estava me confundido, que eu não estava onde eu pensava estar. O lugar era lindo como na minha lembrança. O céu estava com o mesmo tom de cinza e o cheiro de mato molhado não me deixava errar onde eu estava. Era o campo que eu havia visto em uma manhã na janela do meu quarto, sentindo a chuva no meu rosto.Fechei os olhos respirando fundo aquele aroma de campo molhado com flores e sorri para mim mesma sem perceber.- Que lugar é esse? – perguntou Guilherme me observando. - Não sei ao certo, mas já estive aqui. – respondi abrindo os olhos e olhando mais uma vez envolta do campo.- Quando? - Eu não sei. – comecei a andar por meio as flores e fiquei observando cada detalhe daquele lugar maravilhoso. Senti quando a primeira gota de chuva caiu e tocou a ponta do meu nariz.Guilherme olhou envolta preocupado e começou a me seguir por entre as flores. Aquele lugar me dava uma sensação de paz, me deixava relaxada de uma forma que eu não havia estado desde que acordei no campo de batalha. Sentei-me entre as flores deixando as folhas delas roçarem na minha pele e sentindo as primeiras gotas de chuva cair sobre o meu corpo.- Aonde foi parar o garoto? – perguntou Guilherme parando ao meu lado de pé e olhando tudo.- Eu não sei. – respondi calma. Eu não queria saber do garoto, a única coisa que eu queria agora era me deixar dominar por aquela enorme sensação de paz.- O que você está fazendo? – perguntou finalmente reparando em mim.- Relaxando. – respondi deitando no meio das flores e deixando a chuva começar a me molhar. - Alie, está chovendo, vamos encontrar algum lugar para nos protegermos ou vamos voltar para casa. - Guilherme, pare de se preocupar. – falei fechando os olhos e sorrindo com as gotas de chuva que lavavam meu rosto. – Deite-se ao me lado e aproveite esse lugar.- Aproveitar esse lugar? – a voz dele parecia tão ultrajada por essa sugestão que eu abri meus olhos só para vê-lo me olhar aterrorizado. – Alie, esse lugar parece à porra de uma cena de filme de terror digno de um Oscar.Olhei confusa para ele e sentei observando-o. Como ele podia dizer isso desse lugar maravilhoso? Não havia jeito daquelas flores maravilhosas e aquele cheiro delicioso de mato molhado ter saído de um filme de terror.- Do que você está falando? - Olhe para esse lugar, Alie, - ele girou envolta como se me mostrasse algo. – não sei como você consegue pensar em relaxar em um lugar assim.Ditas essas palavras, eu corri os olhos por todo o campo e senti cada pelo do meu corpo se arrepiar quando a imagem do campo maravilhoso era substituída pelo lugar mais sombrio que eu já havia visto na vida. Cada grama verde foi trocada por gramas mortas, queimadas, o cheiro de mato molhado foi substituído por um terrível cheiro de fumaça e carne queimada. As flores antes maravilhosas foram sendo tomadas por tons diversos, branco, vermelho, preto, e todas elas desapareceram dando lugar a diversos corpos carbonizados por toda a extensão do campo.Levantei-me em um pulo e agarrei a mão de Guilherme enquanto eu absorvia todo aquele lugar. Onde o campo foi parar? Senti calafrios que fizeram eu me encolher contra o corpo de Guilherme e ele me abraçou com força. Eu ainda olhava chocada para tudo aquilo quando meus olhos se focaram em um homem.Senti meu corpo enfraquecer e meus olhos se encherem de lágrimas como sempre acontecia quando eu via Thales. Toda aquela dor começou a tomar conta do meu corpo e tentei controlar aquela sensação de estar morrendo outra vez.- Diga que você também está vendo ele. – pediu Guilherme me apertando mais contra o seu corpo e balancei a cabeça concordando.Thales se aproximou de nós sorrindo e sangrando. Abracei meu corpo com força tentando controlar toda aquela dor que estava começando a me dominar, como sempre acontecia, ela estava mais forte que da última vez. Ele parou na nossa frente e sorriu inclinando a cabeça me observando. - Você estava melhor no nosso ultimo encontro. – comentou sorrindo ainda mais.- O que você quer? – perguntou Guilherme rude.- Ora, ora, ele pode me ver. – Thales sorriu na direção de Guilherme e deu um passo a frente. – Olhe que divertido, Alteza, você não é mais a única com quem posso conversar. Isso não é uma grande novidade? - Que lugar é esse, Thales? – perguntei ignorando sua pergunta anterior. - Vai me dizer que não se lembra desse local, Alteza? – perguntou inocente. – Sua memória deve ter sido afetada depois que você voltou à vida.- Eu sei o que nos liga. – revelei por entre os dentes quando senti que minhas pernas não iam mais me aguentar. Guilherme me segurou mais forte contra seu corpo me mantendo de pé e observava Thales com uma fúria assassina.- Que garota esperta! – elogiou apertando minha bochecha de leve e vi Guilherme trincar os dentes. – E você já descobriu os efeitos que isso pode ter na sua vida? Ou devo dizer na nossa vida?- Eu sou a única viva de nos dois. – respondi querendo esbofetear aquele rosto bonito. - Será mesmo? – perguntou rindo e então desapareceu.Deixei a dor me dominar por completo e gritei quando o sangue começou a sair em um fluxo incontrolável. Senti os braços de Guilherme me erguendo e pude ver quando a esfera surgiu na nossa frente. Quando cheguei ao outro lado, eu já não estava mais acordada.

Coração de Sangue - livro 2 da série Coração AzulOnde histórias criam vida. Descubra agora