Capítulo Seis - Segunda Parte

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Acordei com um sobressalto e assustada. Tremia de frio, o chão era duro e gelado embaixo de mim. Estava na mais completa escuridão.
Aonde eu estava? Era meu quarto? Caí da cama de novo? Mas não me lembrava de ter ido para a cama. Não conseguia me lembrar nem de ter ido para casa. Onde eu estava? Comecei a tremer ainda mais. Senti o ataque de pânico chegando, ia começar a chorar. Respirei fundo para me controlar. Segurei meu colar apertando-o nas mãos, abracei os joelhos fechando os olhos por um segundo para me acalmar.
Calma, Eva. Disse a mim mesma. Respirei fundo e contei de um até dez várias vezes bem devagar. Depois de um minuto abri os olhos de novo. Mas a escuridão ainda era a mesma. Estava desorientada pelo sono.
Prestei atenção para tentar escutar algum som.
Nada.
Olhei ao redor, mas não conseguia enxergar. Quando olhei para o outro lado, uma luz me chamou a atenção. Engatinhei até ela. Era meu celular que se acendeu com uma mensagem de texto.
Peguei o celular e iluminei ao redor vendo várias bolas e cordas e logo a lembrança de onde estava veio como um raio.
Estava na sala de equipamentos de ginástica. Devia ter me mexido tanto dormindo, que saí de cima do colchonete e estava deitada no chão frio.
Mas por que estava tão escuro? Eram só... Apertei uma tecla qualquer do celular para que voltasse a se iluminar e o visor mostrou que eram 22h35.
Não. Não pode estar certo. Eram 22h35 da noite? Eu tinha dormindo por tantas horas seguidas assim?
Como pude não escutar o sinal? Mas logo a resposta ficou clara. Os fones de ouvido. Os coloquei para ouvir música enquanto esperava a hora passar, mas não pensei que dormiria.Por isso não escutei o sinal. Não escutei ninguém indo embora.
Isso estava mesmo acontecendo? Eu estava presa no colégio? Conferi o celular para ter certeza. O relógio agora marcava 22h36 e doze chamadas perdidas.
As seis primeiras eram de Beka, três eram de mona e as outras três eram de minha mãe. E tinha uma mensagem de voz. Ainda tremendo, disquei os números para acessar a caixa postal.
– Eva? Querida, estou tentando ligar e você não atende. Quero saber se está tudo bem e se está na casa da Rebeka. Vou ligar para ela agora. Beijos.
Minha mãe já deveria estar em parafusos. Se tivesse conseguido falar com Beka, ela saberia que eu não estava lá.
Disquei o número de Beka tremendo. No primeiro toque ela já atendeu.
– Eva Lins, posso saber onde a senhorita se encontra? – atendeu, já me dando bronca.
– Eu estou em casa. Cheguei aqui e desmaiei na cama. – A mentira veio com muita facilidade, não sei se queria que Beka soubesse, ela ligaria para minha mãe com certeza. E isso só iria fazê-la perder o plantão.
– Sua mãe me ligou e eu falei que você estava aqui – falou bufando do outro lado da linha. – Agora você vai ter que falar que dormiu aqui ou eu vou passar como mentirosa para ela. Não sabia o que falar. Então disse que você chegou e já dormiu. Sorte sua que ela não pediu para que eu a acordasse. Ou eu teria que falar que você estava em coma e não podia atender. – Beka estava tão brava que sua voz saiu esganiçada nas últimas palavras. Mas foi um alívio saber que ela me dera cobertura.
– Obrigada, amiga – falei, já sentindo o coração voltar a bater mais devagar. – Te devo uma.
– Deve mesmo. Fiquei esperando um tempão e depois liguei umas dez mil vezes.
– Seis vezes.
– E você não atendeu nenhuminha – falou. Sabia que do outro lado da linha ela devia estar fazendo cara de emburrada e beicinho.
– Desculpe. Amanhã conto melhor. Agora vou... – Vou o quê? Tentar sair da escola? Da sala de ginástica? No que me meti?, pensei. – vou voltar a dormir. Amanhã nos falamos.
– Tudo bem. Amanhã você quer carona?
– Não, eu vou com o meu. Tenho que trabalhar depois.
Falando isso, lembrei do estado deplorável em que deveria estar meu carro, cheio de lama seca. Fiz uma anotação mental para lembrar de levá-lo ao lava-rápido.
– Tudo bem. Beijocas, bela adormecida.
– Beijos.
Assim que desliguei o celular, me arrependi de ter mentido. Por que não tinha contado a verdade? Ela chamaria alguém para me tirar dali.
Mas no final das contas, tinha certeza de que chegaria aos ouvidos de minha mãe de algum jeito. E ela ficaria uma fera.
Seria possível que nunca mais teria uma noite normal? Em uma, quase
morro, e na outra, fico presa no colégio.
Com a luz do celular fui iluminando e tateando as paredes com as mãos até achar a porta da sala. Por sorte, ainda estava destrancada. Ao sair, o corredor estava mais iluminado.
De cada porta ao longo do corredor saía uma iluminação fraca que vinha das janelas das salas. Mesmo tendo pouca luz, ali fora estava melhor do que dentro da sala de equipamentos.
Meus olhos começaram a se acostumar com o breu e comecei a ver melhor. Assim que saí da sala e dei um passo para a frente soltando a porta, ela bateu atrás de mim. O som foi tão alto devido ao silêncio absoluto, que parecia que tinha sido ampliado mil vezes. Levei um susto tão grande que dei um grito involuntário e pulei para longe da porta, parando na parede contrária. Meu coração acelerou tão rápido que achei que ele fosse pular para fora do peito.
Respirei fundo, por alguns segundos. Podia jurar que escutava o som do meu coração batendo, tamanho o silêncio que fazia ali.
Aos poucos, meu coração e minha respiração foram voltando ao ritmo normal. Mesmo assim, ainda não conseguia me mexer. Mas a necessidade de ir ao banheiro foi maior do que o medo. Minha bexiga estava estourando de tão cheia. O banheiro mais próximo ficava virando à direita naquele mesmo corredor.
Juntei coragem e comecei a andar. Cada passo que dava era como estar batendo em um tambor, tamanho o contraste entre o som dos passos e o silêncio.
Ao chegar no fim do corredor, espreitei pela curva antes de entrar nele. Coloquei a cabeça primeiro. Silêncio.
Não havia sinal de vida. Corri nas pontas dos pés para o banheiro. Por sorte, essa porta também estava destrancada.
Depois de fazer quase um minuto de xixi, fui até a pia. Lavei as mãos e o rosto. Mesmo com frio, eu suava de nervoso e o suor era frio e melado em meu rosto.
O que eu faço agora? Pensei comigo mesma. A escola só abriria de novo às 6h, quando o zelador chegasse. Ele era o primeiro a chegar sempre. Só então poderia sair.
Tentei colocar os pensamentos no lugar e me acalmar. Só teria que aguentar uma noite. E eu podia aguentar isso, eram menos de sete horas. Passaria rápido e então eu poderia ir para casa e esperar que a próxima noite fosse normal. Ainda bem que mamãe estava no plantão hoje. Ou não conseguiria me safar.
Quando saí do banheiro, escutei um trovão ao longe. O dia inteiro ficou com cara de chuva, não demoraria muito para começar a cair uma tempestade.
Mesmo sabendo que a porta estaria fechada, fui até a porta principal de entrada da escola. Uma corrente incrivelmente grossa estava transpassada em ambos os lados da porta com um cadeado também gigante.
Voltei pelo corredor pé ante pé até a outra saída, mas também estava fechada.
Encostei-me na parede. O que faria? Nesse mesmo instante meu estômago roncou alto como se para responder à minha pergunta. Não tinha comido nada o dia todo e agora estava realmente com fome.
Talvez pudesse ir até a cantina. Mas era longe e tinha certeza de que não estaria aberta. A chuva começou a cair forte no telhado da escola. Não era um som nem um pouco reconfortante.
Sempre adorei dormir com o barulhinho de chuva caindo. O som é muito relaxante. Mas naquele momento só me fez ficar com mais medo.
Mas eu estava com medo de quê? Era eu, em minha escola, a mesma escola que conheço e frequento há anos. A única diferença era que estava de noite e eu estava sozinha. Já estivera nesta escola centenas de vezes e conhecia cada cantinho dela. Não preciso ter medo, pensei comigo mesma.
Seja corajosa. Mas pensar era mais fácil do que fazer. Nunca gostei do escuro. Desde que me conheço por gente durmo com pelo menos uma pequena luz ligada. E mesmo estando em um lugar conhecido, de noite tudo parece diferente. As sombras que a luz da rua projetava nas paredes eram gigantescas e assustadoras. Minha barriga roncou de novo. Foi então que lembrei da maçã que minha mãe colocara em minha bolsa. Ainda estava no meu armário. Ela seria muito bem-vinda. Ah, mãe, obrigada!
Meu armário ficava no segundo andar. Direcionei-me para lá sem pensar duas vezes. De tempos em tempos olhava para trás. Mesmo sabendo que estava sozinha, a penumbra não tornava nada muito bonito. E a chuva açoitando o telhado e alguns trovões de vez em quando não melhoravam em nada o cenário.
Calculei quanto tempo levaria para chegar até meu armário. No máximo dois minutos. Então comecei a contar mentalmente devagar um, dois, três, quatro, cinco... contar sempre me acalmava. Sempre que precisava fazer algo que me deixava ansiosa, ou algo que não gostasse de fazer, calculava quanto tempo demoraria para terminar e começava a contar.
Minha mãe me ensinara isso quando eu era pequena e tinha que tomar vacina. Ela me falava: "você só terá que sentir a picada por no máximo dez segundos. É rápido. Conte devagar até dez e a dor vai parar. Vamos contar juntas".
E depois daquilo comecei a contar sempre que precisava passar por alguma situação desagradável. Já tinha virado um hábito.
Oitenta e oito, oitenta e nove, noventa... E cheguei ao corredor dos armários. Era um corredor longo repleto de armários dos dois lados de cada parede e a cada, mais ou menos, doze metros havia uma porta que dava acesso para uma sala de aula.
Podia ver os raios iluminando o interior das salas quando passava por uma ou outra porta aberta. E os trovões vinham logo em seguida com um grande estrondo.
Parecia que minha mente estava trabalhando contra mim. Sempre que tentava pensar em algo bom, lembrava de alguma coisa ruim que já tinha visto nos filmes.
Mesmo repetindo para mim mesma que eram só filmes, estava me dando broncas por dentro por ter visto tantos filmes de dar medo ao longo da vida.
Deveria ter visto mais desenhos animados, com certeza o mickey ou o Nemo não seriam nada assustadores naquele momento.
Bem diferente dos filmes de terror, em que alguma coisa sempre se esconde nas sombras. E sempre que alguém achava que estava sozinho, outra pessoa estava espionando de longe. Como aqueles olhos negros que vi na mata no dia anterior quando... Interrompi o pensamento no meio. Não. Pare com isso. Tenho que parar de pensar em coisas assustadoras. Pense em coisas boas, Eva. Falei para mim mesma me repreendendo.
Fui até o meu armário com passos rápidos e, assim que o abri e puxei a bolsa para fora, escutei um barulho alto.
Assim que o ouvi, fiquei paralisada, com a bolsa na mão.
Podia ser qualquer coisa. Uma régua caindo com o vento. Uma porta batendo. Não era nada. Não deveria ser nada. Não podia ser nada. Eu estava sozinha e pronto.
Fiquei parada por mais alguns segundos só para garantir. Tirando o barulho da chuva, o resto estava tudo em silêncio. O silêncio era absoluto. Estava com medo até de me mexer. Olhei para os dois lados do corredor e não vi ninguém.
Deve ter sido mesmo o vento. Abri o saquinho e tirei a maçã. Com a fome que estava, poderia comer umas dez.
Coloquei minha bolsa de volta no armário e o fechei com o máximo de cuidado que consegui.
O melhor a fazer era voltar à sala de equipamentos. Talvez conseguisse até dormir mais um pouco.
Passei o cadeado no armário e, assim que escutei o click dele se fechando, vi com o canto dos olhos um vulto parado no fim do corredor.
Puta merda, eu não estou sozinha.
Fiquei paralisada. Não conseguia me mexer.
O vulto ainda estava ali. Também parado. Minhas mãos começaram a tremer. Os músculos de meu corpo estavam tão tensos, que eu não conseguiria nem virar o pescoço para olhar.
Ficamos assim por apenas alguns segundos, mas naquele momento de tensão pareceu uma eternidade.
Não sabia mais se realmente via o que estava vendo. E parecia que se me mexesse ele me veria. O que era ridículo, já que estávamos somente nós dois ali. E eu estava bem no meio do corredor, com certeza, o que quer que fosse, já tinha me visto.
Decidi que tinha que me virar. Confirmaria se tinha realmente alguém ali de pé no final do corredor. Ou se era só minha imaginação.
E no segundo em que tomei a decisão de me virar, um raio iluminou a janela logo atrás do vulto e ele deu um passo à frente. Era mesmo uma pessoa.
Meu corpo respondeu no mesmo segundo suprido pela dose de adrenalina que fluía por minhas veias. Sem pensar, só agi. Larguei a maçã e corri. Corri como nunca corri antes. Corri no sentido oposto ao que ele estava.
Virei em um corredor derrapando e quase dei de cara com uma das portas das salas de aula, mas consegui desviar dela por pouco.
Quando estava chegando ao pé da escada é que veio o desespero maior. A compreensão de que eu não tinha para onde correr. Eu estava trancada na escola.
Meu coração martelava em minha cabeça e minha respiração estava descontrolada. Só um surdo não conseguiria escutar meus passos e segui-los.
Desci a escada correndo para o primeiro andar, de dois em dois degraus, às vezes de três em três.
Parei no último degrau da escada para poder escutar se ele vinha atrás de mim. Mas só escutei o silêncio e meu coração martelando em meu peito.
Tremia tanto que poderiam me confundir com uma pessoa tendo um ataque epiléptico.
Inspirei profundamente o ar e tomei coragem para olhar para cima. E lá estava ele. Inclinado sobre o corrimão olhando para baixo.
O desespero voltou. Recomecei a correr. E assim que fui virar a curva do segundo corredor, escutei meu nome.
– Eva, pare.
Alguém me chamou?
Reduzi o passo, mas não parei. Olhei para trás ainda correndo e o vi caminhando em minha direção. Assim que formulei o pensamento de parar de correr, veio a dor e tudo escureceu.

Labirinto de Espelhos  (Livro 1)Onde histórias criam vida. Descubra agora