Capítulo Três - Segunda Parte

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Estava paralisado tentando entender a estranha cena que se passava diante de meus olhos. Logo à minha frente estava a fonte de todo aquele perfume absurdamente poderoso e enlouquecedor. Que parecia ter o poder de entrar por todos os poros de meu corpo e mexer com cada milímetro de meu ser, fazendo com que o desejasse desesperadamente.
E é dali que vem?
A poucos metros de mim, uma pessoa andava pela mata. Bem, andava não era exatamente a palavra mais correta para descrever o que ela fazia. O correto a dizer é que ela tentava andar pela mata. Se seu objetivo consistia em tropeçar em tudo o que estivesse em sua frente, ela com certeza o estava alcançando  gloriosamente. Pois cada pedaço de madeira e rocha no chão era um tropeço e uma quase possível queda. Quem quer que fosse, essa pobre alma, estava encharcada e tremendo da cabeça aos pés. Deveria estar com muito frio, pois podia ouvir nitidamente seus dentes batendo uns contra os outros sem parar.
O que ela fazia ali? Sozinha e na escuridão. E ainda por cima com esse cheiro. Com a visão limitada que os humanos têm, ela não poderia enxergar muito mais do que um palmo à sua frente. Não conseguia ver seu rosto, tamanha a quantidade de barro acumulado em seus cabelos. Mas tinha certeza de que era dela que vinha todo aquele aroma. Seu cheiro era tão forte que parecia pulsar conforme seu coração batia dentro de seu peito. E como estava acelerado. Ela devia estar com medo. Sua respiração estava rápida e inconstante. Inalei profundamente aquele aroma magnífico mais uma vez me permitindo desfrutar daquele momento. Uma pessoa sozinha. No meio do nada. Tendo esse cheiro. E com um vampiro por perto. Com certeza não era a pessoa mais sortuda do mundo.
Sem ter certeza do que fazer diante do que via, fiquei parado observando enquanto ela tropeçava e andava sem direção com os braços estendidos diante do corpo.
Sem ver o galho que estava logo à sua frente no chão, ela enganchou a bota e foi lançada para frente caindo de barriga na lama. Antes que pudesse me dar conta do que eu fazia, dei um passo em sua direção. Mas, ao fazer isso, pisei em um graveto que, ao se partir, fez um barulho alto como um tiro naquele silêncio absoluto em que estávamos. Ela não precisava ter minha audição para escutar esse barulho. E provando que me escutou, sua cabeça se virou em minha direção. Não me dei ao trabalho de sair de seu campo de visão, pois sei que ela não poderia me enxergar. Seus cabelos estavam molhados e grudados em seu rosto, que também estava coberto por terra, não me permitindo observá-la melhor.
Com certeza essa não tinha sido a primeira vez que ela caiu. E, pelo andar da carruagem, não seria a última.
Seu coração acelerou ainda mais depois de ter caído, parecendo o coração de um beija-flor.
Fiquei imóvel esperando que ela se acalmasse e se levantasse. Depois de um determinado tempo ela se pôs em pé. Respirando com certa dificuldade, virou-se para várias direções, provavelmente tentando decidir que rumo tomar. Tomei o cuidado de não me mexer. Estávamos relativamente perto. Gostaria de ajudá-la, mas só iria assustá-la ainda mais se me mostrasse presente. E com esse seu cheiro temi por sua vida se chegasse mais perto. Por sorte, chovia e todo esse cheiro de mata úmida ajudava a mascarar seu perfume. Que mesmo assim ainda era insuportavelmente forte.
Ela passou a mão pelos cabelos que estavam em seu rosto, o que só piorou a situação, pois suas mãos estavam completamente cobertas por lama. Com dificuldade, ela enfiou a mão no bolso da calça e pude ouvir o barulho nítido de metal. E, assim que ela puxou o objeto para fora do bolso, o deixou cair no chão aos seus pés. Ela soltou um gemido de indignação. Tive que segurar uma risada. Com certeza esse não era seu dia. Ela se agachou para procurar as chaves. Estavam muito perto. Mas, conforme ela tateava, só as afundava cada vez mais na lama. Se não a ajudasse, ela soterraria as chaves e nunca mais as acharia.
Com cuidado redobrado, prendi a respiração e me aproximei dela pegando as chaves já quase enterradas e as coloquei a poucos centímetros de seus dedos. Ela tateou um pouco mais para a frente com os dedos tremendo e finalmente esbarrou no chaveiro as agarrando com força. Voltou a ficar em pé com certa dificuldade. Parecia estar mais calma agora que tinha as chaves nas mãos. Mesmo seu coração revelando o contrário e denunciando seu nervosismo. Ela virou de costas para mim e esticou o braço à frente de seu corpo. Assim que apertou o botão, escutei um silvo alto e a floresta à nossa frente foi iluminada quando os faróis piscaram, mas no mesmo instante caímos novamente na escuridão. Virei-me para olhar o carro que estava logo atrás de nós. Quando olhei para ela novamente, ela estava de frente para mim com o braço esticado à sua frente e por muito pouco não encostou em meu peito. Ela apertou o botão novamente. Não tive tempo para me preparar. O alarme voltou a tocar e, assim que os faróis se acenderam, ela olhou diretamente para mim. Seus olhos se arregalaram e ela soltou um gritou alto se jogando para trás caindo de costas com um baque forte. As chaves do carro voaram de seus dedos. Os faróis se apagaram e a mata caiu na completa escuridão.
Antes que eu pudesse fazer qualquer coisa, ela se virou de lado, se levantou e saiu correndo. Fui atrás.
Seu coração batia muito rápido agora e sua respiração estava completamente descontrolada, o que deixava seu cheiro ainda mais forte e tentador. Ela esbarrava em árvores e arbustos ao tentar correr sem direção. Tropeçou, caiu, levantou, tropeçou de novo e sem nenhum aviso ela foi engolida pela terra.
Desse modo ela acabaria se matando e sem a minha ajuda. Assim que ela caiu no buraco, do que parecia ser um poço antigo, seu agasalho ficou preso na lateral por várias raízes. Ela não conseguia se soltar e se agarrou às raízes que estavam mais próximos a ela. Fazendo muita força, ela se agarrou como pôde em um tronco e começou a desabotoar seu agasalho. Isso não parecia ser uma boa ideia. Assim que terminou de abrir o último botão, se jogou para a frente tentando se apoiar no galho. Mas estava muito escorregadio.
Tenho que fazer alguma coisa ou ela vai acabar morrendo.
Debrucei-me na entrada do poço para alcançá-la e fui surpreendido por um cheiro avassalador. Prendi a respiração novamente e me joguei para trás. O aroma era insuportavelmente forte. Por muito pouco não perdi o controle. Ela está sangrando.
Era só o que faltava.
Joguei os braços para cima indignado e dei vários passos para longe do poço. Ouvi quando ela escorregou ainda mais para dentro batendo no fundo com um som abafado. Não ousei me aproximar de novo, tentando me recuperar. Meu veneno estava quase me dominando. Esse cheiro era insuportavelmente dominador. Se voltasse a respirar, não aguentaria. Parecia que todos os perfumes do mundo estavam concentrados no aroma de seu sangue. Meu veneno pulsava dentro de mim implorando para que eu cedesse. Lutei contra o desejo de me jogar poço adentro e possuí-la ali mesmo, sem cerimônias. Mas se começasse, não conseguiria parar.
Sua respiração estava ofegante e seu coração batia mais rápido do que nunca.
Preciso ir embora ou vou matá-la. Isso era uma certeza. O maior perigo para ela não é estar dentro desse poço, e sim eu.
Virei-me decidido a ir embora. E foi quando ela começou a chamar por ajuda. Seus gritos me deixaram perdido.
Aquela voz.
Tomando cuidado para não sucumbir à tentação de inspirar profundamente, prendi a respiração e olhei para dentro do poço. Ela estava enterrada até quase o pescoço por lama.
Ah, por favor, quantas maneiras essa menina consegue arrumar de morrer? Se não a ajudasse, ela com certeza morreria soterrada.
O que eu faço?
O melhor seria tirá-la de lá e depois manipular sua mente para que me esquecesse.
Sim, vou fazer isso. E assim que ela estiver fora de perigo, vou embora. Inspirei uma rajada de ar limpo, livre de seu cheiro e mais uma vez entrei no buraco. Estiquei o braço, segurei seu pulso e com força dei um puxão para cima. Mas não consegui levantá-la, pois fui dominado por uma sensação devastadora de medo, desespero, dor e pavor. Todos de uma só vez. Arregalei os olhos e ela me olhou diretamente quando um raio cortou o céu iluminando dentro do poço. Lancei-me para fora do poço de novo. Caí de costas no chão completamente desnorteado.
O que foi aquilo? Por que senti aquilo? Eu não estava com medo. Não estava apavorado. Então de onde vieram aqueles sentimentos? Só podem ser dela. Mas como?
Passei uma mão na outra e senti a palma da mão que segurou seu pulso muito quente.
Ela voltou a chamar por socorro trazendo-me de volta para a realidade. Ela se afogaria em lama se eu não fizesse alguma coisa.
- Socorro... Noah... E ficou em silêncio. Quem é Noah? Olhei pelo buraco mais uma vez. Ela estava desmaiada e quase coberta por completo pela lama. Entrei no poço e, com um movimento rápido, a puxei para fora.
Não havia uma parte de seu corpo que não estivesse coberta por lama. Era uma imagem e tanto.
Com cuidado, saí do poço com ela em meus braços. Aproveitando seu estado inconsciente e a toquei novamente. Fechei meus dedos ao redor de seu pulso e esperei. Mas nada aconteceu. Apertei com um pouco mais de força, com cuidado para não machucá-la. Nada. Só me sentia extremamente calmo e relaxado.
Segurei-a em meu colo por mais alguns instantes. Sabia que era errado o que estava fazendo. Colocando sua vida em risco mesmo a tendo salvo há poucos instantes. Ela provavelmente estava mais segura dentro do poço do que agora em meus braços. Mas precisava sentir aquele aroma mais uma vez antes de deixá-la.
Preparei-me para o choque de seu cheiro antes de respirar novamente e inspirei uma quantidade ínfima de ar. O cheiro explosivo de seu sangue agora não estava mais ali. Somente aquele perfume hipnotizante. Inalei o ar com vontade apreciando aquele banquete que era seu perfume natural.
Precisava deixá-la antes que ela acordasse. Mas por que era tão difícil? A carreguei até bem próximo de seu carro. Peguei suas chaves que estavam caídas no chão e apertei o alarme para que os faróis ficassem piscando sem parar. Assim não teria como ela não achá-lo. Nesse instante ela se mexeu em meu colo inspirando profundamente. E, ao abrir os olhos, olhou diretamente para mim, só para em seguida voltar a fechá-los.
Não conseguia mais me mexer. Não conseguia mais respirar.
É ELA.
A garota dos meus sonhos. Reconheceria esses olhos em qualquer lugar. Dentro do poço, com todas aquelas emoções que senti, não consegui reconhecê-la. Mas agora não tinha a menor dúvida.
É com ela que tenho sonhado todos esses anos. E agora ela está aqui. Em meus braços. Finalmente a encontrei. Ela existe. Realmente existe.
Dante ficará louco em saber que a encontrei. Quantas vezes ele insistiu em me falar que ela não era real. Que era fruto da minha imaginação. Mas não. Aqui está ela. Indefesa, coberta por lama e em meus braços.
Os meus sonhos não faziam jus nem de longe ao seu perfume. Senti-me privado. Pois durante todos esses anos achei que estava no paraíso quando estava com ela. Todas as vezes em que pude sentir o que ela sentia, desfrutar de seus sentimentos e de suas emoções, nunca imaginei que poderia ser melhor do que já era. Mas é.
Finalmente encontrei você.
E pensar que ela quase morreu. Quase morreu por eu não estar aqui, e ao mesmo tempo por eu estar aqui. Há anos não perdia o controle desse modo como perdi com ela. Foi por pouco.
A apertei com mais força em meus braços. Não queria deixá-la. Não agora que finalmente a havia encontrado. Não depois de todo esse tempo. Quantas vezes imaginei esse momento. Tendo-a em meus braços, protegida. Confesso que a imaginei com menos lama. Mas não importa. Sorri ao vê-la daquele modo. Mesmo assim estava linda.
Mas e agora? Poderia fugir com ela. Correr e só parar depois de estar a quilômetros de distância. Assim ninguém poderia tirá-la de mim.
Mas e depois? A hipnotizaria para que ficasse comigo? Não. Não queria hipnotizá-la. Queria conhecê-la. Saber quem é. E a melhor maneira com certeza não seria sequestrando-a. Ela devia ter família. Amigos.
Ela se mexeu em meus braços novamente. Não demoraria a acordar. Parecia tão calma e relaxada. Não poderia ter mais de dezessete anos.
A muito contragosto, a deixei perto de seu carro. Coloquei as chaves em sua mão e me afastei. Foi uma das coisas mais difíceis que já fiz. Fiquei observando-a de longe.
Vamos lá. Acorde.
Alguns minutos depois ela acordou e se colocou sentada com um único movimento rápido. Olhou ao redor. E se levantou. Foi andando e tropeçando até conseguir entrar no carro. Minha vontade era de ir até ela naquele exato momento. Não queria mais distância entre nós. Muito menos um carro inteiro.
Sei que o certo era ir embora. Mas não poderia. Não agora que a tinha encontrado. Sempre tive dúvidas de como ela seria. Pelo visto ela, era 100% humana de carne e osso. E sangue. Com certeza de sangue.
Descartei rapidamente a ideia de ir embora. Mesmo que fosse, sei que logo voltaria. Então para que me dar ao trabalho de ir, se voltaria de qualquer jeito. Eu precisava conhecê-la. Precisava descobrir o que foi aquilo que senti ao tocá-la. Talvez pudesse ficar alguns dias, algumas semanas na cidade. Só para saber se ela estava realmente bem depois de todo esse trauma que tinha passado. Ter certeza de que não ia se aventurar em minas abandonadas sozinha novamente.
Ri de mim mesmo. A quem tentava enganar? Estou aqui sozinho. Não preciso enganar ninguém inventando desculpas para o motivo real de querer ficar. O motivo é que eu a quero para mim. Mais do que tudo.
Ela ligou o motor do carro e foi embora. E sem pensar duas vezes, fui atrás.

Labirinto de Espelhos  (Livro 1)Onde histórias criam vida. Descubra agora