Capítulo Quatro - Primeira Parte

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Capítulo Quatro

Meu rosto estava ensopado por alguma substância que insistia em pingar sem parar. Estava deitada de barriga para cima completamente largada e exausta. Sem energias nem para abrir os meus olhos.
Pare de pingar em mim. Pare.
Os pingos incessantes me fizeram acordar. Só queria continuar ali, deitada. Quieta. Mas os pingos não me deixavam dormir. O que é isso? Chuva? Por que estou na chuva? Eu saí de casa? O chão molhado e escorregadio em que estava deitada parecia estar da mesma temperatura de minha pele.
Tentei me mexer, mas meu corpo inteiro protestou contra.
Por que estou toda molhada?
Passei a mão pelo rosto para afastar os cabelos molhados e senti uma gosma escorregadia e arenosa. Ao abrir os olhos, vi que minha mão estava coberta por algo escuro e gosmento. Tinha cheiro de terra, terra molhada. O POÇO!!!
Sentei-me em um único movimento. Como saí de lá?
Inspirei o ar profundamente expandindo os pulmões ao máximo. O alívio percorreu cada centímetro de meu ser por não ter mais aquela pressão esmagadora sobre meu peito me impedindo de respirar.
Tudo à minha volta estava iluminado por uma luz amarela que piscava de forma intermitente vindo dos faróis do meu carro.
Meu carro.
Ali estava ele. A poucos metros de mim. Quase chorei de alegria. E em minha mão segurava minhas chaves. Minhas chaves. Nunca fiquei tão feliz em vê-las. Eu poderia beijá-las.
Mas como consegui subir até aqui? Forcei a vista procurando pela entrada do poço. Mas não estava nem perto dela.
Todas as partes do meu corpo doíam e eu mal sentia minhas mãos e pés, de tão frios que estavam. Meus dentes batiam incontrolavelmente uns contra os outros, tamanho o frio que sentia.
Como eu consegui sair do poço? Esse pensamento martelava em minha cabeça. Lembro-me de cair e de... alguém... Alguém!!!
Levantei-me do chão em um pulo. Tinha alguém aqui comigo antes. Não tinha? Ou foi tudo minha imaginação?
Comecei a andar em direção ao carro, mesmo não tendo certeza se minhas pernas me obedeceriam. Escorreguei e tropecei, mas não parei. Só queria poder sair dali o mais rápido possível.
Estava completamente desequilibrada ao andar. Senti de novo algo gosmento grudando em meu rosto, mas desta vez foi meu rosto que foi de encontro ao barro. Percebi tarde demais que estava caindo e, sem conseguir evitar, bati a barriga no chão. Senti uma dor aguda nos joelhos, mas não quis parar para ver. Forcei-me a ficar de pé mais uma vez. Meu carro estava a poucos metros. Virei-me para olhar a floresta uma última vez antes de entrar.
Preciso ir para casa. Minha mãe já deveria estar arrancando os cabelos de preocupação.
Ao entrar no carro, tranquei as portas. O medo de ainda ter alguém ali comigo não me deixava em paz. Agora já não tinha certeza de realmente ter visto o que achava que vira. Liguei o aquecedor apreciando o vento quente que foi aos poucos preenchendo o interior do carro. Lutei contra a louca vontade de dormir ali mesmo. Mas não podia. Tinha que voltar para casa. Só precisava de cinco minutos ali, para recuperar as forças e voltar a sentir minhas mãos e meus pés para conseguir dirigir.
Conforme minha sensibilidade ia voltando, comecei a sentir uma intensa dor nas palmas das mãos. Deviam estar com vários cortes. Lembro de ter tentado me segurar nos galhos para evitar cair. Na hora do desespero fazemos mesmo qualquer coisa.
Endireitei-me no banco e liguei o carro. Já estava mais do que na hora de sair dali. Durante o caminho de volta, a sensação de não estar sozinha ainda me acompanhava fazendo os cabelinhos da minha nuca se arrepiarem. Cheguei em casa em menos de dez minutos. Ao entrar na garagem, apurei os ouvidos esperando ouvir minha mãe sair aos berros pela casa. Fiquei aliviada só pelo fato de não encontrar uma viatura no gramado de casa. Com minha mãe eu poderia lidar, com a polícia já não tinha tanta certeza.
Entrei pé ante pé e subi as escadas correndo indo direto para o meu quarto. A porta do quarto da minha mãe estava entreaberta, mas não ousei chegar perto para espiar.
Ao entrar no quarto, fui para o banheiro e me tranquei lá. Acendi a luz e tive que piscar várias vezes para tentar entender que o que eu via no espelho era o meu reflexo. Parecia que eu era feita de lama da cabeça aos pés.
Eu estava somente com uma das minhas botas. Minha calça jeans mudou de azul-marinho para marrom coco, minha blusa de frio estava toda rasgada e desconjuntada em meu corpo e meu agasalho tinha ficado no poço. Meu cabelo era o pior de tudo. Parecia um ninho de passarinho. Esses que vemos na TV, feitos de galhos e folhas. Estava igualzinho. Mal conseguia ver meu rosto embaixo de toda aquela lama que agora começava a secar. Minha pele clara estava mais branca que papel e meus olhos castanhos estavam muito grandes e fundos para o meu rosto. Fui para o boxe de roupa e tudo. Conforme a água quente caía, podia sentir o calor se espalhando e os músculos de meu corpo relaxando. Conforme a sujeira ia saindo, o ralo começou a entupir com terra, galhos, pedrinhas, folhas verdes e marrons. Tive que parar o banho mais de uma vez para tirar a sujeira do ralo para que a água suja parasse de acumular. Lavei a cabeça mais de três vezes. Minhas mãos ardiam muito e, depois de tirar toda a lama, pude ver cortes nas palmas das minhas mãos que, por sorte, eram superficiais, mas precisaria fazer um curativo antes de dormir.
Deitei em minha cama só de calcinha e sutiã depois de tomar o banho mais longo e maravilhoso de toda a minha vida. Meu corpo gritava em protesto contra todo o exercício que fora exigido dele.
Que loucura. Eu quase morri hoje. E por causa de um anel. Por causa de Noah. O que será que ele pensaria quando ficasse sabendo que morri na mina velha? Será que se importaria? Que besteira! Claro que sim, Eva. Revirei os olhos para mim mesma.
Por mais que pudesse estar com raiva, sabia que ele me amava. Me amava até demais. De um modo que eu não fui capaz de amá-lo. Ele teria ficado arrasado, com certeza.
A imagem do fundo do poço voltou à minha mente fazendo meu estômago retorcer com a lembrança. Uma escuridão completa.
Como saí daquele poço? E aqueles olhos escuros? Tinha mais alguém lá. Aqueles olhos... adormeci.

                          ***

Sonhei que era carregada por um anjo. Seu corpo estava todo molhado, assim como o meu. Podia sentir seus músculos rígidos através do tecido fino de sua camisa. Ele me carregava nos braços para fora de um lugar escuro.
Estar em seus braços era maravilhoso, familiar e seguro. A sensação era de paz por estar em sua presença. Estamos voando? Não sabia dizer. Se estivéssemos, tudo bem. Não teria medo. Não com ele ali me protegendo.
Seu rosto estava a poucos centímetros do meu. Inalei o aroma que vinha de seu corpo tão próximo. Hum...
Com a cabeça apoiada em seu ombro, algo chamou minha atenção. De que cor eram seus olhos? Ainda estava escuro. Mal conseguia enxergá-lo. Ele virou seu rosto para mim. Mas só conseguia ver sua silhueta distorcida. Mas aqueles olhos. O que tem neles? Pareciam ficar cada vez mais escuros. Mais escuros do que a escuridão que nos rodeava. Estavam me puxando para dentro deles. E foi então que o sonho virou pesadelo.
Aqueles olhos!
Tentei me afastar, mas seus braços estavam firmes em volta de mim. Agora estavam negros por inteiro, tão negros quanto piche.
Tentei gritar, mas nenhum som saiu. Me debati tentando me soltar. E então seus braços se foram. Naquele momento eu estava sozinha, encharcada e com frio. Muito frio.
Onde estou? A pergunta demorou menos de um segundo para ser respondida. Estou na mina velha. Podia sentir a presença dele aqui comigo, mesmo não conseguindo vê-lo. Podia sentir seus olhos em mim fazendo os cabelos de minha nuca se arrepiarem.
Ele estava chegando mais perto. Eu sabia. Podia sentir.
Comecei a correr sem rumo. Só precisava ficar longe. Mas aqueles olhos negros me perseguiam no escuro, floresta adentro.
Tentei continuar a correr dele o mais rápido que meus pés podiam. Foi então que comecei a afundar.
Não! De novo não.
Por mais que tentasse lutar para me soltar, continuei afundando na lama fria e gosmenta. Ele me pegaria. Estava cada vez mais perto. Mais perto. Não...
TUM...
Abri os olhos desnorteada. Onde eu estava? Olhei em volta e reconheci meu quarto. Meu coração batia tão rápido em meu peito que chegava a doer.
Foi só um pesadelo. Eu caí da cama.
Minha cabeça latejava em um ponto específico. Levei a mão à cabeça para sentir o local onde doía. E bem ali um galo começava a se formar.
Odeio ter pesadelos. Sempre quando os tenho acabo "sonambulando" pelo quarto. Como minha mãe costuma dizer.
Ser sonâmbula tem suas vantagens e desvantagens. Acordar com a cara no batente da porta com um galo na cabeça com certeza pode ser adicionado à lista de desvantagens. Desde que me conheço por gente sou sonâmbula. Não dessas que abrem portas e saem andando pela casa. Mas sempre que tenho sonhos conturbados, um pesadelo ou passava por algum momento ruim ou traumático, acordava no chão. E posso definitivamente classificar o que aconteceu ontem na mina como um momento traumático.
Levantei-me do chão com dificuldade. Meu corpo estava todo rígido e gelado. Não conseguia descansar direito quanto tinha esses tipos de sonhos. Olhei pela janela. Ainda estava escuro lá fora. Voltei para minha cama e peguei no sono novamente quase que instantaneamente. Não tive mais pesadelos durante a noite.

Labirinto de Espelhos  (Livro 1)Onde histórias criam vida. Descubra agora