Piloto

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Incrível como naquele momento ele não era o único a duvidar da minha sanidade mental. Os olhos atravessados e incrédulos encaravam as paredes brancas do quarto de hospital. Afinal de contas, meu argumento parecia não agradar.

- É esse ambiente - Interveio uma voz familiar. Caleb, meu sócio e amigo me encarou com preocupação. Para ele tudo o que fosse associado a hospital tinha um impacto negativo sobre mim. Mantive-me calada durante algum tempo, uma hora ou outra acenando em concordância com a cabeça, sentindo o silêncio do ambiente ser interrompido por uma respiração impaciente, estalar de dedos ou mesmo passos apressados pelos corredores, mas em relação aquilo podia opinar:

- Eu estou bem... - Encarei o homem de cabelos grisalhos e notei seu olhar confuso, e que guardando a caneta sob o bolso do paletó afrouxou a gravata apertada, seus olhos redondos e apáticos não pareciam interessados. Sinceramente, o modo fatigante em como encarava seu relógio de pulso denunciava sua pressa e sua frustração interna de ter me ouvido por quase duas horas. Contive o riso sob o olhar de Caleb, o mesmo me repreendia em silêncio de modo intimidador, mas sabia que em seu interior também chegou a comparar o bigode daquele homem a uma escova de lavar.

Meus argumentos não foram muito convincentes. Os detetives do seguro fizeram mais algumas perguntas antes de tomarem minha assinátura e partirem. Encarei o relógio ao lado da cama, e o mesmo demarcava oito da noite. As lembranças pareciam fervilhar em minha cabeça em um turbilhão de emoções, alucinações e delírios. O motivo por estar presa a uma cama de hospital não eram dos mais comuns. Honestamente, eu não posso ter visto aquilo que eu acho que vi, era absurdo. Dizer às pessoas que bati num poste que foi atingido por um raio me parecia uma boa desculpa, afinal, foi uma noite chuvosa e o meio rural do lugar me garantiria que não houvesse testemunhas para dizerem o contrário, mas a pergunta era: - O que fazia no antigo casarão em Portland numa noite como aquela?

-"Um livro". Respondi, e vi todos girarem os olhos entre as órbitas e Caleb passar as mãos entre os cabelos perolados em sinal de descrença, bufou irritado. Toquei os curativos sobre as costas da mão. Uma fina linha de soro era levada para uma bolsa pendurada ao lado da cama. Suspirei incomodada, pendi para frente tentando me sentar.

- Não, não. Faz isso não... - Me impediu Caleb, mantendo minhas costas coladas ao travesseiro.

Suspirei convencida antes de observar que flôres de várias espécies estavam espalhadas pelo quarto, e os cartões devidamente arrumados e empilhados sobre o criado-mudo. As cortinas brancas de algodão se moviam livremente entre as janelas do quinto andar, Caleb havia afastado as grossas percianas. E como o esperado não me surpreendi ao ver alguns objetos meus espalhados pelo quarto, uma mesinha de centro próximo a um pequeno conjunto de sofás, alguns retratos da família e minha edição limitada de albúns de figurinhas do capitão caverna. Céus, como ele era organizado. Reconheci os esforços que Caleb fazia pra me fazer sentir em casa, mesmo num lugar como aquele. Me compadeci de culpa por não poder dizer o que aconteceu. Mas, o que foi que aconteceu? Eu não estava louca, ou pelo menos não ainda, mas não podia negar as imagens famigeradas e absurdas em minha mente.

- Blake está vindo pra cá.

Olhei para o lado. Caleb se mantinha sentado sobre uma poltrona de couro marrom, tamborilando os dedos sobre os braços da mesma, visivelmente irritado. Aliás, irritar pessoas se tornara - ultimamente - meu segundo objetivo de vida. E se pensa que me esforçava para tal proeza está enganado, na verdade não precisava de muita coisa pra isso, me tratavam como uma criança, uma criança de 26 anos. Qualquer um diria que tudo aquilo foi uma casualidade, acidentes acontecem não é mesmo? Mas para todos, em relação à Lilian Horn, se tratava de uma tentativa de suicídio, uma maneira de chamar atenção.

Ok, vamos às eliminações. Beber e dançar sobre o barman numa boate? É uma maneira de chamar a atenção, não dar a mínima para a empresa que seus pais demoraram tanto para construir? É chamar atenção, sair à noite para buscar um objeto de família para uma causa nobre?... Bom, eu chamo isso de uma boa causa nobre, mas como já havia feito todas as outras coisas antes e passado um pouco do limite em meu bom histórico comportamental, comecei a chamar de injustiça, me condenavam por coisas passadas.

- Ele não precisava saber. Devia ter ficado em Seattle.

- O que ele não precisa saber é que quase morreu por um pedaço de papel idiota. Isso é ridículo! - Queixou-se o homem depositando partes de um velho diário com mais força do que deveria sobre o criado-mudo. Me surpreendia pensar que ele poderia ter lido: - Devíamos estar cuidando de casos importantes e não... Levar livros velhos para a biblióteca.

- Museu - Corrigi.

- Certo, museu. Além do mais, como vou saber se essa Jaqueline era tudo isso que está escrito aqui? - Suspirou entediado e pouco convencido: - Tem alguma foto?

- Não. Alguns objetos entre 1500 a 1670 foram destruídas na guerra. E eu prometi ao Blake que me livraria dos pertences do casarão de Portland a tempo.

- E como você tem isso?- Questionou arqueando uma das bem feitas sobrancelhas. Erguendo o diário em suas mãos.

- Herança de família. Por favor, tira o pé da minha mesinha, ela tem mais de setenta anos!

O homem girou os olhos entre as orbitas:

- Desculpe - Disse tirando os pés imediatamente do móvel a contragosto - Onde está a outra metade do diário?

- Eu não sei. Devo ter perdido no acidente.

- Você se importa se ficar comigo? Quero terminar de ler - Se levantou esperando por uma resposta, caminhou em direção à porta.

- Claro que não - Caleb era o tipo de homem que não se interessava por nada que passasse de uma década. Vivia falando sobre como era bom viver o agora e o "imediatamente". Eu vivia o agora! O imediatamente! Não pensei que alguns poucos quilômetros até Portland fossem fazer tanta diferença. Me pergunto se aquilo que eu vi era real, se não foi uma peça pregada pela minha cabeça, que naquele momento não estava em boas condições, enfaixada por gazes e esparadrapos, mas eu estava ali, não estava? Estava numa cama de hospital com ferimentos reais... - Espera!

- Algum problema?- Voltou-se preocupado.

-É proibido fumar aqui dentro?

Os lábios se curvaram num sorriso sedutor. Sacou a carteira de cigarros do bolso e jogou-o sobre a cama, me encarou por alguns segundos:

- Pensei que tinha parado.

- Parei, mas hoje é uma exceção. - Retribuí o sorriso e pude ver um pouco de esperança e desconforto em seus olhos. Apalpou o isqueiro sobre o bolso da calça e o lançou em minhas mãos.

- Não deixem te pegarem com isso.

Dizem que o medo se alimenta de suas inseguranças, se veste de sua ignorância e anda com o seu receio por coisas que não compreende. Em mim o medo achara um oásis.

A Desolação Do VampiroOnde histórias criam vida. Descubra agora