Laços

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Quando lembranças vem a sua cabeça, mesmo que por um instante você revive as cenas uma por uma, e as emoções, os sentimentos e um turbilhão de sensações invadem seu corpo, como se tudo o que já passou lá atrás estivesse acontecendo de novo.

O que dizer quando não se sabe ao certo de que parte da sua vida imagens e lembranças pertencem? Como se faltasse peças chaves de um grande e difícil quebra-cabeças. O resultado é não saber o que sentir. Talvez por isso Kian estava ali, sentado num grande e enferrujado sino, olhando para as muitas pessoas desmancharem as árvores enfeitadas com luzinhas piscantes e chamativas, para algo estranho que chamavam de natal. Devia sentir algo a respeito daquilo? Seus olhos eram como as de um felino paralisado com as diversas cores que enfeitavam o extenso jardim. Não, claro que não deveria sentir, afinal saberia se o seu passado de alguma forma tivesse sido tão... Feliz?

— Não é lindo? — A voz da moça de cabelos negros soou as suas costas. De pernas cumpridas e de um rosto quase que infantil, a franja ressaltava ainda mais os olhos espertos, mantendo as singelas sobrancelhas escondidas. De vez ou outra soprava as mãos enluvadas numa tentativa inútil de se aquecer, afinal era uma vampira, nada daquilo tinha um efeito significativo pra ela, porém a pouca neve que cobria todo o gramado parecia dar a ela uma aparência mais pálida do que já possuía.

— Quase humano — Kian curva-se para apoiar o queixo sobre umas das mãos, os cotovelos sustentados sobre os joelhos lhe davam uma imagem de puro tédio. A noite parecia ainda mais fria naquele inverno. Agasalhado apenas com um fino casaco de moletom não parecia incomodado com o ar frio que se aproximava.

— Ah! — Ralhou à moça sorridente, dando alguns tapinhas sobre o grande sino quase enterrado na neve: — Amanhã vamos tirar isso daqui e colocar um papai Noel colossal. — Emily esperou pela resposta.

Ele se mantinha petrificado, como se aquele sino o tivesse devorado tornando-o parte dele. Um belo e fascinante monumento. Emily suspirou vencida, fitando o rosto delicado e extraordinário.
Fina como porcelana sua pele translucida e prateada ressaltava os ossos elegantes da face, os lábios eram opacos e róseos, incabivelmente sensuais. O nariz aristocrático e reto denunciava uma perceptível altivez e arrogância, como alguém acostumado a ser cobiçado.
Os cabelos embora um pouco úmidos apresentavam-se num nítido âmbar, deslizando sobre o seu rosto, insistindo em incomodar os olhos desconfiados e orientais, profundos num azul apagado e sombrio, escondidos pelas pálpebras levemente arroxeadas de quem não dormia. O corpo esbelto e esguio se contraiu num movimento sutíl onde o viu abraçar as próprias pernas, apoiando o queixo delicado e quase que feminino sobre os joelhos. Os dedos longos e finos apertavam o tecido de algodão do moletom com força, deixando a mostra os pés pálidos que inacreditávelmente se encontravam descalços, frios e desprotegidos. Não havia imperfeições ou cicatrizes, uma das poucas coisas que um vampiro traria de sua vida humana, para lembrá-lo quem foi. Emily por um segundo vira o deslumbre de seu perfíl destacar os caninos pontudos e brancos.
Pelos céus! Ele era lindo. Talvez a maldição que os perseguia, e os mantinha jovem para sempre fosse, na verdade, algo merecido. Embora para muitos fosse um martilho, eu entendia a razão pelo qual ele não podia ver o próprio reflexo, algo incomum, considerando que a maioria dos vampiros não sofria desse mal. O que aconteceria se alguém se fascinasse pelo próprio rosto? Senti vontade de rir internamente, fitando toda a cena do alto de minha janela.

— Eu não vou pegar um resfriado se foi o que pensou — O rapaz interrompeu os pensamentos da morena com um sorriso matreiro, deixando amostra os caninos pontiagudos e ameaçadores, olhando-a de esguio parecia intimidá-la como uma presa indefesa. Arfou, e uma curta neblina escapou de seus lábios gélidos: — Não está com medo?

— Não vai me machucar Kian — Emily tocou os pés frios e pálidos: — Não é o que você quer.

— Não é? — Quis saber se colocando em pé sobre o sino, equilibrando-se como se estivesse sobre uma corda bamba. Por que e aquela pergunta soara-lhe como um insulto? Talvez fosse pelo fato que não via saída para ele mesmo, seria consumido pelo demônio adormecido dentro dele, e alguns duvidavam que retornasse: — Eu não sei oque sou agora, Emily. Quero que pare de confiar em mim.

A Desolação Do VampiroOnde histórias criam vida. Descubra agora