(o vídeo é para ajudar a ter uma ideia de como a primeira cena está em minha mente)
A sala do Dr. Chang é uma experiência extra-sensorial avassaladora.
As paredes, o chão e o teto são infinitas telas que reproduzem estrelas, constelações, galáxias. Elas reagem de acordo com meus batimentos cardíacos, que estão descoordenados. Já entrei aqui quase quinhentas vezes e sempre me sinto mal. Já te contei que tenho problemas com altura.
Gostaria de achar uma parede para me apoiar, mas no Universo a fora não existe apoio. Tento firmar os pés no chão que ainda sinto, evitando olhar para baixo. Procuro o médico na confusão de luzes, demoro para encontrá-lo, mas lá está ele, sentado em sua escrivaninha, escrevendo numa lousa de vidro. Eu o perco diversas vezes de vista, é difícil mover os pés depois que encontrei apoio, mas me forço a caminhar. Ele tem uma cadeira na frente da escrivaninha, eu tenho que alcançá-la antes que as simulações comecem a trazer coisas mais difíceis de lidar, como sóis ou chuvas de meteoros.
Assim que agarro o encosto da cadeira a simulação cessa. As paredes voltam ao branco habitual de antes, os móveis são de madeira escura e fosca. Meu médico de meia década de tratamento ergueu o rosto e sorriu. Eu não fazia ideia da idade do Dr. Chang, a pele dele era totalmente esticada e esculpida, os lábios eram grossos de feitos, as maçãs do rosto mais proeminentes que as da secretária. Um bronze artificial cobria a pele, e o cabelo cheio e espetado crescia para a esquerda, brilhante e preto. Ele tinha os olhos mais espertos que eu já conhecera.
– Olá, Alice – sua voz antiga, a única característica que indicava mais idade que a aparência me cumprimentou.
– Olá Dr. Chang.
Meu nome é característico à minha condição neurológica: uma garota, que seguindo um Coelho Branco com um relógio entrou num País das Maravilhas que só seus olhos podiam ver, à base de muito alucinógeno vindo de uma lagarta azul. Quase parece uma piada de mal gosto do Universo, ou de quem quer que tenham sido meus pais. O Dr. Chang também ria disso, por isso me fazia "cair" todas as vezes que eu entrava em seu consultório.
Para mim, ele era meu Coelho Branco. Eu o segui um dia nesta loucura, e somente ele pode me levar à superfície outra vez.
– Como estamos desde a última semana?
Meus olhos dirigem-se ao bonsai que sempre está do lado direito da sua mesa.
Ou melhor, esquerdo.
– Bem.
– Bem é uma definição muito... abrangente. A maioria de nós está relativamente bem, mas sempre temos coisas a consertar.
– Eu me encaixo nessa maioria?
– Por enquanto não – ele sorriu. Tive medo que seus lábios rasgassem – mas quem sabe o futuro?
– Benjamin tentou me atacar hoje de manhã – disse a primeira coisa que me veio a memória.
Meu médico respirou fundo e ruidosamente, como se isso lhe doesse.
– Já disse isso tantas vezes para Jacobs... ela não escuta. Benjamin não está em condições de reintegração. Precisa de mais tempo consigo mesmo em quartos brancos.
Eu vivi em um quarto branco quando era criança, não sei quanto tempo exato, pois era no subsolo, mas consegui contar cerca de 576 refeições. Três por dia, mais ou menos quatro anos.
– O que mais de... atípico?
– Fiz minhas atividades designadas e continuo a ler os Contos de Grimm para os trigêmeos do segundo andar. Isso os acalma.
– E isso te acalma?
– Sim. Gosto de ajudar. Me sinto bem.
– Esta é uma das primeiras qualidades que notei em você. Vamos continuar a trabalhar nisso, pode ser uma porta de escape para que consiga o controle absoluto por si mesma.
– Está dizendo que serei designada para uma função relacionada no futuro?
– Quem sabe?
Escondi as mãos unidas entre os joelhos, baixando o rosto.
– Como estão suas vozes, Alice?
Ergui o rosto, com os olhos arregalados.
As vozes, pensei. Meu Deus, as vozes... as vozes!
– Alice?
Enxuguei o suor que brotara violentamente em cima dos lábios.
– Elas estão... – não, Alice, elas não estão! – Bem.
– Coloca as vozes como se fossem pessoas.
– São vozes de pessoas, mesmo que elas só existam na minha cabeça.
– Não tiro seu mérito neste pensamento. Mas como devemos pensar nelas, Alice? Pessoas do seu passado que não se lembra? Criações da sua mente?... Alice, está ouvindo?
– Sim – e respiro. Fundo. Cada vez mais fundo – quero dizer, não.
Charlie. Eu preciso de você. O mais rápido possível.
– O que aconteceu para estar tão distraída?
– Pensativa – corrijo.
– Ainda persiste a dúvida.
– No momento não sei dizer. Tenho tanto a pensar...
A sra. Mendez e seus doze gatos. Bob, o garotinho de seis anos que quer ter asas de verdade. O reverendo Jacob Miles. A garçonete Marisa, que sonha em ter uma carreira de cantora internacional. Elisa, Jean e John, a velha Hildegard, as crianças da extinta Park Avenue, tio Will, o criador de pombos, o artista plástico da esquina de algum mundo que disse o nome só uma vez, tantos outros e...
Charles.
Meu Charlie.
Onde todos foram parar? Quando isso aconteceu? Como não percebi isso antes, a ausência! Está me queimando viva agora.
– Hoje eu pretendia aplicar alguns exercícios – continua meu psiquiatra – mas não vai conseguir concentração o bastante – ele rabisca furiosamente na lousa. Meu olhar está perdido, e não consigo controlá-lo – vá ate o andar da farmácia, sua medicação do mês vai estar te esperando. Quer que eu peça a Kin para te acompanhar?
– Não precisa – digo, tentando ver ele, e sorrir – desculpe pelo meu estado de hoje.
– Não tem motivos para isso. Vamos dar um jeito.
Me levanto assim que a porta desliza, se abrindo. O Dr. Chang nunca me acompanha até a porta, mas ele faz isso pela primeira vez.
– Uma última pergunta – ele diz, sussurrando – E quanto a Charles?
– O que tem ele?
– Ele está... bem?
Tento o deixar com um sorriso sereno.
– Sim. Melhor do que nunca.
Mesmo que eu insista, o Dr. Chang é irredutível, e ordena à sua secretaria para que me acompanhe até a farmácia. Pego minha sacola azul do mês, me despeço dela e caminho até a estação de metrô. Minha tornozeleira nunca me incomodou tanto.
Antes de voltar para casa, tenho uma coisa a fazer.
Um amigo para visitar. E pelo menos esse, vive no mundo real.
Senhoras e senhores, em breve conhecerão meu Gato de Cheshire particular.
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Vá Embora de Mim
Science FictionAlice é uma jovem diagnosticada com esquizofrenia paranoide. Ela vive numa instituição e tem cada minuto do dia meticulosamente controlado pelos seus médicos para que não perca o controle. Numa sociedade que isola permanentemente pessoas com doenças...