Capítulo 6 - Queimadura em 2º Grau e o Demônio Particular

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Meu segredo em estado físico agora morava debaixo do meu colchão.

Durante as noites daquela semana eu olhava seu retrato desenhado antes de dormir por vários minutos. Lá estavam seus olhos espertos e brilhantes, olhos que conseguiam se comunicar com tudo e todos. Parte da franja cobria seu rosto, enquanto eu lembrava com nitidez de como era sentir aqueles fios roçando minhas bochechas. Seu queixo quadrado e forte e seus lábios finos estavam escondidos na gola alta, mas em meus sonhos ainda podia vê-los. Lembro de uma vez que nos perdemos de propósito entre ruas estreitas de uma noite quente em Nova Deli no Festival das Cores. Lembro-me do seu queixo pintado de gulal azul, enquanto pó cor de rosa descia pelos fios do meu cabelo. Nós dois corríamos entre os passantes, uns jogando cores nos outros. Deus, eu ri tanto... foi o melhor dia da minha vida.

Foi a primeira vez que fui beijada entre chuvas de cores e perfumes. Eu esmagava pétalas de flores debaixo do tênis enquanto os braços de Charles seguravam os meus, enquanto seus lábios com gosto de nicotina me deixavam irremediavelmente viciada.


     É claro que, assim que acordei na minha cidade, no beco ao lado de casa, depois de ter sido dada por desaparecida há três dias, me convenceram que eu havia entrado em mais um surto psicótico e havia tentado fugir de algum medo imaginário. Depois de ficar internada por uma semana no hospital, todos os dias um profissional diferente sentava ao lado da minha cama e me pedia para contar onde eu havia ido. Eu contava a história de Nova Deli com detalhes, mas nunca acreditaram em mim. Não havia filmagens em nenhum aeroporto do mundo que comprovasse minha história, e minha tornozeleira apenas havia parado de funcionar porque eu havia batido nela com força em alguma parede. Então a trocaram e me submergiram em mais uma sessão de psicotrópicos que me forçavam a viver no escuro enquanto médicos frios vasculhavam meu cérebro.

Agora, eu sabia.

Eles nunca haviam encontrado nada, e nunca encontrariam, embora me dissessem o contrário. Eu não tinha uma fissura no crânio fazendo pressão intracraniana. Eles jamais viram um rastro que comprovasse a teoria de morte repentina de conexões neurais.

Na verdade, eu apenas as aumentava em minhas experiências no mundo, e Charles tentava me mostrar aquilo, toda vez que havia me levado, janela à fora.

Eu sou uma pessoa normal. Mas o mundo e seu sistema que o rege querem me impedir de acreditar nisso.

Por qual motivo?

O que eu havia feito de errado?


Agora, eu tinha de descobrir sozinha. Pois nem Charles, nem ninguém que supostamente morava em minha mente estava ali para me dar alguma resposta. Eu os tive por muito tempo, e preferi acreditar na mentira confortável de que era louca, sem responsabilidade por meus atos e que nenhuma das pessoas que conheci ou lugares que visitei eram reais.

Eu deixei Charles na condição da inexistência. E me lembrava de como seus olhos espertos haviam ficado tristes quando finalmente aconteceu.

Lembrei-me da ocasião que os mandei ir embora três dias depois, enquanto estava na lavanderia, fazendo o meu turno de passar roupa dos outros internos.

Charles não havia me levado longe, quando me desvencilhei de seu aperto em minhas mãos. Fiz o que o Dr. Chang havia me ensinado a como expulsar meu demônio particular assim que ele voltasse.

Ele é parte da sua imaginação, ele me disse. Então terá de quebrar parte do seu coração para conseguir isso.

E foi o que eu fiz. Expulsei Charlie de mim da pior maneira. Eu discuti, gritei, não queria ouvi-lo. Quando ele insistiu, o empurrei tão forte que ele caiu no chão.

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