Capítulo 4 - o boxeador, o rum de benzodiazepínicos e o sonho com Charlie

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     Eu sou uma das internas de confiança da Sra. Jacobs, e mesmo que ela me odeie até a última gota do sangue, precisa de mim para algumas tarefas. A cada quinze dias ela me deixa com o dinheiro exato para uma compra pesquisada previamente no armazém de sua confiança, que fica a seis quadras de... casa. Faço compras para ela, mas a maioria é de itens pessoais, nós não iríamos consumir coisas tão boas, como biscoitos recheados de geleia de goiaba ou leite fresco.

No armazém, Frank me dirige um rápido olhar assim que eu entro. Ele é um senhor na meia-idade, dono do lugar. Seus filhos adolescentes estão organizando produtos nas prateleiras, os cumprimento e desdobrando a lista começo a encher meu carrinho. Os filhos de Frank – Joshua e Adan – são como o pai: altos, de uma pele negra de tom uniforme. Eles têm sorrisos lindos e olhos rasgados de um tom castanho-claro. Assim como o pai, nunca me trataram como uma doente mental, apenas como uma cliente qualquer. Sei que no passado, se eu tivesse autorização para estudar em uma escola regular nós seríamos da mesma escola. Passei alguns momentos da vida com eles, entre breves brincadeiras, risadas rápidas e comparações de cicatrizes. Nos primeiros anos eu sempre ia até lá acompanhada da Sra. Jacobs, mas quando ela ficou mais velha e mais atacada de artrite, passou a me deixar ir sozinha.

– Voltando da consulta? Não acredito que ainda não internaram uma menina tão louca – Joshua sempre tira sarro de mim. Este é o seu modo de lidar com nossas diferenças e aceito, pois me identifico com o seu humor ácido.

– Sim, Tweedledee, o Coelho Branco me deu os frascos de Beba-me do mês.

– Ele não está te tratando, sabia disso?

– Ah, é?

– É apenas rum – disse Adan, ou melhor, Tweedledum se juntando à conversa – rum doce, aromatizado com benzodiazepínicos, um clonazepam para te deixar calma. E alcoólatra.

– Duvido que tira o conta gotas do frasco para tomar um gole puro – disse Joshua.

– Duvido mesmo! – Seu irmão complementou.

Ri dos dois, dando tapinhas em seus rostos.

– Parem de sonhar meninos, pés no chão, okay?

– Não estão perturbando a Alice outra vez, não?! – Nos viramos em direção à voz de Frank.

Frank era da altura dos filhos, mas muito mais maciço. Ele lutou boxe na adolescência e nunca havia parado de treinar. Tinha o cabelo raspado, um cavanhaque levemente grisalho contrastando a pele negra. Os olhos eram pretos como penas de um corvo, mas seu sorriso era mais pronunciado que dos filhos, mais rasgado, como se ao sorrir ele pudesse mostrar o dobro de dentes. Na época do boxe ele ganhou um golpe em sua homenagem: Golpe de Cheshire. Ele sorria daquela forma hipnótica antes de dar um soco certeiro no meio da cara do adversário.

– Olá, Alice.

– Oi, Frank.

– Parece ansiosa.

– E estou. Muito.

– Vamos conversar. Meninos, terminem de empacotar as coisas da Alice e cuidem do atendimento, vou estar lá atrás.

Ter Frank como aliado é um dos únicos presentes que tive na vida. Ele era uma das pessoas mais íntegras que eu já conheci. Morava num apartamento em cima do armazém, que herdou do pai logo depois que se casou. Assim que sua esposa teve os gêmeos, os sintomas começaram a aparecer: mãos trêmulas, dificuldade para falar, perda do sentido do equilíbrio, tonturas, lapsos de memória e períodos de cegueira. Quase de imediato foi diagnosticada com Esclerose Cerebral, que a mergulharia em anos de demência. Ela foi tratada como eu, até morrer, pouco antes dos meninos fazerem dois anos.

Vá Embora de MimOnde histórias criam vida. Descubra agora