Descrição #01 - O básico e a regra dos cinco sentidos

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Saber descrever bem uma cena é um dos maiores trunfos que um escritor pode ter. Quando usada corretamente, a descrição pode elevar sua história a um novo nível e encantar ainda mais o leitor. O problema, é claro, é saber quando e como fazer uma boa descrição.

Gostaria de frisar que boa descrição não significa descrição extensa e cheia de detalhes. Há livros, como As Crônicas de Gelo e Fogo, em que as descrições são bem longas, mas (na minha opinião) não são maçantes. Há outros, como Percy Jackson, em que as descrições são bem curtas e rápidas, e mesmo assim o livro é muito bom. Ou seja, se você tem essa ideia de que descrição boa é igual a descrição longa, é melhor começar a refletir sobre isso.

É claro que você pode preferir uma descrição mais extensa. Eu adoro livros enormes com descrições maiores ainda, mas essa é minha preferência. Tem gente que morre de tédio lendo coisas assim. O segredo é encontrar a medida certa para sua história e, também, para seu público.

Mas para que serve a descrição?

Mostrar seu estilo ("voz de escritor"). Ao descrever uma cena, não importa se é de ação ou não, você mostra ao leitor o seu jeito de escrever e, assim, tem a oportunidade de fazê-lo perceber que você não é só mais um escritor no mercado. Você tem a chance de mostrar sua própria voz, sua própria escrita, e, desse modo, ficar marcado na memória dele.Estabelecer a "atmosfera" da cena. Uma cena triste não vai conseguir, provavelmente, passar toda a tristeza que você quer que ela passe somente com diálogos. A descrição te ajuda a conectar o leitor aos personagens.Estabelecer seus personagens e o lugar onde a história se passa. Se você quer que o leitor ache que seu protagonista é teimoso, uma boa dica é fazer isso através das ações desse personagem. O diálogo vai ajudar, mas é ao descrevê-lo sendo teimoso que o leitor vai capturar, enfim, a essência de seu personagem.

Lembre-se:

Descrição não é somente visão. Visão é praticamente nosso sentido mais usado, mas não é o único que temos. Seu personagem tem cheiros, texturas, sons e gostos para sentir, assim como nós. E, também, possue emoções, e essas emoções refletem no ambiente e naqueles à sua volta. Não use só a visão para descrever sua história.Descrição não significa detalhes. Quase contradizendo a dica de cima, mas é verdade. Nem toda cena precisa ter todos os cinco sentidos e ainda o que seu personagem está sentindo. O certo é equilibrar a descrição ao longo da história.Descrição só é necessária para o que é importante para sua história. Passar três páginas descrevendo o modo como o mercado da esquina funciona só porque seu personagem passou por ele é um erro. Descreva somente o que vai ser relevante para sua história ou para o estabelecimento do lugar onde a história se passa (e aqui não importa se o lugar foi criado por você ou não).

Agora que já vimos o básico de descrições, vejamos a regra dos cinco sentidos, que segue praticamente o que foi dito no primeiro item da seção acima: visão não é nosso único sentido.

Para fazer bem uma cena de descrição usando os cinco sentidos, você deve encarnar seu personagem. Uma coisa que faço muito antes de escrever algo assim é fechar os olhos e imaginar tudo o que acontece. Se meu personagem está em uma floresta à noite, pergunto-me o que ele vê, quais cheiros sente, se está tocando em algo ou ouvindo algo, etc. Só parto para a escrita de fato quando já tenho certeza do que quero passar com a cena.

Veja um exemplo:

A garota caminhava, hesitante, pela floresta, levando na mão a bota suja que se rasgara apenas poucos minutos atrás. A trilha que seguia era estreita e sinuosa, escalando os pequenos montes e embrenhando-se cada vez mais na mata. Com o capuz puxado sobre a cabeça, ela adiantou o passo, ignorando a lua que brilhava fracamente além das árvores escuras. Tudo o que queria era chegar em casa.


Essa é uma cena boazinha, mas não passa muita coisa. Sabemos que a garota está caminhando pela floresta de noite, que está indo para casa, que a trilha é estreita e que por algum motivo sua bota rasgou. Só.

Agora veja esse:

A garota caminhava, hesitante, pela floresta.

A grama úmida pinicava seu pé direito a cada passo, e de vez em quando ela pisava em uma pedra mais afiada ou em algo gosmento que enviava um esgar de nojo à sua face. O ar estava tão frio que seus dedos enregelados e aprisionados à única bota boa que lhe restara latejavam dolorosamente; os de sua mão haviam perdido a sensibilidade há tempos, e ela os mantinha enfiados nos bolsos do grande casaco vermelho. A bota rasgada era uma companheira enlameada, batendo de modo rítmico em sua perna, presa somente por um cadarço velho ao seu pulso.

A trilha seguia, estreita, sinuosa e coberta de grama, por entre as árvores altas e desfolhadas, escalando os pequenos montes que se espalhavam pela floresta. Era cheia de pedras, poças de lama e galhos caídos, para seu azar e aborrecimento. Chegaria tão suja em casa que a mãe seria capaz de colocá-la para fora de novo, apenas para não lhe sujar o tapete. Seguir o atalho da floresta havia sido burrice, ela percebia, e culpa do garoto magricela do vilarejo; amanhã o faria pagar, decidiu, mordendo o lábio descorado.

Um trovão interrompeu seus pensamentos e a fez fungar, irritada. O cheiro de chuva e terra molhada já se espalhava novamente, e em breve acabaria tomando outro banho. Resignada, a garota puxou o capuz sobre a cabeça e acelerou o passo, ignorando o fraco brilhar da lua quase engolida pelas nuvens de tempestade. Mesmo que a mãe fosse brigar com ela, refletiu, estava mais do que ansiosa para chegar em casa.


Esse trecho, além de ser maior, também passa muito mais coisas do que o primeiro. Não chega a ser bom porque sou eu escrevendo, masss. Agora sabemos que está um frio de lascar, que ela pode escutar trovões e sentir o cheiro de terra molhada, além de tatear as coisas que há na trilha. Há também os pensamentos e emoções da personagem, que adicionam mais elementos à cena.

Em resumo, é melhor que o primeiro, mas é óbvio que fazer isso em todas as cenas transformaria seu livro em algo praticamente impossível de se ler. Como eu disse lá em cima, o importante é ter equilíbrio e saber a medida certa de descrições.

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