Capítulo 8 - One Thing

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Sobre a cama no porão da Sra. Fighbright havia quatro caixas distintas que ainda aguardavam pacientemente a minha vontade de carrega-las para o apartamento. Era um lembrete de que muito em breve aquele lugar aconchegante em Nova Iorque estaria vazio e que Katerina Dalton não moraria mais ali com seus problemas familiares, sentimentais e psicológicos. Ou pura e simplesmente um sinal de que estava com medo de sair da minha zona de conforto.

Opção número dois.

Sem meus livros, roupas penduradas, chinelos embaixo da cama e o miado adorável de Tabby ao abrir a porta; o porão se tornava de fato uma toca, lembrando que alguma criatura morou ali durante um período quente do mundo e agora estava migrando para novos ares com a chegada do inverno (o que era uma coisa muito boa, já que agora o aquecimento do apartamento funcionava e do porão não. Obrigada Sr. Campbell pela indicação do serviço de reparos).

Lex estava comigo naquele final de segunda feira, ajudando a colocar dentro de seu carro apertado, o resto da quinquilharia que envolvia as benditas caixas.

— Deus! O que tem aqui dentro, Kate? Tijolos?

— São livros.

— Enciclopédias inteiras, eu aposto! Se todo este peso furar algum pneu do carro, o custo é seu, já aviso.

Óbvio que o peso não furaria nenhum pneu do amado automóvel do senhor Alexander, mas era engraçado vê-lo reclamar em carregar as caixas por alguns metros até o porta malas e simular uma crise de suor em uma noite tão fria como aquela. Seus dreads estavam embolados embaixo de uma touca de crochê engraçada, que dava a aparência de que o gerente tinha uma colmeia escondida no topo da cabeça e sua respiração pesada formava nuvens perto do seu nariz vermelho de frio.

Enquanto ele resmungava com a terceira caixa degraus acima, puxei a última caixa para perto, pronta para sair definitivamente dali. E teria saído se o livro no topo não tivesse chamado a minha atenção.

Shakespeare estava ali, com sua capa dura e negra, letras douradas e sérias, olhando na minha direção. Durante todos aqueles dias desde a partida dos ingleses e o último esbarrão na livraria, não havia tocado o livro nenhuma vez. Parecia que se abrisse aquelas páginas acabaria por me deparar com uma sobrancelha arqueada e um olhar de desagrado, talvez até escutar aquele sotaque inglês declamando algum soneto apenas para me atazanar com uma indireta clássica.

Se eu abrisse o livro, estaria concordando com Samantha e suas risadinhas, e assinando um termo sem volta de que sentia alguma falta daquele nariz-empinado-petulante-insuportável-frio-metido-a-sabe-tudo nas quartas da minha vida.

Não queria assinar nada, muito obrigada.

— Só falta essa, Kate? — Lex surgiu pela porta para me salvar dos pensamentos sobre as obras completas de Sir Shakespeare.

— Sim, é a última, Lex. Terminamos.

Ele apanhou a caixa com um sorriso, me examinando de canto e sem reclamar. Sabia que Lex entendia que precisava de um pequeno momento sozinha com o porão que era tão meu depois daquele longo ano. Era uma despedida de qualquer forma.

Assim que ele saiu para as escadas, analisei os cantos vazios dos armários embutidos, dedilhei a pedra da pia, respirei fundo o cheiro do porão que ainda tinha um pouquinho de Katerina Dalton em suas quinas. Afaguei o colchão da cama, as cortinas na janela e retirei meu chaveiro do molho de chaves, antes de encaixar na maçaneta e dedicar um sorriso tristonho para o lugar que me acolheu tão bem quando mais precisei.

— Obrigada por tudo. Espero que seus novos moradores cuidem bem de você. Adeus.

A mão de Lex pesou no meu ombro quando terminei de trancar a porta e ganhei um abraço apertado antes de andarmos abraçados até a calçada, fechando o portão de ferro que ainda rangia alto. Ele entendia que era um momento delicado. Nunca me senti em casa quando morava com minha mãe, nem mesmo quando mais nova com a minha família bagunçada e cheia de problemas. Em Nova Iorque pude recomeçar, mesmo que todos julgassem o porão por não ser uma casa de verdade — agora eu sentia que ele tinha feito parte de mim de alguma forma e contribuído para o que estava me tornando.

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