Ao terminarem as aulas, vejo o carro de Catarina estacionado e sinto um calafrio no mesmo instante. Ela abaixa o vidro escuro, me encarando. Agarrada à Théo, Thalita me lança um olhar preocupado.
— Soph, me manda mensagem se precisar de ajuda.
Assinto, me despedindo dos meus amigos e encurtando distância até o veículo. Ponho o semblante mais calmo que consigo no rosto quando entro. Ela não pode saber que presenciei a conversa. Nem da minha suspeita sobre estar tramando algo contra mim. Tento imaginar que é mais um dia comum. Não há nada esquisito acontecendo.
— Oi, tia — digo, por fim.
— Olá, sobrinha — ela cantarola vagarosamente enquanto digita algo no celular. — Percebi que uma de minhas joias sumiu recentemente. Você não está com ela, não é?
Seus olhos me estudam através do espelho do carro, dois raios laser dourados escaneando meu semblante à procura de alguma pista. Porém não me encolho no banco. Encaro-a de volta. Joia. Penso no colar que encontrei e percebo que realmente há algo sinistro sobre ele que ainda não sei. Mas Catarina sabe. E está sondando.
— Hã... joia? — Franzo a testa. — Não, faz meses não mexo nelas pra polir. Tem certeza de que Clarisse não pegou? Ela adora usar suas coisas emprestado.
Ela bufa, impaciente. Está para proferir alguma atrocidade agora, porém somos interrompidas pela conversa animada de suas filhas. Solto um suspiro aliviado.
Sara nos cumprimenta e logo se senta no banco ao lado da mãe, completamente entretida no assunto da irmã.
— E aí, pelo que as meninas do 3ºA disseram, faz pouco tempo que ele veio morar aqui em São Paulo. Achei ele uma pessoa legal, mas muito na dele, sabe? — Clarisse conta.
— Ele me parece meio antipático. — Sara coloca o cinto enquanto o carro sai do estacionamento.
A irmã rebate.
— Antipático nada! Misterioso. É o charme dele, ué.
— Não acha que tá sendo um pouco emocionada? Ele acabou de aparecer na escola. E você nem conhece esse menino direito.
Ah. Esse assunto de novo.
— Sara tá certa — me intrometo.
Clarisse faz uma careta.
— E quem pediu sua opinião aqui, orelhinha?
— Ninguém pediu, aliás nem ligo pra quem você tem crush ou não. — Cruzo os braços. — Mas é melhor avisar antes que você me obrigue a fazer papel de cupido pra mais algum menino do terceiro ano e ele acabe terminando contigo por mensagem.
— Sophia, o que eu já lhe disse sobre ter cuidado com o que diz? — Catarina vai ao socorro da filha. Resmungo, porém, não digo mais nada. Considerando como as coisas estão no momento, não estou tão ansiosa para discutir com ela.
Clarisse volta a tagarelar com a irmã e prevejo o que terei que fazer no futuro. Cupido é apenas uma de muitas ocupações. Além de empregada doméstica, também sou professora particular. Manicure. Babá. Garota de recados.
Não por livre e espontânea vontade. Para falar a verdade, esse é talvez o único motivo para Catarina me matricular em uma escola daquele porte junto com as minhas primas. Me obrigar a ser uma espécie de serviçal, uma criada do século XXI, completamente disponível e obediente. Sem folga nenhuma.
Assim que chegamos em casa, preparo o chá de Catarina e o levo até seu escritório, um ambiente com muito mogno e cheiro de lavanda, com uma porta para a biblioteca, onde ela costuma passar a tarde. Ela pega a xícara sem prestar tanta atenção, já muito atarefada em seu notebook, então aproveito a oportunidade para me afastar antes que o assunto da joia volte à tona. Em seguida, depois de beber uns goles de café para me manter acordada, tomo um banho bem quente e me arrumo para o trabalho, que fica a alguns quarteirões da estação de metrô. A pequena loja fica numa rua tranquila, e o melhor, longe da livraria principal onde minha tia tem o hábito aparecer, para o meu alívio. Passar mais horas com ela do que o normal seria uma tortura.
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O destino de Cinderela
FantasiANTIGO "COMO SER UMA BORRALHEIRA". NOVOS CAPÍTULOS TODA SEXTA-FEIRA, 18H. Falta apenas um ano para que Sophia se veja livre de sua tia Catarina, uma mulher capaz de fazer a garota passar pelos piores sufocos só pelo prazer de humilhá-la. Convivendo...