Palestrante

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Minha caneta agora rabisca o papel sem ter um objetivo. Ou talvez o objetivo seja apenas rabiscar o papel.

Fito novamente no relógio e posso afirmar, com toda a certeza que me resta, que a cinco minutos atrás os ponteiros estavam no mesmo lugar.
Olho em volta. Todas essas pessoas também estavam nas mesmas posições desde a ultima vez que as observei. Concentradas no que o palestrante fala.

Eu tentei me concentrar. Comecei a anotar. Mas agora parece que já faz horas que ele gasta sua saliva sem que eu entenda o que diz.

Quem sabe, se eu tentar novamente, possa ficar com o olhar fincado nele como os outros.

Talvez eles estejam admirando esse terno negro que ele usa. Pra mim,  aparenta ser um terno normal. Um bom terno, mas normal. Provavelmente também tenham notado a forma como ele gesticula bem. As mãos dele se movimentam com as palavras sem que ambas fiquem perdidas. Parece que suas mãos sempre sabem qual o próximo movimento a ser feito. Devem ter ensaiado. É isso. Suas mãos são ensaiadas.

Mas e a boca que sempre aparentando um sorriso no canto dos lábios? Será proposital? Claro que sim. Ele deve ter percebido o quão fica atrante assim.

Seus olhos percorrem todo salão. Ele analisa a reação que seu texto causa em nós. Será mesmo apenas seu texto que nos causa reações? 

Seus olhos são tão bonitos. Acredito que sejam azuis. Ou não. São verdes. A essa distancia, com a luz que incide, aparentam ser verdes.

Ele parece um homem culto. Fala bem. Será que leu Machado de Assis? Poderíamos conversar sobre isso. Teríamos muito em comum. Ele concordaria comigo que bentinho foi traído e ririamos sobre os apelidos que poderíamos atribuir a Capitu.

Conversariamos sobre os lugares aos quais ele viajou e eu contaria sobre o meu cursinho preparatório. Ele começaria a falar sobre os planos de me levar para conhecer o mundo e sobre as filosófias que ele pretende me ensinar.

Eu diria que acho Paris um lugar Clichê e ele concordaria. Em sua mente ele frustradamente procuraria outro lugar para me pedir em casamento. Falariamos sobre o nome dos filhos e se o incentivariamos a aprender piano. Ele diria que sim. Piano e violão. Precisam aprender bossa nova.

No nosso apartamento a beira mar, max, nosso cachorro, ficaria feliz toda vez que chegássemos em casa. Nos receberia sempre aos pulos e com o rabo a abanar.

Ah, como seremos felizes palestrante!

Não, não faça isso. Não desça do palco. Precisamos fazer nosso primeiro contato visual. Volte. Seriamos um belo casal.

Tudo bem. Talvez não tenha sido para ser. Só eu amei. Ele não deu valor. Vou superar.

E aliás, já até subiu outro homem. Que belo terno!

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