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         [freda]

            Ninguém podia negar que a minha vida era feita de calamidades; primeiro o facto de me terem feito assim, tão alaranjada como um raio de sol na primeira semana de verão, segundo o meu gosto requintado e irreverente que deixa todos com aquela típica e irritante expressão de "Mas quem és tu? Um extraterrestre?", terceiro a minha inexistente vida amorosa, que neste momento mais parece um filme mudo cheio de mistérios e compilações ranhosas de uma rapariga desorientada em busca do seu amado, e por último mas não menos importante, a minha sumptuosa queda esta tarde, que me deixou o braço marcado de nódoas negras e mais dorido que sei lá o quê. Agora, para acrescentar a esta interessantíssima lista, há o facto de eu não conseguir dormir, por todas as razões acima numeradas, exatamente na véspera do teste de Literatura.

            Leah chegou ao dormitório por volta das dez e meia, mas como eu já estava deitada e ela não pareceu reparar nos meus olhos abertos e atentos, não lhe disse nada e observei-a em silêncio. Deitou-se dez minutos depois, já com o pijama vestido e lançando ao ar resmungos que eu percebi serem dirigidos a um rapaz, sobretudo pela forma como eram ditos e pelos pronomes utilizados. Quando o relógio marcou a meia-noite, um suspiro profundo abandonou os meus lábios e eu percebi que não iria conseguir adormecer.

            Às seis e quarenta e cinco, uma eternidade depois, quando Leah ressonava e tudo parecia vazio e silencioso, ouvi passos atrás da porta, e ao olhar naquela direção, reconheci a sombra e os sussurros que comprovavam a presença de alguém. Por momentos pensei que podiam ser jovens rebeldes que se haviam escapulido para irem a algum bar ou algo do género, mas foi óbvio ao fim de alguns segundos que quem quer que fosse que ali estivesse, estava totalmente empenhado em fazer algo em concreto com o nosso dormitório.

            – Passa isso por debaixo da porta! – consegui entender. As vozes estavam tão abafadas e sussurradas que mal dava para distinguir se eram masculinas ou femininas, mas depreendi que fosse a primeira opção, e imediatamente me vim embrenhada em pensamentos acerca do anónimo entregador de pêssegos.

            Afastei os lençóis do meu corpo e levantei-me muito lentamente, tentando não ranger a cama, como era tão normal acontecer. Pé ante pé, caminhei até estar a um metro da maçaneta da porta, olhando para trás de vez em quando, na esperança de não ser a única acordada a ouvir aquela invasão. Claro que podia tirar o cavalinho da chuva em relação a Leah, que dormia mais pacificamente que uma rocha. Ainda assim pensei em acordá-la, podendo arranjar reforços numa possível reação em cadeia que nos levasse ao ataque furtivo, mas depois resolvi que o melhor era deixá-la estar. Eu não ia ter medo de uns amadores.

            Para a Freda, dizia no envelope que deslizou por debaixo da porta. Perdi cinco segundos a olhar para ele e a pensar no que fazer. Se abrisse a porta e confrontasse o anónimo, corria o risco de acordar o bloco dos dormitórios inteiro e arranjar sérios problemas com a direção escolar, além de que a magia se perderia toda e o suspense de saber o autor daquela mensagem iria pelo cano abaixo, assim, num estalar de dedos. No entanto, a minha curiosidade era maior.

            – Deixa-o aí! – voltei a ouvir. – Corre!

            Abri a porta com uma fúria desnecessária, vendo dois vultos já no fim do corredor. Jurei que um deles tinha um tufo verde na cabeça, mas podia ser um gorro ou algo do género, nada de incriminatório, e quando pensei que o melhor era efetivamente segui-los, o meu pé embateu num objeto sólido e redondo. Ao olhar para baixo lá estava ele, cor-de-laranja e bonito, um pêssego.

            – Freda? Que horas são? – ouvi atrás de mim, no momento em que menos precisava. Revirei os olhos e peguei na peça de fruta, fechando a porta devagar e voltando a aproximar-me da cama.

Peach » michael cliffordOnde histórias criam vida. Descubra agora