O Vale dos Suicidas

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Precisamente no mês de janeiro do ano da graça de 1891, fora eu surpreendido com meu 
aprisionamento em região do Mundo Invisível cujo desolador panorama era composto por vales
profundos, a que as sombras presidiam: gargantas sinuosas e cavernas sinistras, no interior das
quais uivavam, quais maltas de demônios enfurecidos, Espíritos que foram homens, dementados
pela intensidade e estranheza, verdadeiramente inconcebíveis, dos sofrimentos que os
martirizavam. Nessa paragem aflitiva a vista torturada do grilheta não distinguiria sequer o doce vulto 
de um arvoredo que testemunhasse suas horas de desesperação; tampouco paisagens confortativas, que pudessem distraí­lo da contemplação cansativa dessas gargantas onde não penetrava outra
forma de vida que não a traduzida pelo supremo horror! 
O solo, coberto de matérias enegrecidas e fétidas, lembrando a fuligem, era imundo, pastoso, escorregadio, repugnante!  O ar pesadíssimo, asfixiante, gelado, enoitado por bulcões
ameaçadores como se eternas tempestades rugissem em torno; e, ao respirarem­no, os Espíritos ali
ergastulados sufocavam­se como se matérias pulverizadas, nocivas mais do que a cinza e a cal,
lhes invadissem as vias respiratórias, martirizando­os com suplício inconcebível ao cérebro 
humano habituado às gloriosas claridades do Sol – dádiva celeste que diariamente abençoa a Terra –  e às correntes vivificadoras dos ventos sadios que tonificam a organização física dos seus
habitantes. Não havia então ali, como não haverá jamais, nem paz, nem consolo, nem esperança: tudo 
em seu  âmbito  marcado pela desgraça era miséria, assombro, desespero  e horror. Dir­se­ia a
caverna tétrica do Incompreensível, indescritível a rigor até mesmo por um Espírito que sofresse a
penalidade de habitá­la. O vale dos leprosos, lugar repulsivo da antiga Jerusalém de tantas emocionantes
tradições, e que no orbe terráqueo evoca o último grau da abjeção e do sofrimento humano, seria
consolador estágio de repouso comparado ao local que tento descrever. Pelo menos, ali existiria
solidariedade entre os renegados! Os de sexo diferente chegavam mesmo a se amar! Adotavam­se em boas amizades, irmanando­se no seio da dor para suavizá­la! Criavam a sua sociedade, divertiam­se, prestavam­se favores, dormiam e sonhavam que eram felizes! 
Mas no presídio de que vos desejo dar contas nada disso era possível, porque as lágrimas
que se choravam ali eram ardentes demais para se permitirem outras atenções que não fossem as
derivadas da sua própria intensidade! 
No vale dos leprosos havia a magnitude compensadora do Sol para retemperar os
corações! Existia o ar fresco das madrugadas com seus orvalhos regeneradores! Poderia o precito 
ali detido contemplar uma faixa do céu  azul... Seguir, com o olhar enternecido, bandos de
andorinhas ou  de pombos que passassem em revoada!... Ele sonharia, quem sabe? Lenido de
amarguras, ao poético clarear  do plenilúnio, enamorando­se das cintilações suaves das estrelas
que, lá no Inatingível, acenariam para a sua desdita, sugerindo­lhe consolações no insulamento a
que o forçavam as férreas leis da época!... E, depois, a Primavera fecunda voltava, rejuvenescia as
plantas para embalsamar com seus perfumes cariciosos as correntes de ar que as brisas diariamente
tonificavam com outros tantos bálsamos generosos que traziam no seio amorável... E tudo isso era
como dádivas celestiais para reconciliá­lo com Deus, fornecendo­lhe tréguas na desgraça. Mas na caverna onde padeci o martírio que me surpreendeu além do túmulo, nada disso 
havia! 
Aqui, era a dor que nada consola, a desgraça que nenhum favor ameniza, a tragédia que
idéia alguma tranqüilizadora vem orvalhar de esperança! Não há céu, não há luz, não há sol, não 
há perfume, não há tréguas! 
O que há é o choro convulso e inconsolável dos condenados que nunca se harmonizam! O
assombroso  "ranger de dentes"  da advertência prudente e sábia do sábio Mestre de Nazaré!  A
blasfêmia acintosa do réprobo a se acusar a cada novo rebate da mente flagelada pelas recordações
penosas! A loucura inalterável de consciências contundidas pelo vergastar infame dos remorsos. O
que há é a raiva envenenada daquele que já não pode chorar, porque ficou exausto sob o excesso 
das lágrimas! O que há é o desaponto, a surpresa aterradora daquele que se sente vivo a despeito 
de se haver arrojado na morte! É a revolta, a praga, o insulto, o ulular de corações que o percutir 
monstruoso da expiação transformou  em feras!  O que há é a consciência conflagrada, a alma
ofendida pela imprudência das ações cometidas, a mente revolucionada, as faculdades espirituais
envolvidas nas trevas oriundas de si mesma! 
O que há é o "ranger de dentes nas trevas exteriores" de um presídio criado pelo crime, votado ao martírio e consagrado à emenda! É o inferno, na mais hedionda e dramática exposição, porque, além do mais, existem cenas repulsivas de animalidade, práticas abjetas dos mais sórdidos
instintos, as quais eu me pejaria de revelar aos meus irmãos, os homens! 
Quem ali temporariamente estaciona, como eu estacionei, são grandes vultos do crime! É
a escória do mundo espiritual – falanges de suicidas que periodicamente para seus canais afluem
levadas pelo turbilhão das desgraças em que se enredaram, a se despojarem das forças vitais que se
encontram, geralmente intactas, revestindo­lhes os envoltórios físico­espirituais, por seqüências
sacrílegas do suicídio, e provindas, preferentemente, de Portugal, da Espanha, do Brasil e colônias
portuguesas da África, infelizes carentes do auxílio confortativo da prece; aqueles, levianos e inconseqüentes, que, fartos da vida que não quiseram compreender, se aventuraram ao 
Desconhecido, em procura do Olvido, pelos despenhadeiros da Morte! 
O Além­túmulo acha­se longe de ser a abstração que na Terra se supõe, ou  as regiões
paradisíacas fáceis de conquistar  com algumas poucas fórmulas inexpressivas. Ele é, antes,
simplesmente a Vida Real, e o que encontramos ao penetrar suas regiões é Vida! Vida intensa a se
desdobrar em modalidades infinitas de expressão, sabiamente dividida em continentes e falanges
como a Terra o é em nações e raças; dispondo de organizações sociais e educativas modelares, a
servirem de padrão para o progresso da Humanidade. É no Invisível, mais do que em mundos
planetários, que as criaturas humanas colhem inspiração para os progressos que lentamente
aplicam no orbe. Não sei como decorrerão os trabalhos correcionais para suicidas nos demais núcleos ou 
colônias espirituais destinadas aos mesmos fins e que se desdobrarão sob  céus portugueses, espanhóis e seus derivados. Sei apenas é que fiz parte de sinistra falange detida, por efeito natural
e lógico, nessa paragem horrenda cuja lembrança ainda hoje me repugna à sensibilidade. É bem
possível que haja quem ponha a discussões mordazes a veracidade do que vai descrito nestas
páginas. Dirão que a fantasia mórbida de um inconsciente exausto de assimilar  Dante terá
produzido por  conta própria a exposição aqui ventilada... esquecendo­se de que, ao contrário, o 
vate florentino é que conheceria o que o presente século sente dificuldades em aceitar... Não os convidarei a crer. Não é assunto que se imponha à crença, simplesmente, mas ao 
raciocínio, ao exame, à investigação. Se sabem raciocinar e podem investigar  –  que o façam, e
chegarão a conclusões lógicas que os colocarão na pista de verdades assaz interessantes para toda a
espécie humana! O que os convido, o que ardentemente desejo e para que tenho todo o interesse
em pugnar, é que se eximam de conhecer  essa realidade através dos canais trevosos a que me
expus, dando­me ao suicídio por desobrigar­me da advertência de que a morte nada mais é do que
a verdadeira forma de existir!... De outro modo, que pretenderia o leitor existisse nas camadas invisíveis que contornam
os mundos ou planetas, senão a matriz de tudo quanto neles se reflete?!... Em nenhuma parte se encontraria a abstração, ou o nada, pois que semelhantes vocábulos
são inexpressivos no Universo criado e regido por uma Inteligência Onipotente! Negar o que se
desconhece, por se não encontrar à altura de compreender o que se nega, é insânia incompatível
com os dias atuais. O século convida o homem à investigação e ao livre exame, porque a Ciência
nas suas múltiplas manifestações vem provando a inexatidão do impossível dentro do seu cada vez
mais dilatado raio de ação. E as provas da realidade dos continentes superterrenos encontram­se
nos arcanos das ciências psíquicas transcendentais, às quais o homem há ligado muito relativa
importância até hoje. O que conhece o homem, aliás, do próprio planeta onde tem renascido desde milênios, para criteriosamente rejeitar o que o futuro há de popularizar sob os auspícios do Psiquismo?... O
seu  país, a sua capital, a sua aldeia, a sua palhoça ou, quando mais avantajado de ambições, algumas nações vizinhas cujos costumes se nivelam aos que lhe são usuais?..
Por toda a parte, em torno dele, existem mundos reais, exarando vida abundante e intensa:
e se ele o ignora será porque se compraz na cegueira, perdendo tempo com futilidades e paixões
que lhe sabem ao caráter.
Não perquiriu  jamais as profundidades oceânicas –  não  poderá mesmo fazê­lo, por 
enquanto. Não obstante, debaixo das águas verdes e marulhentas existe não mais um mundo 
perfeitamente organizado, mas um universo que assombraria pela grandiosidade e ideal perfeição! 
No próprio ar que respira, no solo onde pisa encontraria o homem outros núcleos organizados de
vida, obedecendo  ao impulso inteligente e sábio de leis magnânimas fundamentadas no 
Pensamento Divino, que os aciona para o progresso, na conquista do mais perfeito! Bastaria que se
munisse de aparelhamentos precisos, para averiguar  a veracidade dessas coletividades
desconhecidas que, por serem invisíveis umas, e outras apenas suspeitadas, nem por isso deixam
de ser concretas, harmoniosas, verdadeiras! 
Assim sendo, habilite­se, também, desenvolvendo os dons psíquicos que herdou da sua
divina origem... Impulsione pensamento, vontade, ação, coração, através das vias alcandoradas da
Espiritualidade superior... e atingirá as esferas astrais que circundam a Terra! 
Era eu, pois, presidiário dessa cova ominosa do horror! 
Não habitava, porém, ali sozinho. Acompanhava­me uma coletividade, falange extensa de
delinqüentes, como eu.
Então ainda me sentia cego. Pelo menos, sugestionava­me de que o era, e, como tal, me
conservava, não obstante minha cegueira só se definir, em verdade, pela inferioridade moral do 
Espírito distanciado da Luz. A mim cego  não passaria, contudo, despercebido o que se
apresentasse mau, feio, sinistro, imoral, obsceno, pois conservavam meus olhos visão bastante para
toda essa escória contemplar – agravando­se destarte a minha desdita. Dotado de grande sensibilidade, para maior mal tinha­a agora como superexcitada, o que
me levava a experimentar também os sofrimentos dos outros mártires meus cômpares, fenômeno 
esse ocasionado pelas correntes mentais que se despejavam sobre toda a falange e oriundas dela
própria, que assim realizava impressionante afinidade de classe, o que é o mesmo que asseverar 
que sofríamos também as sugestões dos sofrimentos uns dos outros, além das insídias a que nos
submetiam os nossos próprios sofrimentos.1 

Memórias de um SuicidaOnde histórias criam vida. Descubra agora