Os arquivos da alma

229 6 0
                                    

"Honrai vosso pai e a vossa mãe."
(Decálogo) 
Êxodo, 20:12

Ia entardecendo. As sombras se acentuavam no horizonte plúmbeo da pesada região. Descemos para o pavimento imediato e, pelo trajeto, arrisquei uma interrogação: “— Desculpai, Revmo. Padre, o desejo de investigar pormenores de um assunto que tão 
bem soube aos meus sentimentos de cristão e à minha preocupação de aprendiz: Como chegam os
diretores desta magna Instituição a saber que Espíritos infelicitados pelo suicídio são aprisionados
por falanges hostis, encontrando­se desaparecidos?...”
“—  Se nos comprometemos perante Jesus ao serviço de auxiliares do seu  ideal de
redenção, filiando­nos à Legião patrocinada por Sua venerável Mãe — respondeu prontamente —, manteremos técnicos nesta Torre com o mister exclusivo de procurar os desaparecidos, auxiliados
com o emprego infalível dos aparelhos que acabastes de entrever... Têm eles, cada um, demarcadas
as regiões que deverão sondar... Por sua vez, antigos opressores, regenerados sob nossos cuidados
e adidos ao  corpo de milicianos, tocados pelo arrependimento vêm, voluntariamente, indicar 
localidades do Invisível ou da Terra, do seu conhecimento, onde são aglomeradas as vitimas da
opressão obsessora e onde as maiores atrocidades se praticam. Verificados exatos, esses locais
serão visitados e saneados... Geralmente, porém, os avisos e as ordens vêm de Mais Alto... de lá, onde paira a assistência magnânima da piedosa Mãe da Humanidade, a Governadora de nossa
Legião... Se as entidades em apreço não pertencem à sua tutela direta de Guardiã, poderá o 
Guardião da falange ou da legião a que pertencerem impetrar o seu favor em prol dos transviados,
seu amoroso concurso para o alvo a ser colimado, porquanto existe fraterna solidariedade entre as
várias agremiações do Universo Sideral, infinitamente mais perfeitas que as existentes entre as
nações físico­terrenas... Outrossim, por mais desgraçado e esquecido que seja um delinqüente, existirá sempre quem o ame e por  ele sinceramente se interesse, dirigindo apelos fervorosos a
Maria em seu favor, quando não o fizerem diretamente ao Divino Mestre ou ao próprio Criador!
Se, portanto, um suicida não deixa na Terra alguém que se apiede de sua imensa desgraça, concedendo­lhe brandas e carinhosas expressões de caridade através da Prece generosa, será bem
certo que no Além haverá quem o  faça: afeições remotas, antigos amigos, temporariamente
esquecidos graças à encarnação; seres queridos que o acompanharam em peregrinações pregressas
na Terra; seu tutelar, o amoroso Guardião que lhe conhece todos os passos, como seus menores
pensamentos, assisti­lo­ão com os veros testemunhos do amor fraterno, que cultivam à inspiração 
do amor de Deus! Se é dirigida a Maria a súplica, imediatamente ordens serão expedidas a seus
mensageiros, as quais, por estes distribuídas aos vários postos e institutos de socorro e asilo aos
suicidas, mantidos pela Legião, indicam aos servidores o momento das atividades em torno do 
novo sofredor; seu  nome, sua nacionalidade, a data do desastre, o local em que se verificou, o 
gênero de suicídio escolhido. Com tais informes, se, por exemplo, o indivíduo em questão 
encontra­se em região pertencente ao raio de nossas ações, a busca será feita pelos servos da
Vigilância, conforme ficou dito. Onde quer que se encontre será localizado a despeito de quaisquer 
sacrifícios! Geralmente, se não foi arrebatado da situação normal ao caso pelas hordas perversas e
obsessoras que o assediavam desde antes, o trabalho será fácil. Se, no entanto, a tarefa, por muito 
espinhosa e árdua, carecer do concurso de outros elementos de nossa mesma Legião ou estranhos a
ela, temos o  direito de solicitá­los, sendo prontamente atendidos. Há casos, como ficou 
esclarecido, em que nos vemos na necessidade de apelar até para o concurso de elementos
inferiores, isto é, o auxílio de falanges que nos ficam abaixo em moral e esclarecimentos! 
No entanto, se a outro eminente Espírito for dirigida a súplica, será esta encaminhada a
Maria e seguir­se­ão as mesmas providências, pois, como vimos afirmando, é Maria a sublime
acolhedora dos réprobos que se arrojaram aos temerosos abismos da morte voluntária... Tudo isso,
porém, não quererá certamente dizer  que nossa Excelsa Diretora precisará esperar súplicas e
pedidos de quem quer que seja a fim de tomar suas caridosas providências! Ao contrário, estas
foram perenemente tomadas, com a manutenção dos postos de observação e socorro especiais para
suicidas; com os não  especializados, mas que igualmente os acolherão em ocasião oportuna, disseminados por toda a parte, no Invisível como na Terra, e com os próprios dispositivos da lei de
amor e fraternidade, que manda pratiquemos todo  o bem possível, fazendo ao próximo o que
desejaríamos que ele nos fizesse, lei que no Invisível esclarecido é amorosa e rigorosamente
observada! 
De qualquer forma, porém, a Prece, como vistes, externada com amor e veemência em
favor de um suicida, é o sacrossanto veículo  que carreia, em qualquer  tempo, inestimáveis
consolações, mercês celestes para aquele desafortunado, porquanto é um dos valiosos elementos
de socorro estatuídos pela citada lei em favor dos que sofrem, elemento com o qual ela conta a fim
de acionar vibrações balsamizantes necessárias ao tratamento que a carência do mártir requer, constituindo, por isso mesmo, erro calamitoso a negativa, por parte das criaturas terrenas, desse ato 
de solidariedade, interesse e beneficência, pela injusta suposição de que seria inútil sua aplicação 
por irremediável a desgraçada situação  dos suicidas! A Prece, ao contrário, torna­se ato de tão 
louvável e prestimosa repercussão, que aquele que ora, por um de vós, faz­se voluntário colaborador dos obreiros da Legião de Maria, coadjuvando seus esforços e sacrifícios na obra de
alívio e reeducação a que se devotaram! 
Como tendes percebido, por esta pálida amostra, nosso labor é vultoso e intenso. Se as
criaturas que atentam contra o sagrado patrimônio da existência corporal, pelo Todo­Poderoso 
concedido à alma culpada como ensejo bendito e nobilitante de reabilitação —  conhecessem a
extensão dos sofrimentos e dos sacrifícios que por elas arrostamos, é certo que se deteriam à beira
do abismo, refletindo na grave responsabilidade que assumirão, quando não por amor ou 
compaixão de si mesmas, ao menos em consideração e respeito a nós outros, seus guias espirituais
e amigos devotados, que tantos prélios exaustivos, tantos dissabores suportamos, tantas lágrimas
arrancaremos do  coração até que os possamos encaminhar para as consoladoras estâncias
protegidas pela Esperança!” O amável cicerone falara da existência, numa daquelas sombrias dependências que
circundavam a torre central, cognominada simplesmente —  a Torre —, daqueles temidos
obsessores, chefes ou  prosélitos de falanges trevosas e perversas, os quais, além de suicidas,
seriam também responsáveis por crimes nefandos, previstos nas leis sublimes do Eterno 
Legislador como puníveis de reparações duríssimas através dos séculos. Manifestáramos desejo de
vê­los. Afigurou­se­nos tratar­se de entidades anormais, desconhecidas completamente pela nossa
capacidade de imaginação, monstros apocalípticos, talvez, fantasmas infernais que nem mesmo 
apresentariam forma humana. Sorrindo paternalmente, o velho doutor de Canalejas interrogou ao 
emérito elucidador, que nos guiava, se seria possível defrontarmos algum deles, visto  ser de
utilidade conhecê­los a fim de nos acautelarmos durante a próxima viagem aos planos terrenos, onde enxameiam bandos numerosos da mesma espécie. Padre Anselmo bondosamente aquiesceu,
não porém sem pequena restrição: “— Estou informado, pela diretoria do vosso Hospital, das conveniências que cabem aos
aprendizes aqui presentes. Concordarei portanto em apresentar­lhes pequeno panorama do local
onde alojamos os pobres pupilos responsáveis por tantos delitos, justamente a Torre que nos fica
fronteira. Ali estão localizadas as chamadas prisões, e ali são eles custodiados sem interrupção, como jamais o seriam prisioneiros na Terra! 
Devo inteirar­vos de que tais obsessores se encontram já em vias de regeneração. Sacodem­lhes o pesado  torpor em que têm mantido as consciências os embates aflitivos dos
primeiros remorsos. Acovardam­se com o fantasma do futuro. Bem percebem o que os espera na
angustiosa plaga das expiações, sob o ardor das variadas reparações que terão de testemunhar mais
tarde ou  mais cedo. Amedrontados ante o vulto infamante das próprias culpas, supõem que, enquanto resistirem aos convites que diariamente recebem para a regeneração, estarão isentados
daquelas obrigações... Daqui, porém, não  lograrão sair, reavendo a liberdade, sem que o 
arrependimento marque roteiro novo para suas consciências denegridas pela blasfêmia do pecado... ainda que permaneçam enclausurados durante séculos, o que não é muito provável venha a dar­se. Oh, meus caros amigos, vós, que iniciais os primeiros passos nas sendas redentoras dessa Ciência
Divina que redime e eleva o caráter da criatura, seja homem ou Espírito!
Oh, vós, cuja visita ao meu posto humilde de trabalhador da Seara do Senhor tanto me
honra e desvanece! Colaborai comigo e meus auxiliares desta espinhosa seção do Departamento de
Vigilância!  Colaborai com a direção deste Instituto, sobre cuja responsabilidade pesam tantos
destinos de criaturas que devem marchar para Deus! Cooperai com a Legião dos Servos de Maria e
com a causa da Redenção, esposada pelo Mestre Divino, orando fervorosamente por estas ovelhas
transviadas que resistem ao doce chamamento do seu Meigo Pastor! Seja o primeiro ato com que
iniciareis a caminhada extensa das reparações que devereis praticar, o gesto da sublime caridade
que irá rescender seus imortais aromas de beneficências no seio  amoroso do Cristo de Deus: a
Prece pela conversão destes infelizes trânsfugas da Lei, que se arrojaram, temerários e loucos, ao 
mais tenebroso e trágico báratro a que é possível chafurdar­se a criatura dotada de raciocínio e
livre­arbítrio! Orai! E afianço­vos, acreditai! Que tereis começado formosamente a programação 
das ações que devereis realizar para a confirmação do vosso progresso! 
Porém, são eles aqui — continuou, depois de uma pausa que não ousamos profanar com
nenhuma indiscrição —, assistidos por dedicados zeladores. Levada em conta a ignorância fatal de
que deram mostras, escolhendo a prática do mal, único atenuante com que podem contar a fim de
merecerem proteção e amparo, a misericórdia exposta na Lei que nos rege ordena lhes forneçamos
ensino e esclarecimentos, meios seguros de se reabilitarem para o reingresso nas vias normais da
evolução e do progresso, elementos com que combatam, eles mesmos, as trevas de que se
rodearam. Para isso, retendo­os, cassando­lhes a liberdade, de que muito e muito abusaram, damos­lhes conselheiros e elucidadores, vultos traquejados no segredo das catequeses de selvagens
e nativos das regiões bárbaras da Terra, tais como da África, da Indochina, das Américas, da
Patagônia distante e desolada... Vinde... e assistireis, através de nossos aparelhos de visão a distância, ao que se passa na
Terra fronteira...” Encaminhou­se a um vasto salão que se diria gabinete de fiscalização geral do diretor. Mobiliário sóbrio, utensílios de estudo e farto aparelhamento de transmissão da palavra e da visão, permitindo rápido entendimento com toda a Colônia, era tudo o que compunha o solitário 
compartimento. Fez­nos sentar, e ao passo  que se conservava de pé qual mestre que era no 
momento, prosseguiu na sua atraente elucidação: “—  Eis em que consistem as ‘prisões’  neste recanto  sombrio  do Instituto Maria de
Nazaré...”Aproximou­se dos aparelhamentos televisionadores, acionou­os destramente... e
encontramo­nos miraculosamente em extensa galeria cujas arcadas, lembrando antigos claustros, exprimiam o estilo português clássico, que tanto nos falava à alma. Não sei se as ondas fluido­magnéticas que se imprimiam como veículo desses aparelhos
teriam o poder de se infiltrarem pelas fibras do nosso físico­astral, casando­se às irradiações que
nos eram próprias; não sei se, irradiando suas propriedades ignotas pelo ambiente, nos
predispunham a mente para o alto fenômeno da sugestão lúcida ou se seria esta o fruto poderoso da
força mental dos mestres do magnetismo psíquico que invariavelmente nos acompanhavam
quando nos levavam a examinar as transmissões. O certo era que, naquele momento, tínhamos a impressão de que caminhávamos, realmente, por  aquela galeria toda envolvida em pesada
penumbra, o que transmitia penosas impressões de angústia e temor aos nossos inexperientes
Espíritos.De um lado e outro da galeria, as "enxovias" apresentavam­se aos nossos olhos surpresos
como pequenos recintos para estudo e residência, tais como sala de aula, refeitório e dormitório, oferecendo conforto suficiente para não chocar  o recluso  com a humilhação da necessidade
insolúvel, predispondo­o à desconfiança e à revolta. Dir­se­iam pequenos apartamentos de
internato modelar, em o qual o aluno recebesse hospedagem individual, pois esses aposentos eram
para habitação de apenas um prisioneiro! 
Não me pude conter e atrevi­me a externar impressões, dirigindo­me a Padre Anselmo: “—  Pois quê?!... Vejo aqui um educandário, não  uma prisão!... Rodeados de amplas
janelas e belos e sugestivos balcões por onde penetram ventos sadios, desguarnecidos de grades e
de sentinelas, estes aposentos convidam antes ao recolhimento, à meditação e ao estudo 
proveitoso, dado o silêncio inquebrantável de que se rodeiam... Oh!  Bem vejo a influência
generosa de eméritos missionários educadores, afeitos à direção de instituições escolares, não 
carcereiros a se imporem pela violência!...”
“—  Sim —  redargüiu  sorrindo o nobre governador  da Torre —, cumprimos os
dispositivos das leis de amor e Fraternidade, sob as normas essencialmente educadoras do Mestre
Magnífico. Realmente, não nos cumpre castigar quem quer que seja, por mais criminoso que se
afigure, porquanto nem Ele o fez! Nosso dever é instruir e reeducar, levantando o ânimo decaído, o 
caráter vacilante, através de elucidações sadias, para a regeneração pela prática do Bem! Pois que a
punição, o castigo, o próprio delinqüente os traz dentro de si, com o inferno em que se converteu 
sua consciência ininterruptamente conflagrada por mil diferentes aflições... o que dispensa
atormentá­lo com mais castigos e represálias! Ele próprio é que se julgará e em si mesmo aplicará
as punições que merecer... Quereis um exemplo vivo, dos mais sugestivos?... Prestai atenção...” Aproximou­se de um daqueles aparelhos que ornavam a sala, acionou  atentamente um
novo  botão luminoso e, enquanto se reproduzia no espelho magnético um vulto masculino, em
tudo semelhante a nós outros, no vigor dos quarenta anos, ia gentilmente elucidando sempre: “— Eis um dos temíveis obsessores, chefe de pequena falange de entidades endurecidas e
maldosas, portador de múltiplos vícios e degradações morais, criminoso e suicida, que arrastou ao 
seu  abismo de vileza e misérias quantos incautos, desencarnados e encarnados, pôde seduzir e
convencer a segui­lo, e cujos crimes avultam com tal gravidade nos códigos das leis divinas que
não nos admiraríamos ver chegar, de uma para outra hora, ordens do Alto para o seu 
encaminhamento  aos canais competentes para uma reencarnação expiatória fora do Globo 
Terrestre, em planeta ainda inferior  à Terra, ou  para um estágio espiritual em suas
circunvizinhanças astrais, em os quais, num período relativamente curto, poderia expiar débito que
na Terra requereriam séculos! Tal cometimento, todavia, seria medida drástica que repugnaria à
caridade e ao inimaginável amor do nosso Meigo Pastor, o qual preferirá, primeiramente, esgotar 
todos os recursos lógicos e legais para persuadir ao arrependimento assim como à regeneração,
servindo­se da grande ternura e piedade de que só Ele sabe dispor!
Maria intercedeu  por este infeliz, junto a seu  Divino  Filho, enquanto a nós outros
recomendou a máxima paciência, a mais fecunda expressão de caridade e de amor de que formos
capazes, a fim de serem aplicados no seu lamentável caso! Assim é que, prisioneiro embora, como 
o  vedes, recebe sem interrupção toda a assistência moral, espiritual e até "física", se assim me
posso expressar, que a sua natureza animalizada e grosseira requisita. A moral cristã, que
absolutamente desconhece, é­lhe fornecida diariamente, como alimento indispensável de que não 
pode prescindir, na indigência chocante em que se encontra... E recebe­a através do ensino do 
Evangelho bendito, durante aulas coletivas, figuradas e encenadas, como presenciastes naquelas
reuniões terrenas a que fostes conduzidos, as quais não são mais do que pequenos postos auxiliares
dos serviços realizados no Invisível; e é, como os demais alunos prisioneiros, ajudado a examinar 
os excelsos ensinos do Redentor e a confrontá­los com as ações que lhe foram próprias... aquele
Redentor que, fiel à Sua finalidade de Mestre e Salvador, estende­lhe a mão compassiva, levando­  o a erguer­se do pecado! 
Nossos métodos, todavia, mantêm outra espécie de ensinamento, enérgico, quase
violento, ao qual somente os iniciados poderão atender, dada a delicadeza da operação a ser 
tentada, que requer técnica especial... Por essa razão esta parte será sempre confiada a um
especializado dos mais populares em nossa Colônia, um técnico: Olivier de Guzman, a quem
conheceis como  diretor  do Departamento de Vigilância. Acumula ele, assim, tarefas das mais
melindrosas, não só por ser esse o dever que lhe cumpre, visto que na Seara do Senhor jamais o 
bom obreiro estará inativo, como também devido à escassez de trabalhadores, a que me referi. Apreciai o que se passa no apartamento deste réu­aluno e avaliai por vós mesmos...” Com efeito! Sentado à mesa de estudo, as faces entre as mãos, em atitude de desânimo ou 
preocupação  profunda; cabelos revoltos, cheios e ondulados; semblante atormentado por 
pensamentos conflagrados, que emitiam em torno do cérebro evaporações espessas quais nuvens
plúmbeas, encontrava­se o prisioneiro, ali, à nossa frente, como presente no mesmo salão em que
nos achávamos! Surpreendidos, porém, nesse terrível obsessor reconhecemos apenas um homem,
simplesmente um homem, ou  um Espírito que fora homem!  Mas não  um ser fantástico!  Um
Espírito apartado das formas carnais, é certo, mas trazendo a configuração humana, grosseira e
pesada, indiciando a inferioridade moral que o distanciava da espiritualidade! Trajava tal como no 
momento em que sucumbira, em sua organização carnal, sob o golpe do suicídio: calça de fino 
tecido de lã preta, o que indicava que, na Terra, fora personagem de elevado trato social, e camisa
de seda branca com punhos e peitilho de rendas de Flandres. A julgar pela indumentária entrevista
fomos levados a crer que não andaria longe de um século sua estada entre as sombras da maldade
do plano invisível, o que às nossas profundezas anímicas levou penoso frêmito de compaixão. A altura do coração, apesar do longo tempo decorrido, o estigma trágico denunciava­o 
como integrante da sinistra falange de réprobos à qual também pertencíamos: — o sangue, vivo e
fresco, como se houvera começado  a jorrar naquele momento, derramava­se de largo orifício 
produzido certamente por florete ou  punhal, ferreteando impiedosamente o físico­astral;
derramava­se sempre, ininterruptamente, apesar do tempo, como se se tratasse antes da impressão 
do fato ocorrido, sobre a mente alucinada e trevosa do desgraçado!
Eis, todavia, que entrava o mestre que o assistia, o qual, piedosamente, ia, de aposento a
aposento, acender nos corações incultos daqueles míseros delinqüentes as lâmpadas estelíferas do 
Conhecimento, a fim de que se norteassem com elas a estradas mais compensadoras! 
O antigo obsessor levantou­se respeitoso, fazendo  vênia própria de um gentil­homem. Olivier de Guzman — pois era ele o mestre — cumprimentou­o carinhosamente: “— A paz do Senhor seja contigo, Agenor Penalva!” O réu não respondeu, conservando­se de cenho contrafeito; e, a um sinal daquele, sentou­ 
se novamente à mesa, enquanto o guia formoso permanecia de pé. Fisionomia grave, atitudes delicadas, conversação paternal, Olivier de Guzman, que, como os demais iniciados superiores, trajava a indumentária da bela e operosa falange a que
pertencia, entrou a expor ao discípulo a explicação do dia, fazendo­o anotá­la em cadernos, isto é,
levando­o a analisá­la, a meditar sobre ela a fim de cuidadosamente imprimi­la na mente. No dia
imediato  deveria o discípulo apresentar a resenha das conclusões feitas em torno do assunto 
ventilado. Consistia essa aula, por nós presenciada, em importante tese sobre os direitos de cada
indivíduo, assim na sociedade terrena que na astral, à luz da Lei Magnânima do Criador; nos
direitos de mútuo respeito, solidariedade e fraternidade que a Humanidade a si mesma deve na
harmoniosa cadeia das ações de cada criatura em torno de si mesma e dos seus semelhantes. Analisaria o aluno a tese melindrosa em presença das próprias ações cometidas durante a
existência última, que tivera na Terra, e durante a permanência no Invisível até aquela data, confrontando­as ainda com as normas expressas nas leis que regem o mundo astral e nos códigos
da moral cristã, indispensáveis ao progresso e bem­estar de todas as criaturas, e dos quais vinha ele
recebendo esclarecimentos havia já algum tempo.. Ao aluno assistia o direito de apresentar 
objeções, indagar em torno de dúvidas que pudesse ter, e até de contestar... observando nós outros
o volume de preciosos esclarecimentos fornecidos pelo mestre a cada contestação do endurecido 
discípulo! 15
E tal labor, da exclusiva competição da consciência, poderia ser tentado por todos os
reclusos, independendo de cultura intelectual! 
Perplexos diante da intensidade e extensão dos serviços na Torre, indagamos do paciente
elucidador: “— Uma vez que este pobre Espírito se convença da necessidade do Bem, para onde será
encaminhado?... Que vai ser dele?... E por que obtém, apesar da má­vontade manifesta, mestre de
tal valor, lições profundíssimas como  as que presenciamos, ao passo  que nós outros, que nos
dispomos a trilhar o futuro de boamente, através de vossos conselhos, mal vislumbramos esses
iniciados que tanto nos agradam, e nem conseguimos sequer um texto onde aprendamos as leis que
nos regerão daqui por diante, quanto mais apetrechos de escrita?!...” Foi concludente a resposta e não se fez esperar: “— Em primeiro lugar — esclareceu Padre Anselmo —, não devíeis esquecer que sois
enfermos a quem somente agora concederam alta do Hospital, e mais que, havendo ingressado há apenas três anos neste abrigo, não passais de recém­chegados que nem mesmo concluíram o 
reajustamento psíquico... Tão flagrante diferença, aliás, se patenteia nas vossas mútuas condições, que não admitem sequer um confronto para discussões! Não vos admireis, portanto, que esse, que
acolá observamos, obtenha o que parece imerecido... Vossa época de iluminação virá a seu tempo 
e não perdereis por esperá­la... Há trinta e oito anos ingressou Agenor Penalva nesta Torre e só 
agora concorda em aplicar­se ao indispensável estudo de si mesmo para acatar a Lei e minorar a
situação própria, que lhe vem pesando amarguradamente... De outro lado, justamente devido  à
inferioridade moral de que se rodeia, necessita maior vigilância e assistência do que vós, cujos
pendores para a conversão à Luz muito bem auguram para o futuro... Trabalho prolongado tem requerido o endurecimento do coração em que se entrincheirou 
aquele pecador, temeroso qual se sente das conseqüências futuras dos desbaratos que converteram
em trevas a sua vida. Fora mesmo necessária a perseverança paternal de um Olivier de Guzman,
afeito ao trato com os nativos do Norte e semibárbaros do Oriente, a fim de convencer o grande
transviado que aí tendes ao encorajamento para a emenda! Voltará ele muito breve à reencarnação! 
Encontra­se excessivamente prejudicado, em suas condições mentais, para que seja lícito conduzir­ 
se a situações de verdadeiro progresso! Só uma existência terrena longa, dolorosa, operando­lhe
decisivas transformações mentais, por  alijar da consciência, sobrecarregada de sombras, considerável bagagem de impurezas, permitir­lhe­á ensejos para novos traçados na rota do 
progresso normal... E é a fim de convencê­lo satisfatoriamente a tal resolução, sem jamais obrigá­ 
lo; é no intuito de prepará­lo para a aquisição de forças suficientes para as pelejas ardentes que
enfrentará nos proscênios terrestres, que assim o detemos, procurando moralizá­lo o mais possível,
reconciliando­o consigo mesmo e com a Lei!  Se o não  fizermos, sua próxima e inevitável
reencarnação tornará ao mesmo círculo vicioso em que têm degenerado as demais, o que
absolutamente não convém a ele e tampouco a nós outros, visto que por sua reeducação nos
responsabilizamos perante a mesma Lei! 
Continuai, porém, observando o que se passa em seus aposentos...” Prestando seguidamente a máxima atenção, fomos surpreendidos com acontecimentos
que se desenrolaram com precipitação, os quais por sua natureza altamente educativa merecem ser 
narrados com especial carinho. A um gesto do preceptor, vimos que o paciente levantou­se a fim de acompanhá­lo 
submissamente, como  tocado por influências irresistíveis. Caminharam ao longo da galeria
extensa, onde se localizavam as "prisões" dos abrigados, Olivier à frente. Penetraram, dentro em
pouco, espaçosa sala, espécie de gabinete de experimentações científicas. Dir­se­ia um tabernáculo 
onde mistérios sacrossantos se desvendavam, afirmando ao observador o quanto conviria aprender 
e progredir em psiquismo, para se tornar merecedor da herança imortal que o Céu legou ao gênero 
humano.O citado gabinete mantinha­se perenemente saturado  de vaporizações magnéticas
apropriadas à finalidade para que fora organizado, as quais suavemente emitiam fosforescências
azuladas, tênues, sutis, quase imperceptíveis à nossa visão ainda muito débil para as coisas
espirituais, e absolutamente invisíveis à percepção embrutecida daquele que nelas penetrava a fim de se submeter à operação conveniente. Sobre um tablado polido como o cristal via­se uma cadeira
estruturada em substâncias que igualmente se assemelhavam à transparência do cristal, mas pelo 
interior da qual perpassava um fluido azul, fosforescente, como sangue que corresse pelos canais
arteriais de um envoltório carnal, desde que fossem acionados botões minúsculos, quais
pequeninas estrelas, que se apresentavam no conjunto de todo o estranho aparelhamento. A frente
da singular peça, congênere daquela existente na sala de recepções do Hospital, onde assistíramos
ao fenômeno do nosso próprio desprendimento da organização material, retrocedendo 
mentalmente até a data do suicídio, sob a direção de Teócrito e a assistência de Romeu e Alceste, destacava­se um quadrângulo  de cerca de dois metros, fulgurante qual espelho, placa fluido­  magnética ultra­sensível, capaz de registrar, em sua imaculada pureza, a menor impressão mental
ou emocional de quem ali se apresentasse, e a qual vimos ensombrar­se gradativamente, à entrada
de Agenor, como se hálito impuro a houvesse embaciado.
Insofrido e curioso perquiri, pondo reparo no aparelho e descuidando­me da discrição que
conviria conservar: “—  Dir­se­ia um gabinete de fenomenologia transcendental!  Qual a utilidade disto, Revmo. Padre?...”
“—  Raciocinais bem!  Com efeito, trata­se de um sacrário de operações
transcendentalíssimas, meu  amigo!  O aparelhamento que vedes, harmonizado em substâncias
extraídas dos raios solares, cujo magnetismo exercerá a influência do ímã, é uma espécie de
termômetro ou  máquina fotográfica, com que costumamos medir, reproduzir e movimentar os
pensamentos... as recordações, os atos passados que se imprimiram nos refolhos psíquicos da
mente, e que, pela ação magnética, ressurgem, como por encanto, dos escombros da memória
profunda de nossos discípulos, para impressionarem a placa e se tornarem visíveis como a própria
realidade que foi vivida!...” Um frêmito de terror sacudiu nossa fibratura psíquica. O primeiro ímpeto que tivemos, ouvindo a resposta sucinta quanto profunda em sua vertiginosa amplitude, fora o de fugir,
apavorados que ficamos ante a perspectiva de vermos também nossos pensamentos e ações
passadas, assim devassados.
Intimamente presumíamos que nossos mentores conheciam minuciosamente quanto nos
dizia respeito, sem exceção mesmo  do  pensamento. Mas a discrição, a caridade desses
incomparáveis amigos, que jamais se prevaleciam de tal poder para afligir­nos ou humilhar­nos, nos deixavam à vontade, prevalecendo em nosso imo a cômoda opinião de que seríamos
inteiramente ignorados. O que, porém, em verdade nos alarmava não era o sermos totalmente conhecidos deles, mas a possibilidade de vermos, nós mesmos, essas fotografias do passado; de assistirmos, nós
mesmos, às monstruosas cenas que fatalmente se refletiriam no insuspeitável espelho, analisando­  as e medindo­as, o que inesperadamente surgia para nós como patíbulo infamante que nos
aguardaria com um novo gênero de suplício!  “— Uma entidade iluminada — continuou explicando o lente emérito, diretor interno da
Torre de Vigia —, já educada em bons princípios de moral e ciência, não se utilizará desses aparelhos quando deseje ou necessite extrair dos arquivos da memória os pensamentos próprios, as
recordações, o passado, enfim Bastar­lhe­á a simples expressão da vontade, a energia da mente
acionada em sentido inverso... e se tornará presente o que foi passado, vivendo ela os momentos
que foram evocados, tal como os vivera, realmente, outrora! Para a reeducação dos inexperientes, porém, assim dos inferiores, tornam­se úteis e indispensáveis, motivo pelo qual os utilizamos aqui,
facilitando sobremodo o nosso serviço. Todavia, tudo quanto obtivermos da mente de cada um será para nós como sacrossanto 
depósito que jamais será atraiçoado, podendo­se mesmo adiantar que apenas o mestre instrutor do 
paciente será o depositário dos seus terríveis segredos, guardando­os zelosamente para instrução 
do mesmo, pois assim determinam as leis da caridade. Esporadicamente, como neste momento, poderemos algo surpreender, visto tratar­se da iluminação da coletividade, ainda com maior razão 
quando essa coletividade se anima da boa­vontade para o progresso  e do  critério que vemos
irradiando de vós outros...” No entanto, Agenor, visivelmente apavorado com a feição que iam tomando os
acontecimentos, apelou  para a mistificação, ignorando a alta mentalidade daquele por  quem era
servido, o qual piedosamente se diminuiu a fim de ser melhor compreendido: “—  Não senhor, meu  mestre, não senhor! Não fui mau filho para meus pais!... As
anotações que ontem apresentei dessa particularidade de minha vida são verdadeiras, juro­vos!... Existe, por certo, algum engano  no pormenor que vos levou  a rejeitá­las!... Engano e rigor 
excessivo para comigo!... Fazeis­me escrever as normas de um bom filho, de acordo com as leis do 
Senhor  Deus Todo­Poderoso, que eu temo e respeito! Quereis que, mais uma vez, eu  as estude
para, amanhã, expor minhas recordações em torno de minha condição de filho, nas páginas do 
diário intimo que sou forçado a criar, analisando­as em confronto com aquelas normas... Porém, se
tenho certeza do que venho afirmando em torno de minhas recordações, para que tão exaustivo 
labor?!... Peço­vos, antes, encaminheis a quem de direito o meu rogo de libertação... Por que me
fazem sofrer tanto?... Não existe, pois, perdão e complacência na lei do bom Deus, que eu tanto 
amo?... Pois sou  profundamente religioso... e estou  arrependido dos meus grandes pecados... Encontro­me aqui há tantos anos!... Passei por infernais calabouços, nas mãos da horda malvada
que me arrebatou, após o suicídio, para sua banda... Atormentado, vaguei por ilhas desertas, antes
de me submeter aos seus detestáveis desejos... Enfrentei as fúrias tétricas do oceano, abandonado e
perdido sobre rochedos solitários... Durante dez anos me vi acorrentado à cova imunda de um
cemitério, onde sepultaram meu corpo asqueroso, enlameado e fétido! Perseguido fui por grupos
sinistros de inimigos vingadores; batido como cão raivoso, maltratado como um réptil, corroído 
por milhões de vermes que me enlouqueceram de horror e angústia, sob a tortura suprema da
confusão que nada permite esclarecer, sem lograr compreender a trágica aflição de sentir­me vivo 
e deparar­me sepultado, apodrecido, devorado por imundos vibriões!... Carregaram­me prisioneiro, os malvados, atado de cordas resistentes, e prenderam­me na própria sepultura em que jazia... bem... quero dizer... Vós já o sabeis, meu mestre... Em que jazia aquela que eu amei... Sim! Que eu 
desgracei e depois assassinei, temendo represálias da família, visto tratar­se de uma menina de
qualidade aristocrata... Ninguém jamais identificou o assassino... Mas aqueles malvados sabiam de tudo e depois do meu suicídio vingaram a morta... De tal forma me vi perseguido que, a fim de me
libertar de tal jugo e eximir­me dos maus tratos que recebia, tive de unir­me ao bando e tornar­me
um similar, pois era essa a alternativa que ofereciam... Devo, portanto, ter muitas atenuantes... Depois, além do mais, aprisionado por lanceiros, emasmorrado no Vale Sinistro, onde padeci nova
série de horrores... E agora, nesta Torre, tolhido em minha liberdade, sem sequer poder recrear­me
pelas ruas de Madrid, que eu tanto amava, nem respirar o ar puro e fresco dos campos, como tanto 
me apraz!... Sou ou não sou filho do Bom Deus?!... Ou serei irmão do próprio Satanás?!”
Demonstrando a mais singular serenidade, replicou o mentor generoso: “— Em ouvindo alguém estranho as tuas eternas queixas, Agenor Penalva, suporia que se
cometem injustiças no recinto iluminado pelos almos favores da Magnânima Diretora da nossa
Legião!... No entanto, a longa série de infortúnios que expuseste teve origem apenas nos excessos
pecaminosos dos teus próprios atos e na truculência dos instintos primitivos que conservas... Há
trinta e oito anos vens sendo pacientemente exortado a uma reforma íntima, que te assegure
situações menos ingratas! Porém, negas­te sistematicamente a toda e qualquer experiência para o 
bem, enclausurado na má­vontade de um orgulho que te vem intoxicando o Espírito, por tolher os
movimentos a prol dos progressos que de há muito deverias ter concretizado!  Grande
complacência há­se desenvolvido aqui, em torno de ti, apesar de não a reconheceres! Bem sabes
que tua retenção em nosso círculo de vigilância equivale à proteção contra o jugo obsessor da
falange que chefiavas, assim como  não ignoras que de ti depende a obtenção da liberdade que
tanto almejas!  Jamais foste molestado aqui. Tesouros espirituais diariamente te oferecemos
desejosos que somos de ver­te enriquecido com a aquisição das luzes que deles se irradiam! 
Hóspede da Legião de Maria, foste por Ela recomendado à direção deste Instituto, no sentido de
não concertarmos tua volta ao círculo carnal, à reencarnação, sem que positivasses grau  de
progresso eficiente para o bom êxito dos futuros testemunhos terrenos, que serão duros, dada a
gravidade dos teus débitos no conceito da Lei! 
Diariamente são expostos ao teu  exame os motivos por que tua liberdade foi tolhida. Sabes que és culpado. Sabes que arrastaste ao sorvedouro do suicídio uma dezena de homens
incautos, que se deixaram embair pelas funestas sugestões das tuas manhas de obsessor 
inteligente... desgraçando­os pelo simples prazer  de praticar  o mal ou  por invejá­los de algum
modo... assim como  outrora, quando homem, desvirtuavas pobres donzelas enamoradas e
levianamente confiantes, levando­as ao suicídio com a amarga traição com que as decepcionavas, prenúncios do obsessor que futuramente serias... Mas teu orgulho sufoca as conclusões lógicas do 
raciocínio e preferes a revolta e o sofisma por mais cômodos, furtando­te às responsabilidades por 
permaneceres dilatando a aceitação de compromissos que te apavoram, porque tens medo do 
futuro que tu mesmo preparaste com as iniqüidades que houveste por bem praticar! Agora, porém, existem ordens superiores a teu respeito: urge apressemos tua marcha para o progresso, forrando­te
da permanência indefinida no circulo vicioso que te prolonga os sofrimentos. Para que ponhamos
fim a tão lamentável estado de coisas, faremos a experiência suprema! Quiséramos evitá­la por 
dolorosa, concedendo­te prazo mais que justo para, por ti mesmo, procurares o caminho da
reabilitação. Advirto­te de que, a partir  deste momento, diariamente farás um exame sobre ti mesmo, provocado por nós, lento, gradativo, minucioso, que te faculte a convicção da urgência na
reforma interior de que careces... Sei que será penoso tal cotejo. Provocaste­o, porém, tu mesmo, com a resistência em que te vens mantendo para o ingresso nas vias do reerguimento moral! 
Foste bom filho para teus pais, dizes?... Tanto melhor, nada deverás temer ante a
evocação desse passado! Será, portanto, por esse confronto que iniciaremos a série das análises
necessárias ao teu caso, uma vez que o primeiro dever que cabe ao homem cumprir na sociedade
em que vive será no santuário do lar e da Família! 
Vejamos, pois, os méritos que terás como filho, pois todos os que possas ter  serão 
rigorosamente creditados em teu favor, suavizando tuas futuras reparações:
Agenor Penalva! Senta­te à frente deste espelho, sob o pálio magnético que irá fotografar 
teus pensamentos e recordações! Volta tuas atenções para a época dos teus cinco anos de idade, na
última existência que tiveste na Terra! Rememora todos os atos que praticaste em torno de teus
pais... de tua mãe em particular!... Assistirás ao desfile de tuas próprias ações e serás julgado por ti
mesmo, por tua consciência, que neste momento receberá o eco poderoso da realidade que passou 
e da qual não se poderá furtar, porque foi fiel e rigorosamente arquivado nos refolhos imperecíveis
da tua alma imortal!...” Como todo  Espírito grandemente culpado, no momento preciso Agenor quis tentar a
evasão. Encurralou­se, de súbito, a um ângulo do aposento, bradando  apavorado, no auge da
aflição, o olhar desvairado de perfeito réprobo: “— Não senhor, meu mestre, por  obséquio, eu  vo­lo suplico!... Deixai­me regressar  ao 
meu aposento ainda esta vez, para novo preparo! Eu...” Mas, pela primeira vez desde que ingressáramos no magno educandário, soou aos nossos
ouvidos uma expressão forte e autoritária, proferida por um daqueles delicados educadores, pois
que Olivier de Guzman repetiu com energia: “— Senta­te, Agenor Penalva! Ordeno­te!”
O pecador sentou­se, dominado, sem mais proferir uma palavra! Suspendêramos a própria
respiração. O silêncio estendera­se religiosamente. Dir­se­ia que a venerável cerimônia recebia as
bênçãos da assistência sacrossanta do Divino Médico das almas, que desejaria presidir ao cotejo da
consciência de mais um filho pródigo prestes a se encaminhar para os braços perdoadores do Pai. Agenor parecia muito calmo, agora. Olivier, cujo semblante se tornara profundamente
grave, como se concentrasse as forças mentais à mais alta tensão, acomodou­o convenientemente, envolvendo­lhe a fronte numa faixa de tessitura luminosa, cuja alvura transcendente denunciava­a
como originando­se da própria luz solar. A faixa, no entanto, que lembraria uma grinalda, prendia­se ao pálio que cobria a cadeira
por fios luminosos, quase imperceptíveis, de natureza idêntica, o que nos levou  a deduzir ser o 
pálio o motor principal desse mecanismo tão simples quanto magnífico na sua finalidade. A tela, por sua vez, igualmente ligava­se ao pálio por  múltiplas estrias lucilantes, parecendo harmonizada no mesmo elemento de luz solar.
A voz do mentor elevou­se, porém, autoritária, envolvida, não obstante, em intraduzíveis
vibrações de ternura:
“— Contas cinco anos de idade, Agenor Penalva, e resides no solar paterno, nos arredores
de Málaga... És o único filho varão de um consórcio feliz e honrado... e teus pais sonham preparar­ 
te um futuro destacado e brilhante!... São profundamente religiosos e praticam nobres virtudes de
envolta com as ações diárias... acariciando o ideal de te consagrarem a Deus, fazendo­te envergar a
alva sacerdotal... Acorda dos refolhos da alma tuas ações como filho, em torno de teus pais... de
tua mãe particularmente! Faze­o sem vacilar! Estás em presença do Criador Todo­Poderoso! que te
forneceu a Consciência como porta­voz de Suas Leis!...” Então, surgiu  para nossas vistas assombradas o inenarrável em linguagem humana!  O
pensamento, as recordações do  desgraçado, seu  passado, suas faltas, seus crimes mesmo, como 
filho, em torno de seus pais, traduzidos em cenas vivas, movimentaram­se no espelho sensível e
impoluto, diante dele, retratando sua própria imagem moral, para que ele a tudo assistisse,
revendo­se com toda a hediondez das quedas em que soçobrara, como se sua Consciência fosse um
repositório de todos os atos por ele praticados, e os quais, agora, arrebatados do fundo da memória
adormecida, por transcendentalíssima atração magnética, se levantassem conflagrados, esmagando­o com o peso insuportável da tenebrosa realidade!  A lamentável história dessa
personagem —  assassino, suicida, sedutor, obsessor  —  ocuparia um volume profundamente
dramático. Furtamo­nos ao desejo de narrá­la. Para o complemento do presente capítulo, porém, apresentaremos pequeno tópico do que presenciamos naquela memorável tarde de além­túmulo, e
que julgamos não será totalmente destituído de interesse para o leitor... já que, infelizmente, nem
hoje são comuns os filhos modelos no respeitável instituto da Família terrena!  — Desde os primeiros anos da juventude fora Agenor Penalva filho indócil e esquivo à
ternura e ao respeito dos pais. Não reconhecera jamais as solicitudes de que era alvo: seus pais
seriam escravos cujo dever consistiria em servi­lo, preparando­lhe condigno futuro, pois era ele o 
senhor, isto é, o filho!  —  Na intimidade do lar mantinha atitudes invariavelmente despóticas, hostis,
irreverentes, cruéis! Fora do lar, porém, prodigalizava amabilidades, afabilidades, gentilezas!  — Insubmisso a toda e qualquer tentativa de corrigenda. — Desejosos de lhe garantirem futuro isento de trabalhos excessivos, nas duras lides dos
campos agrícolas, que tão bem conheciam; e sabendo­o, ao  demais, ambicioso  e inconformado 
com a obscuridade do nascimento, arrojaram­se os heróicos genitores a sacrifícios imensuráveis, mantendo­o na capital do Reino e pagando­lhe os direitos para a aquisição  de um lugar na
companhia dos exércitos do rei, visto que não sentira atração para a vida eclesiástica, desencantando logo de início o ideal paterno. Pretendera antes a carreira militar, mais concorde
com as aspirações mundanas que o arrebatavam, e que facilitaria, ao demais, o ingresso em
ambientes aristocráticos, que invejava. — Envergonhara­se da condição humilde daqueles que lhe haviam dado o ser e velado 
abnegadamente por sua vida e bem­estar desde o berço; repudiou  o honrado nome paterno, de
Penalva, por  outro fictício  que melhor  retumbasse a ouvidos aristocratas, proclamando­se
mentirosamente descendente de generais cruzados e nobres cavaleiros libertadores da Espanha do 
jugo árabe.
— Com o falecimento do velho pai, a quem não visitara durante a pertinaz enfermidade
de que fora vitima, desamparou desumanamente a própria mãe! Arrebatou­lhe os bens, sorveu­lhe
os recursos com que contava para a velhice, esquecendo­a na Província, sem meios de
subsistência. — Fê­la verter as inconsoláveis lágrimas da desilusão em face da ingratidão com que a
brindara quando mais a vira carente de proteção e carinhos, legando­a a dolorosa via crucis de
humilhações pelo domicílio de parentela afastada, onde a mísera representava estorvo indesejável!  — Negou­se a recebê­la em sua casa de Madrid — pobre velha rude no trato, simples no 
linguajar, rústica na apresentação —, pois era sua casa freqüentada por personagens destacadas
entre a alta burguesia e a pequena nobreza, em cuja classe contraíra matrimônio, fazendo­se passar 
por nobre.—  Encaminhou­a secretamente para Portugal, visto que teimava a pobre criatura em
valer­se da sua proteção na miséria insolúvel em que se via soçobrar. Enviou­a a um seu  tio 
paterno que havia muito se transferira para o Porto. Fizera­o, porém, aereamente, sem se certificar 
do paradeiro exato do aludido afim. Sua mãe, assim, não lograra localizar o cunhado que ali já não 
residia, e perdera­se em terras lusitanas, onde fora acolhida por favor pelos compatriotas piedosos. —  Escreveram­lhe os mesmos compatriotas, participando­lhe a angustiosa situação da
genitora, que novamente lhe implorava socorro. Não respondera, desculpando­se perante a
consciência com determinada viagem que empreenderia dentro em breve. —  Com efeito, alimentando ideais desmedidamente ambiciosos, transferira­se para a
América longínqua, abandonando até mesmo a esposa, a quem iludira com falaciosas promessas, e
a fim de furtar­se a conseqüências de revoltante caso passional, no qual mais uma vez assumira a
qualidade de algoz, seduzindo, vilipendiando e até induzindo ao suicídio pobre e simplória donzela
de suas relações. Desinteressando­se, assim, completamente de sua mãe, abandonou­a para
sempre, vindo a infeliz velhinha ao extremo de arrastar­se miseravelmente pelas vias públicas, à
mercê da caridade alheia, enquanto ele prosperava na livre e futurosa América! 
Eram quadros dramáticos e repulsivos, que se sucediam em cenas, de um realismo 
comovedor, angustiando­nos a sensibilidade, desgostando os mentores presentes, que baixavam a
fronte, entristecidos. Agenor, porém, que, a princípio, parecera sereno, exaltara­se gradativamente, até o 
desespero; e, chorando convulsivamente, agora bradava, em gritos alarmantes, que o poupassem e
dele se compadecesse o instrutor, repelindo as visões como se o próprio inferno ameaçasse devorá­ 
lo, o semblante congesto, enlouquecido por suprema angústia, atacado da fobia cem vezes
torturadora dos remorsos!  “—  Não!  Não, meu  mestre, mil vezes não!  —  vociferava entre lágrimas e gestos
dramáticos de desesperada repulsa —  Basta, pelo amor  de Deus!  Não posso!  Não posso! 
Enlouqueço de dor, meu bom Deus! Mãe! Minha pobre mãe, perdoa­me! Aparece­me, minha mãe, para eu saber que não amaldiçoas o filho ingrato que te esqueceu, e me sentir possa aliviado! 
Socorre­me com a esmola do teu perdão, já que não posso ir até onde estás a suplicar­to, pois vivo 
no inferno, sou  um réprobo, condenado pela sábia lei de Deus!... Não posso mais suportar a existência sem a tua presença, minha mãe!  As mais angustiantes saudades desorientam o meu 
coração, onde tua imagem humilde e vilipendiada por mim gravou­se em caracteres indeléveis, sob 
os fogos devoradores do remorso pelo mal que contra ti pratiquei! Oh! Venha o teu  vulto triste
clarear as trevas da desgraça em que se perdeu meu miserável ser, envenenado pelo fel de tantos
crimes! Aparece­me ao menos em sonhos, ao menos em minhas alucinações, para que ao menos eu 
obtenha o consolo de tentar um gesto respeitoso para contigo, que suavize a mágoa insuportável da
tortura que me esmaga por te haver ofendido!  Aparece­me, para que Deus, por ti, perdoar­me
possa todos os males de que vilmente te cumulei!... Perdão, meu  Deus, perdão!Fui um filho 
infame, ó Deus clemente! Sei que sou imortal, meu Deus! e que Tu és a misericórdia e a sabedoria
infinitas!  Concede­me então a graça de retornar  à Terra a fim de expurgar da consciência a
abominação que a deturpa! Deixa­me reparar a falta monstruosa, Senhor! Dá­me o sofrimento! 
Quero sofrer por minha mãe, a fim de merecer o seu perdão e o seu amor, que foi tão santo, e o 
qual não levei em consideração! Castiga­me, Senhor Deus! Eu me arrependo! Eu me arrependo! 
Perdoa­me, minha mãe! Perdoa­me!...” Retirou­lhe o lente sábio a faixa lucilante da fronte. “— Levanta­te, Agenor Penalva!” — ordenou, autoritário. Levantou­se o desgraçado, cambaleante, olhos desvairados, como atacado de embriaguez. Haviam cessado as visões.
Inconsolável, porém, ele — mísero furioso consciente — rojou­se de joelhos, cobriu as
faces transtornadas com as mãos crispadas e deixou  continuar o pranto, vencido pelo mais
impressionante desalento que me fora dado presenciar em nosso Instituto até aquela data... Olivier de Guzman não interveio, tentando consolá­lo. Apenas levantou­o e, amparando­o 
paternalmente, reconduziu­o aos seus apartamentos. Em ali chegando recompôs sobre a mesa de
estudo um grande álbum, cujas páginas diz­se­iam amarfanhadas; e, numa folha em branco, escreveu um título e um subtítulo cuja profundidade abalançou nossa alma num frêmito de grande, de penosa emoção: — TESE: 0 4º Mandamento da Lei de Deus: "Honrai o vosso pai e a vossa mãe, a fim de
viverdes longo tempo na Terra que o Senhor vosso Deus vos dará." — Relerão nos deveres dos filhos para com seus pais. Em seguida, afastou­se. Não mais articulara uma palavra! Outro discípulo esperava­o. Nova tarefa requisitava seus desvelados desempenhos... Padre Anselmo torceu o botão minúsculo do aparelho. Findara igualmente a nossa visão! 
Não me pude conter e, quase mal­humorado, perquiri: “— Com que, então, deixam o infeliz assim desamparado, entregue a tão desesperadora
situação!... Haverá em tal gesto suficiente caridade, da parte dos obreiros da magnânima Legião 
que nos acolhe, incumbidos de sua proteção?” Carlos e Roberto  sorriram vagamente, sem responder, enquanto o velho sacerdote
iniciado satisfazia, bondosamente, minha indiscreta ansiedade: “—  Os mentores conhecem minuciosamente os seus discípulos e as tarefas a que se
dedicam. Sabem o que fazem, quando operam!... De outro modo, quem vos disse que o penitente ficará só e desamparado?!... Ao  contrário, não se encontra sob a tutela maternal de Maria de
Nazaré?...”Quando os portões da fortaleza se fecharam sobre nós, a fim de iniciarmos a marcha de
retorno, ouvíamos ainda, ecoando angustiosamente em nossas mentes atordoadas, a grita do mau 
filho entre as convulsões rábicas do remorso: “— Perdoa­me, minha mãe! Perdoa­me, ó meu Deus!”

Memórias de um SuicidaOnde histórias criam vida. Descubra agora