Jerônimo de Araújo Silveira e família

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Não lográvamos notícias de nossas famílias e tampouco dos amigos. Excruciantes
saudades, como ácido corrosivo que nos estorcesse as potências afetivas, lançavam sobre nossos
corações infelizes o decepcionante amargor de mil incertezas angustiosas. Muitas vezes, Joel e
Roberto surpreendiam­nos chorando às ocultas, suspirando por nomes queridos que jamais
ouvíamos pronunciar! Caridosamente, esses bons amigos nos reanimavam com palavras
encorajadoras, asseverando ser tal contrariedade passageira, pois tendíamos a suavizar a situação
própria, o que necessariamente resolveria os problemas mais prementes. No entretanto, existia permissão para nos cientificarmos das visitas mentais e votos
fraternos de paz e felicidade futuras, quaisquer gentilezas emanadas do Amor, e que proviessem
dos entes queridos deixados na Terra ou dos simpatizantes, além dos que, mesmo das moradas
espirituais, nos amassem, interessando­se por nosso restabelecimento e progresso. Desde que tais
pensamentos fossem irradiados pela mente verdadeiramente guindada a expressões superiores, eram­nos eles transmitidos por meio assaz curioso e muito eficiente, o qual, na ocasião vigente, nos levava à perplexidade, dado o nosso desajuste espiritual, mas que posteriormente
compreendemos tratar­se de acontecimento natural e até comum em localidades educativas do
Astral intermediário. Existia em cada dormitório certo aparelhamento delicadíssimo, estruturado em
substâncias eletromagnéticas, que, acumulando potencialidade inavaliável de atração, seleção,
reprodução e transmissão, estampava em região espelhenta, que lhe era parte integrante, quaisquer
imagens e sons que benévola e caridosamente nos fossem dirigidos. Quando um coração generoso, pertencente às nossas famílias ou mesmo para nós desconhecido, arremessasse vibrações fraternas
pelas imensidões do Espaço, ao Pai Altíssimo invocando mercês para nossas almas enoitadas pelos
dissabores, éramos imediatamente informados por luminosidade repentina, que, traduzindo o
balbucio da oração, reproduzia também a imagem da personalidade operante, o que, às vezes,
sobremodo nos surpreendia, visto acontecer que pessoas a quem nem sempre distinguíramos com
afeição e desvelo se apresentavam freqüentemente ao espelho magnético, enquanto outras, que de
nossos corações obtiveram as máximas solicitudes, raramente mitigavam as asperezas da nossa íntima situação com as blandícias santificantes da Prece! Poderíamos, assim, saber de quanto
pensassem a nosso respeito; das súplicas dirigidas às Divinas Potestades, de todo o bem que nos
pudessem desejar ou, a nosso favor, praticar.
Infelizmente para nós, porém, tal acontecimento, que tanto amenizaria as agruras da
solidão em que vivíamos; que seria como refrigerante sereno sobre as escaldantes saudades que
nos combaliam a mente e o coração, era raríssimo na quase totalidade do Hospital, referencia às
afeições deixadas na Terra, pois que o genial aparelho só era suscetível de registrar as invocações
sinceras, aquelas que, pela natureza sublimada das vibrações emitidas no momento da Prece, se
pudessem harmonizar às ondas magnéticas transmissoras capazes de romper as dificuldades
naturais e chegarem às mansões excelsas, onde é a Prece acolhida entre fulgores e bênçãos. Porém, a verificar­se tão generoso fato não facultaria possibilidade de noticiário circunstanciado em torno
da individualidade que o praticasse, tal como desejaria nossa ansiedade. Daí as angústias
excessivamente amargosas, a desoladora saudade por nos sentirmos esquecidos, privados de
quaisquer informes!
Não obstante, os mesmos preciosos instrumentos de transmissão incessantemente
revelavam que éramos lembrados por habitantes do Além. De outras zonas astrais, como de outras
localidades de nossa própria Colônia, chegavam fraternos votos de paz, conforto amistoso, encorajamento para os dias futuros. Oravam por nós em súplicas ardentes, não apenas invocando o
amparo maternal de Maria para nossas imensas fraquezas, mas ainda a intervenção misericordiosa
do Mestre Divino. Da Terra, todavia, não eram raras as vezes que discípulos de Allan Kardec, procurando
pautar atitudes por diretrizes cristãs, se congregavam periodicamente em gabinetes secretos, tais
como os antigos iniciados no segredo dos santuários; e, respeitosos, obedecendo a impulsos
fraternos por amor ao Cristo Divino, emitiam pensamentos caridosos em nosso favor, visitando­ nos freqüentemente através de correntes mentais vigorosas que a Prece santificava, tornando­as
ungidas de ternura e compaixão, as quais caíam no recesso de nossas almas cruciadas e esquecidas, quais fulgores de consoladora esperança!
Porém, não era só. Caravanas fraternas, de Espíritos em estudo e aprendizados beneficentes, assistidas por
Mentores eméritos, penetravam nossa tristonha região, provindas de zonas espirituais mais
favorecidas, a fim de trazer sua piedosa solidariedade, em visitações que muito nos desvaneciam. Assim fizemos boas relações de amizade com indivíduos moralmente muito mais elevados do que
nós, os quais não desdenhavam honrar­nos com sua estima. Tais amizades, tão suaves afeições
seriam duradouras, porque fundamentadas nos desinteressados, nos elevados princípios da
fraternidade cristã!
Só muito mais tarde nos foi outorgada a satisfação de receber as visitas dos entes caros
que nos haviam precedido no túmulo. Mesmo assim, porém, deveríamos contentar­nos com
aproximações rápidas, pois o suicida está para a vida espiritual como o sentenciado para a
sociedade terrena: não tem regalias normais, vive em plano expiatório penoso, onde não é lícita a
presença de outrem que não os seus educadores, enquanto que ele próprio, dado o seu precário estado vibratório, não logrará afastar­se do pequeno círculo em que se agita... até que os efeitos da
calamitosa infração sejam totalmente expungidos. "-...E serás atado de pés e mãos, lançado nas trevas exteriores, onde haverá choro e
ranger de dentes. Dali não sairás enquanto não pagares até o último ceitil..." - avisou
prudentemente o Celeste Instrutor, desde muitos séculos... Dois acontecimentos de profunda significação para o desenvolvimento de nossas forças
no ajustamento ao plano espiritual verificaram­se logo nos primeiros dias que se seguiram à nossa
admissão ao magno instituto do astral. Dedicaremos o presente capítulo ao mais sensacional,
reservando para o seguinte a exposição do segundo, não menos importante, por decisivo na lição
que, então, nos ofertou.
Certa manhã, apresentou­se­nos o jovem Dr. Roberto de Canalejas, a participar­nos que
éramos convidados a importante reunião para aquela tarde, devendo todos os recém­chegados se
avistarem com o diretor do Departamento a que estávamos confiados no momento, para
esclarecimentos de interesse geral.
Jerônimo, cujo mau­humor se agravava assustadoramente, formalmente declarou não
desejar comparecer à mesma, pois que não se supunha obrigado a obediências servis pelo simples
fato de se encontrar hospitalizado, e mais que, na ocasião, somente se interessava pela obtenção de
notícias da família. Roberto, porém, declarou delicadamente, sem mostras de quaisquer
agastamentos, que era portador de um convite e não de uma ordem, e que, por isso mesmo, nenhum de nós seria forçado a anuir.
Envergonhados frente à atitude incivil do companheiro, sentimo­nos também chocados, e
foi com o melhor sorriso que encontramos nos arquivos de antigas recordações que aquiescemos, agradecendo ainda a honra que nos dispensavam.
Já por esse tempo éramos submetidos a tratamento especializado, do qual adiante
trataremos e com o qual igualmente não concordara o antigo irmão da Santíssima Trindade, de
Lisboa, assim que soube ser a terapêutica fundamentada nas fontes magnético­psíquicas, assuntos
que absolutamente não admitia!
Não obstante, insofrido e displicente, dirigiu­se ao bondoso facultativo, logo após o
incidente, e disse, esquecido já da lamentável atitude anterior: "- Sr. doutor, um obséquio inestimável venho pensando em obter de V. Excia., confiado
nos sentimentos generosos que de certo exornam tão nobre caráter..." Roberto de Canalejas que, com efeito, antes de ser um espírito convertido ao Bem, dedicado operário da Fraternidade, teria sido na sociedade terrena perfeito cavalheiro, esboçou
sorriso indefinível e respondeu: "- Estou ao seu inteiro dispor, meu amigo! Em que deverei atendê­lo?"
"- É que... Tenho necessidade imperiosa de encaminhar certa petição à benemérita
diretoria desta casa... Aflijo­me pela falta de informes de minha família, que não vejo há muito... nem eu sei há quanto tempo!... Em vão tenho esperado notícias... e já não me restam forças para
sofrer no peito as ânsias que me dilaceram... Desejo obtenção de licença, da mui digna diretoria
deste Hospital, para ir até minha casa, certificar­me dos motivos que ocasionam tão ingrato silêncio... Não sou visitado pelos meus... Não recebo cartas... Será possível a V. Excia. encaminhar
um requerimento ao Sr. Diretor? Não proibirão, de certo, os regulamentos internos, a atitude que
desejo tomar?" Como vemos pelo exposto, o pobre ex­comerciante do Porto parecia não fazer idéia muito
justa da situação em que se encontrava, e, mais do que os companheiros de domicílio, perdia­se na
desordem mental, entre os estados terreno e espiritual. "- Absolutamente, meu caro! Não há proibição! O diretor deste estabelecimento terá
satisfação em ouvi­lo!" - afirmou o paciente médico. "- Farei então hoje mesmo o requerimento? Encaminharei verbalmente a solicitação... e
Joel participá­lo­á do que ficar resolvido..." Cerca de dois quartos de hora depois, Joel voltava à enfermaria a fim de comunicar ao
aflito doente que o diretor convidava­o a apresentar­se pessoalmente ao seu gabinete. Vinha, porém, pensativo, e descobrimos um acento de pesar em seu semblante geralmente límpido e
sorridente. Nosso companheiro que, como é sabido, era, dentre os dez, o mais rebelde e
indisciplinado, exigiu que Joel devolvesse o terno de roupa tomado à entrada, pois repugnava­lhe
apresentar­se ao gabinete do maioral envolvido num feio sudário de enfermaria, tal como nos
encontrávamos todos. Muito sério, Joel não tentou contrariá­lo. Devolveu­lhe, antes, a referida indumentária. Saíram. Não teriam transposto ainda a galeria imensa, para onde se projetavam as portas dos
dormitórios, e eis que o jovem Dr. de Canalejas e um dos nossos assistentes hindus entraram em
nosso compartimento, enquanto, sorridente, foi dizendo o último, com acento amistoso: "- Aqui nos encontramos, meus caros amigos, a fim de convidar­vos a acompanhar
vosso amigo Jerônimo de Araújo Silveira na peregrinação que deseja tentar. Estamos cientes de
que nenhum de vós se sente satisfeito com os regulamentos desta casa, que de algum modo
intercepta noticiário circunstanciado proveniente dos planos terrenos. No entanto, será bom sejais
informados de que, se tal rigor se verifica, a vosso benefício o estabelecemos, muito embora não
exista formal proibição para uma rápida visita à Terra, como ides ver dentro em pouco. Atentai
neste aparelho de visão à distância, que já conheceis, e acompanhai os passos de nosso Jerônimo
desde o presente momento. Caso venha a obter a licença que impetra, como espero que aconteça, dada a insistência em que se atém, fareis com ele a peregrinação que tanto deseja em torno da
família, sem, no entanto, precisardes sair deste local... E amanhã, se ainda desejardes descer aos
vossos antigos lares em visitação prematura, sereis atendidos imediatamente... a fim de que as
revoltas que vos vêm ferindo a mente não continuem retardando a aquisição de pendores novos
que vos possam beneficiar futuramente... Todos os demais enfermos em idênticas condições
recebem igual sugestão neste momento..." Aproximou­se do aparelho e, com graciosa desenvoltura, ampliou­o até que pudesse
retratar a imagem de um homem em tamanho natural.
Perplexos, mas interessados, deixamos o leito, que raramente abandonávamos, a fim de
nos postarmos diante da placa que principiava a iluminar­se. Fizeram­nos sentar comodamente, em
poltronas que ornavam o recinto, enquanto aqueles zelosos colaboradores do além tomaram lugar
ao nosso lado. Era como se aguardássemos o início de uma peça teatral. De súbito Joel surgiu diante de nós, tão visível e naturalmente, destacando­se no mesmo
plano em que nos encontrávamos, que o supusemos dentro da enfermaria, ou que nós outros
seguíssemos ao seu encalço... Amparava Jerônimo pelo braço... caminhando em busca da saída de
serviço... e tão intensa ia­se tornando a sugestão que logo nos abstraímos, esquecidos de que, em
verdade, continuávamos comodamente sentados em poltronas, em nossos aposentos... Mais real do que o atual cinematógrafo e superior ao engenho da televisão do momento, esse magnífico receptor de cenas e fatos, tão usado em nossa Colônia, e que tanta admiração nos
causava, em esferas mais elevadas desdobrava­se, evolutia até atingir o sublime no auxílio à
instrução de Espíritos em marcha para a aquisição de valores teóricos que lhes permitissem,
futuramente, testemunhos decisivos nos prélios terrenos, indo rebuscar e selecionar, nas
longínquas planícies do espaço celeste, o próprio passado do Globo Terráqueo e de suas
Humanidades, sua História e suas Civilizações, assim como o pretérito dos indivíduos, se
necessário, os quais jazem esparsos e confundidos nas ondas etéreas que se agitam, se eternizam
pelo invisível a dentro, nelas permanecendo fotografados, impressos como num espelho, conquanto se conservem confusamente, de roldão com outras imagens, tal como na consciência
das criaturas se imprimiram também seus próprios feitos, suas ações diárias!
Assim foi que atravessamos algumas alamedas do parque branco e atingimos o Edifício
Central, onde se assentava a chefia daquela formosa falange de cientistas iniciados que laboravam
no Departamento Hospitalar.
Achegada, porém, Jerônimo passou para a tutela de um assistente do diretor e Joel
retirou­se, tendo aquele conduzido imediatamente o visitante, fazendo­o passar a uma sala onde
amplas janelas deitavam vistas para o jardim, deixando descortinar­se o panorama melancólico do
burgo onde tantas e tantas dores se entrechocavam!
Era um gabinete, espécie de escritório de consultas ou sala de visita, disposto em perfeito
estilo indiano. Perfume sutil, de essência desconhecida ao nosso olfato, deliciou­nos, ao mesmo tempo
que alongava nossa admiração pela natureza inapreciável do aparelho que nos servia. Leve
reposteiro, de tecido flexível e docemente lucilante, agitou­se numa porta fronteira e o diretor­
geral do Departamento Hospitalar apresentou­se. De um salto o pobre Jerônimo, que se havia sentado, procurou levantar­se e seu primeiro
gesto foi de fuga, no que se viu interceptado pelo acompanhante. A sua frente estava um varão entre quarenta e cinqüenta anos, rigorosamente trajado à
indiana, com turbante alvo onde cintilava formosa esmeralda qual estrela; túnica de mangas fartas,
faixa à cintura e sandálias típicas. O oval do rosto, suavemente moreno, era de pureza clássica de
linhas, e de seus olhos fúlgidos e penetrantes como se desprendiam chispas de inteligência e
penetração magnética. Ao anelar da sinistra, gema preciosa, semelhante à do turbante, distinguia-­o, quiçá como mestre dos demais componentes da plêiade formosa de médicos ao serviço do Hospital
Maria de Nazaré. Tão encantados quanto o próprio Jerônimo, confessamo­nos vivamente atraídos pela
nobre figura. Sem delongas o assistente Romeu, pois era ele que havia recebido o impetrante, disse ao
que vinha: "- Caro irmão Teócrito, aqui está nosso pupilo Jerônimo de Araújo Silveira, que tanto
nos vem preocupando... Deseja visitar a família no ambiente terreno, pois acredita estar além das
suas possibilidades de conformação a obediência aos princípios de nossa instituição... E afirma
preferir o acúmulo de pesares à espera de ocasião oportuna para o desejado desiderato..."
Irreverente, o apresentado interrompeu com nervosismo: "- É bem essa a expressão da verdade, Sr. Príncipe! - pois imaginava­se em presença
de um soberano - Prefiro envolver­me novamente no remoinho de dores do qual saí há pouco, a
suportar por mais tempo as ferazes saudades que me cruciam pela falta de notícias de minha
família!... Se, pois, não existe proibição intransigente nas leis que facultariam essa possibilidade,
rogo à generosidade de Vossa Alteza concessão para rever meus filhos!... Oh! As minhas queridas
filhas! Confio são formosas, senhor! São três, e apenas um varão: Arinda, Marieta, Margarida, que
deixei com sete anos, e Albino, que contava já os dez!... Sofro tantas saudades, Senhor meu
Deus!... Minha esposa chama­se Zulmira, bonita mulher! E bastante educada!... Aflijo­me
desesperadamente! Não consigo calma para a necessária ponderação quanto à minha esquisita
situação atual!... E por isso rogo humildemente a Vossa Alteza compadecer­se de minhas
angústias!"Os olhos faiscantes do chefe da falange de médicos caíram enternecidos sobre o Espírito
intranqüilo daquele que demoraria ainda a aprender a dominar­se. Contemplou­o bondosamente, penalizado ante a desarmonia mental do suplicante, entrevendo o longo carreiro de lutas que lhe
seria necessário até que conseguisse planá­la às gratas atitudes da renúncia ou da conformidade!
Surpreso, Jerônimo que contava encontrar a sombranceria dos burocratas terrenos, estagnados nas
farfalhices apalhaçadas a que se apegam, sob quais estava habituado, percebeu naquele olhar
perscrutador a humildade de uma lágrima oscilando nas pálpebras. O nobre varão tomou­o docemente pelo braço, fazendo­o sentar­se à sua frente, em
cômodo coxim, enquanto Romeu, de pé, observava respeitosamente. O hindu ofereceu ao suicida
uma taça com água cristalina, por ele mesmo retirada de elegante jarro reluzente qual neblina sob a
carícia do sol. O português sorveu­a, incapacitado de recusar; depois do que, algo serenado, tomou
atitude de espera à solicitação enunciada. "- Meu amigo! Meu irmão Jerônimo! - começou Teócrito - Antes de à versão da tua
súplica oferecer resposta, devo esclarecer que, absolutamente, não sou um príncipe, como
supuseste, e, por isso mesmo, não arrasto o titulo de Alteza. Sou, simplesmente, um Espírito que
foi homem! Que, tendo vivido, sofrido e trabalhado em várias existências sobre a Terra, aprendeu, no trajeto, algo que com a própria Terra se relaciona. Um servo de Jesus Nazareno - eis o que me
honro de ser, embora muito modesto, pobre de méritos, rodeado de senões! Um trabalhador humilde que, junto de vós, que sofreis, ensaia os primeiros passos no cultivo da Vinha do Mestre
Divino; destacado temporariamente, e por Sua ordem magnânima, para os serviços de Maria de
Nazaré, Sua augusta Mãe!
Entre nós ambos, Jerônimo, eu e tu, pequena diferença existe, distância não muito
avançada: é que, tendo vivido maior número de vezes sobre a Terra, sofri mais, trabalhei um pouco
mais, aprendendo, portanto, a me resignar melhor, a renunciar sempre por amor a Deus, e a
dominar as próprias emoções; observei, lutei com mais ardor, obtendo, destarte, maior soma de
experiência. Não sou, como vês, soberano destes domínios, mas simples operário da Legião de
Maria, Maria, única Majestade a governar este Instituto Correcional onde te abrigas
temporariamente! Um, teu irmão mais velho, eis a verdadeira qualidade que em mim deverás
enxergar!... Sinceramente desejoso de auxiliar­te na solução dos graves problemas que te
enredam... Chama­me, pois, Teócrito, e terás acertado..." Fez breve pausa, alongando os belos olhos pela amplidão nevoenta que se divisava
através das janelas, e prosseguiu, enternecido: "- Desejas rever teus filhos, Jerônimo?!... É justo, meu amigo! Os filhos são parcelas do
nosso ser moral também, cujo amor nos transporta de emoções supremas, mas que não raramente
também nos reduz à desolação de percucientes desgostos! Compreendo tuas ânsias frementes de
pai amoroso, pois sei que amaste teus filhos com sinceridade e desprendimento! Sei da fereza das
tuas dúvidas atuais, afastado daqueles entes queridos que lá ficaram, no Porto, órfãos da tua
direção e do teu amparo! Como tu, eu também fui pai e também amei, Jerônimo! É mais do que
justo, pois, que eu, validando teus sentimentos afetivos pela termometria dos meus, louve tua
aspiração antes de censurá­la, porquanto muito atesta ela em favor dos teus respeitos pela Família!
Contudo, de modo algum eu aconselharia a preterires este recinto, onde tão penosamente te
reergues, pelas influenciações deletérias dos ambientes terrenos, ainda que apenas por uma hora!
Ainda que para procurar informes de teus filhos!..."
"- Senhor! Com o devido respeito à vossa autoridade, suplico comiseração! . . . Trata­se
de visita rápida... dando­vos eu minha palavra de honra em como voltarei... Pois bem sei que não
passo de um prisioneiro..." - recalcitrou ainda o antigo impaciente, perdendo­se novamente nas
confusões mentais em que se aprazia enredar. "- Ainda assim não aprovarei a realização desse desejo no momento, conquanto o
proclame justo... Sofreia um pouco mais os impulsos do teu caráter, meu Jerônimo! Aprende a
dominar emoções, a reter ansiedades, tornando­as em aspirações equilibradas sob a proteção santa
da Esperança! Lembra­te de que foram tais impulsos, desequilibrados, estribados na irresignação, na impaciência e no desconchavo do senso, que te arremessaram à violência do suicídio! Verás,
sim, teus filhos! Porém, a teu próprio benefício peço que concordes em adiar o projeto em mira
para daqui a alguns poucos meses... Quando estiveres mais bem preparado para enfrentar as
conseqüências que se precipitaram após teu desordenado gesto! Concorda, Jerônimo, em te
submeteres ao tratamento conveniente ao teu estado, ao qual teus companheiros se submetem de
boamente, confiando nos servidores leais que a todos vós desejam socorrer com amor e
desprendimento! Cede ao convite para a reunião de hoje à noite, porque imensos benefícios dela auferirás... Ao passo que uma visita à Terra neste momento, o contacto com a família, nas
precárias condições em que te encontras, estariam em oposição aos planos suaves já elaborados
para conduzir­te à tão necessária reorganização de tuas forças..."
"- Mas... Eu não adquiriria serenidade para nenhum projeto futuro enquanto não
obtivesse as desejadas informações, senhor!... Oh, Deus do Céu! Margaridinha, minha caçula, que
lá ficou, com sete anos, tão loira e tão linda!..."
"- Já te lembraste de apelar para a grandeza paternal do Senhor Todo­Poderoso, a fim de
obteres valor para a resignação de uma espera muito prudente, que seria coroada de êxitos?... Queremos o teu bem­estar, Jerônimo, nosso desejo é encaminhar­te a situação que te forneça
trégua para a reabilitação que se impõe... Volta­te para Maria de Nazaré, sob cujos cuidados foste
acolhido... é preciso que tenhas boa­vontade para te elevares ao Bem! Pratica a prece... procura
comungar com as vibrações superiores, capazes de te animarem a empreendimentos redentores... É
indispensável que o faças por livre e espontânea vontade, porque nem te poderemos obrigar a fazê­
lo nem poderíamos fazê­lo por ti... Renuncia, pois, a esse projeto contraproducente e confia em
nossos bons desejos de auxílio e proteção à tua pessoa..." Mas o ex­comerciante do Porto era inacessível. O caráter rebelde e violento, que num
assomo de voluntariedade sinistra preferiu a morte a ter de lutar, impondo­se à adversidade até
corrigi­la e vencê­la, retorquiu impacientado, não compreendendo a sublime caridade que recebia: "- Confiarei, senhor... irmão Teócrito... Viverei de rojo aos pés de todos vós, se
necessário for!... Mas depois de rever os meus entes caros e inteirar­me das razões por que me
abandonaram, ressarcindo, de algum modo, estas saudades que me despedaçam..." Cumprido seu dever de conselheiro, Teócrito compreendeu que seria inútil insistir.
Contemplou o pupilo desfeito em lágrimas e murmurou tristemente, enquanto Romeu abanava a
cabeça, penalizado: "- Afirmas grande verdade, pobre irmão! Sim! Só depois!... Só depois encontrarás o
caminho da reabilitação!... Há índoles que só os duros aguilhões da Dor serão bastante poderosos
para corrigir, encaminhando­as para o Dever!... Ainda não sofreste o suficiente para te lembrares
de que descendes de um Pai Todo­Misericordioso!"
Deixou­se estar alguns instantes pensativo e continuou: "- Poderíamos evitar este incidente, impedir a visita e punir­te pela atitude tomada. Assiste­nos para tanto autoridade e permissão. Mas és ainda demasiadamente materializado, padecendo, portanto, muitos prejuízos terrenos, para que nos possas compreender!... Aliás, nossos
métodos, persuasivos e não dominadores, seriam incompatíveis com uma proibição intransigente, por mais harmonizados com a Razão... Contudo, consultarei nossos Instrutores do Templo, como é
dever em dilemas como o que acabas de criar..." Concentrou­se firmemente, retirando­se para compartimento secreto, contíguo ao
gabinete de consultas. Comunicou­se telepaticamente com a direção­geral do Instituto, que pairava
no cantão do Templo, e, após curto espaço de tempo, tornou, dando a nota final: "- Nossos orientadores maiores te permitem liberdade de ação. Conquanto uma entidade
nas tuas condições não possa desfrutar a liberdade natural ao Espírito livre das peias carnais, não poderás também ser por nós violentado a deveres que te repugnariam. Visitarás teus entes queridos
na Terra... Irás, portanto, a Portugal, à cidade do Porto, onde residias, a Lisboa, tal como desejas... E como a ternura paternal do Criador leva a extrair, muitas vezes, de um ato imprudente ou
condenável, exemplificação salutar para o próprio delinqüente ou para o seu observador, estou
certo de que tua inconseqüência nem será estéril para ti mesmo nem deixará de avolumar
profundas advertências para quantos de boa­vontade delas tomarem conhecimento. Atenta porém, no seguinte, meu caro Jerônimo: É que, deixando de aceitar nossos conselhos e insurgindo­te
contra os regulamentos deste Instituto, cometerás falta cujas conseqüências recairão sobre ti
mesmo. Essa visita será realizada sob tua exclusiva responsabilidade! Não existe permissão para
ela: é o teu livre­arbítrio que a impõe! Se os descontentamentos daí conseqüentes exorbitarem das
tuas capacidades para o sofrimento, dirigirás as queixas contra ti mesmo, porquanto nossos
esforços só se aplicam em dulcificar infortúnios e evitá­los quando desnecessários... Por isso
mesmo deixamos de fornecer as desejadas notícias pelos meios de que dispomos... pois a verdade
é que não havia necessidade de te afastares daqui a fim de obtê­las..." Voltou­se para o assistente e prosseguiu: "- Preparem­no para que siga... Satisfaçam­lhe os caprichos sociais terrenos... porque
bem cedo se aborrecerá da Terra... Que o deixem agir como deseja... A lição será amarga, mas
ensejará mais rápida compreensão e conseqüentemente progresso..." Fez­se pausa na seqüência da reprodução dos acontecimentos. Surpreendera­nos grande
ansiedade ao passo que censurávamos o companheiro pela displicência com que se portara. Concordáramos em atribuir à má educação de Jerônimo o desrespeito manifesto aos regulamentos
da nobre instituição, no que fomos aparteados pelos servidores presentes: "- Certamente, a boa educação social auxilia grandemente a adaptação aos ambientes
espirituais. Ela não representa, porém, tudo. Os sentimentos depurados, o estado mental
harmonizado a princípios elevados, as boas qualidades de caráter e de coração, produzindo a "boa
educação" moral, é que formam o elemento primordial para uma prometedora situação no além­
túmulo... desde que um suicídio não venha anular tal possibilidade..."
"- Não poderiam os diretores desta casa fornecer as notícias solicitadas, sem que o
enfermo se arriscasse a uma viagem de gravosas conseqüências para o seu estado geral?" -
inquiri, curioso. "- Sim, se tais notícias concorressem para o bem­estar do paciente. Aliás, em regra
geral, convém a entidades nas vossas condições absterem­se de quaisquer choques ou emoções que
alimentem o estado de excitação em que se encontrem... Notícias da Terra jamais confortarão
algum de nós, que pertencemos à Espiritualidade! No presente caso torna­se evidente o desejo da
administração da casa de encobrir ao pobre enfermo algo que o ferirá profundamente, sem
necessidade. Se se submetesse de boa­vontade aos regulamentos protetores, a realidade que
presenciará dentro em pouco viria ao tempo em que estivesse suficientemente preparado para
enfrentá­la, o que evitaria choques grandemente dolorosos. Insubordinando­se, porém, coloca­se
em situação melindrosa, razão por que foi ele entregue às próprias inconseqüências, as quais farão com violência, em torno dele, o trabalho educativo que seus conselheiros efetuariam suave e
amorosamente..." Eis, porém, que voltávamos a observar movimentação na luminosidade do receptor de
imagens. E o que então se passou exorbitou tanto de nossa expectativa que passamos a sofrer com
o desventurado Jerônimo os dramáticos sucessos com sua família desenrolados depois de sua
morte. O assistente Romeu providenciou ordens para o Departamento de Vigilância, ao qual se
achavam afetos todos os serviços exteriores da Colônia. Olivier de Guzman, seu diretor zeloso, apelou para a Seção das Relações Externas, no sentido de serem fornecidos dois guias vigilantes, de competência comprovada, a fim de acompanharem o visitante à Terra, pois não seria admissível
abandonar­se aos perigos de tal excursão um pupilo da Legião dos Servos de Maria, ainda
inexperiente e fraco. Apresentaram­se Ramiro de Guzman, no qual reconhecemos o chefe das expedições que
visitavam o Vale Sinistro, sob cuja responsabilidade de lá também saíramos; e outro cujo nome
ignorávamos, ambos igualmente envergando a já popular indumentária de iniciados orientais. Começávamos a compreender que, nesse Instituto modelar, os postos avançados, de mais
grave responsabilidade; as tarefas melindrosas, que exigissem maior soma de energia, vontade,
saber e virtudes, achavam­se a cargo dessas personagens atraentes e belas, em quem
descortinamos, desde os primeiros dias, altas qualidades morais e intelectuais. As ordens de Olivier foi preparada expedição condigna, em a qual não faltou nem mesmo
a guarda de milicianos. No entretanto, transformação sensível operara­se nas atitudes do pobre Jerônimo. A auto­ obsessão da visita à família, conturbando­lhe as faculdades, tornava­o alheio a tudo que o rodeava,
reintegrando­o mais do que nunca à condição que fora a sua quando homem: burguês rico de
Portugal, comerciante de vinhos, zeloso da opinião social, escravo dos preconceitos, chefe de
família amoroso e extremado. Víamo­lo agora trajando boa sobrecasaca, vistosa gravata, bengala
de castão dourado e sobraçando ramalhete de rosas para oferecer à esposa, pois tudo isso exigira
da paciente vigilância de Joel, a quem haviam recomendado satisfazer­lhe os desejos. E nossos
mentores, presentes na enfermaria, apreendendo nossa admiração, esclareciam que, só muito
vagarosamente, Espíritos vulgares ou muito humanizados conseguem desfazer­se dessas pequenas
frivolidades inseparáveis das rotinas terrestres. Rigorosamente guardado, a viajar em veículo discretamente fechado, Jerônimo
assemelhava­se, com efeito, a um prisioneiro. Parecia não se aperceber disso, no entanto. Parecia
não distinguir mesmo a presença de Ramiro e seus auxiliares, tão abstrato se encontrava, julgando­
se em viagem como outras que outrora lhe foram comuns. Corria regularmente o veículo. Não fora a presença dos guardiães recordando a cada
instante a natureza espiritual da cena, afirmaríamos tratar­se de carruagem que nada tinha de
"criação semimaterial", que a necessidade dos métodos educativos do Além impõe, mas de um
muito pesado e confortável meio de transporte que bem poderia pertencer à própria Terra.
Vimos que atravessavam estradas sombrias, gargantas cobertas de plúmbeas nevadas, desfiladeiros, vales lamacentos quais brejais desoladores, cuja visão nos deixavam inquietos, pois
asseveravam nossos atenciosos assistentes serem tais panoramas produtos mentais viciados dos
homens terrenos e de infelizes Espíritos desencarnados, arraigados às manifestações inferiores do
pensamento. Os viajantes, porém, atingiam agrupamentos como aldeias miseráveis, habitadas por
entidades pertencentes aos planos ínfimos do Invisível, bandoleiros e hordas de criminosos
desencarnados, os quais investiam sobre a carruagem, maldosos e enraivecidos, como desejando
atacá­la por adivinharem no seu interior criaturas mais felizes que elas próprias. Mas a flâmula
alvinitente, indiciando o emblema da respeitável Legião, fazia­os recuar atemorizados. Muitos
desses futuros arrependidos e regenerados - pois tendiam todos ao progresso e à reforma moral
por derivarem, como as demais criaturas, do Amor de um Criador Todo Justiça e Bondade - descobriam­se como se homenageassem o nome respeitável evocado pela flâmula, ainda
conservando o hábito, tão comum na Terra, do chapéu à cabeça, enquanto outros se afastavam em
gritos e lágrimas, proferindo blasfêmias e imprecações, causando­nos pasmo e comiseração... E o
carro prosseguia sempre, sem que seus ocupantes se dirigissem a nenhum deles, certos de que não
soara ainda para seus corações endurecidos no mal o momento de serem socorridos para
voluntariamente cogitarem da própria reabilitação. De súbito, brado uníssono, conquanto discreto, exalou­se de nossos peitos qual soluço de
saudade enternecedora, vibrando docemente pela enfermaria: - Portugal! Pátria venerada! Portugal!... Oh! Deus do Céu!... Lisboa! O Tejo formoso e
sobranceiro!... O Porto! O Porto de tão gratas recordações!... Obrigado, Senhor Deus!... Obrigado
pela mercê de revermos o torrão natal depois de tantos anos de ausência e de tumultuosas
saudades!... E chorávamos enternecidos, gratamente emocionados! Paisagens portuguesas, com efeito,
todas muito queridas aos nossos doloridos corações, rodeavam­nos como se, tal como afirmaram
de inicio os mentores presentes, fizéssemos parte da comitiva do pobre Jerônimo!
Radicando­se mais em nós a sugestão consoladora pela excelência do receptor, mais se
acentuavam em nossas faculdades a impressão de que pessoalmente pisávamos o solo português, quando a verdade era que não saíramos do Hospital!
A silhueta, a princípio longínqua, da cidade do Porto, desenhou­se palidamente nas
brumas tristonhas que envolvem a atmosfera terráquea, qual desenho a "crayon" sobre tela
acinzentada. Alguns instantes mais e a estranha caravana caminhava pelas ruas da cidade, qual o
fizesse no cantão da Vigilância, o que muito nos edificou.
Algumas artérias portuguesas, velhas conhecidas do nosso tumultuoso passado, desfilaram sob nossos olhos róridos de comovido pranto, como se também por elas transitássemos. Agitadíssimo, Jerônimo, pressentindo a realidade daquilo que ominosas angústias lhe segredavam
ao senso, e que apenas a insânia do pavor ao inevitável teimava inutilmente acobertar, estacou à
frente de uma residência de boa aparência, com jardins e sacadas, subindo precipitadamente a
escadaria, enquanto os tutelares se predispunham caridosamente à espera. Fora ali a sua residência.
O antigo comerciante de vinhas entrou desembaraçadamente, e seu primeiro impulso de
afeto e saudade foi para a filha caçula, por quem nutria a mais apaixonada atração: "- Margaridinha, oh! Minha filhinha querida! Aqui está o teu papai, Margaridinha!... Mar­ga­ri­di­nha?!..." - tal qual lhe chamava outrora, todas as tardes, voltando ao lar após as
lides penosas do dia... Mas ninguém acudia aos seus amorosos apelos! Apenas a indiferença, a solidão
decepcionante em derredor, augurando desgraças porventura ainda mais rijas do que as suportadas
por seu coração até ali, enquanto nas profundezas sentimentais de sua alma atormentada por
múltiplos dissabores atroavam desoladoramente os brados amorosos, mas inúteis, do seu carinho
de pai, incorrespondidos agora pela mimosa criança já afastada daquele local, que tão querido lhe
fora! "- Margaridinha!... Onde estás, filhinha?... Margaridinha!... Olha que é o teu papaizinho
que chega, minha filha!..." Procurou por toda a casa. Parecia, no entanto, que haviam desaparecido de sob a luz do
Sol todos aqueles pedaços sacrossantos de sua alma, que ali deixara, e que, único sobrevivente, ele, de incomensurável catástrofe, não se podia acomodar à esmagadora realidade de rever
desabitado, dramaticamente vazio, o lar que tanto estremecera!
Chamou pela esposa, nomeou os filhos um a um, e finalmente bradou pelos criados: Não
via ninguém!
Sombras e vultos estranhos, no entanto, moviam­se pelos compartimentos que
pertenceram à família e deixavam­no bramir e interrogar sem se dignarem responder, não se
apercebendo de sua presença... pois tratava­se de indivíduos encarnados, eram os novos habitantes
da casa que lhe pertencera! O próprio mobiliário, a decoração interior, tudo se apresentava
diferente, apontando acontecimentos que o confundiam. Decepção pungente desferiu­lhe golpe
certeiro, deslocando­lhe da alma o primitivo entusiasmo para que aflitivas induções nela mais se
avigorassem. Reparando suspensas aos muros de determinado aposento telas que lhe eram
desconhecidas, seu olhar fixou­se num cromo colocado a um ângulo da estufa, cuja folhinha
indicava a data do dia decorrente. Leu­a: "6 de novembro de 1903"
Um arrepio de terror insopitável repassou soturnamente por suas faculdades vibratórias. Fez um esforço inaudito, movimentando reminiscências; vasculhou lembranças, sacudindo a
poeira mental de mil idéias confusas que lhe toldavam a clareza do raciocínio. A vertigem da
surpresa em face da realidade irremediável, que até ali ele retardara a custa da má­vontade de
sofismas ingênuos, tonteou­lhe o raciocínio: não cogitara inteirar­se de datas durante muito tempo!
A verdade era que perdera a noção do tempo envolvido no bulcão das desgraças que o colheram
após o malfadado gesto de trânsfuga da vida terrena! Tão agudo fora o estado de loucura em que
se debatera desde o trágico momento em que tentara o suicídio; tão grave a enfermidade que o
atingira após o choque pela introdução do projétil no cérebro, que, graças aos tormentos daí
conseqüentes, perdera a contagem dos dias, desviara­se pelo Desconhecido a dentro sem mais
averiguar se os dias eram noites, se as noites eram dias... Pois, no abismo em que se vira
aprisionado tanto tempo, só existiam trevas por visão! Para ele, para sua percepção obliterada pelo desespero, a contagem social do Tempo ainda era a mesma do dia aziago, pois não se recordava de
outra depois dessa: 15 de fevereiro de 1890. Eis, porém, que a folhinha à sua frente, indiferente, mas expressiva, servindo a uma
grandiosa causa, revelava ao mártir que estivera ausente de sua casa durante treze anos!
Atirou­se para a rua em correria, batido e apavorado frente ao choque do pretérito, de
encontro à realidade do presente, a mente conflagrada por inalienável desconsolo. Indagaria dos
vizinhos o paradeiro da família, que se mudara, decerto, em sua ausência. Os lanceiros, porém, à
porta, cruzando as armas, formaram barreira intransponível, interceptando­lhe a fuga impensada, e
obrigando­o a refugiar­se no interior do carro. Aos protestos impressionantes do infeliz, inconformado com a prisão em que se
reconhecia, acudiram curiosos e vagabundos do plano invisível, Espíritos ainda homiziados nas
camadas depressoras da Terra. Entre chacotas, apupos e gargalhadas atormentavam­no com
incriminações e censuras, ao passo que esclareciam o que acontecera àqueles a quem procurava. Ramiro de Guzman e seus auxiliares não interferiram, no sentido de evitarem a Jerônimo o
dissabor de ouvi­los, uma vez que a visita decorria sob a responsabilidade deste, e que somente
lhes haviam recomendado garantirem o regresso à Colônia dentro de poucas horas. "- Pretendes então esclarecer o paradeiro de tua muito amada família, ó miserável
príncipe dos bons vinhos?! - vociferavam os infelizes - Pois saibas tu que daí foram todos
enxotados, há muitos anos!... Teus credores tomaram­lhes a casa e o pouco que, para teus filhos, andaste ocultando à última hora! Procura teu filho Albino na Penitenciária de Lisboa! Tua
"Margaridinha" nas sarjetas do Cais da Ribeira, vendendo peixes, fretes e amores a quem se dignar
remunerá­la com mais prodigalidade, explorada pela própria mãe, tua esposa Zulmira, a quem
habituaste a luxo exorbitante para as tuas posses, e cujo orgulho jamais pôde afazer­se ao trabalho
digno e à pobreza!... Tuas filhas Maneta e Arinda?... Oh! A primeira está casada, sobrecarregada
de filhos enfermiços, a bracejar na miséria, a sofrer fome, espancada por um marido ébrio e
boçal... A segunda... chada de hotéis de quinta ordem, a lavar chão, a brunir panelas, a limpar
botas de viajantes imundos! Ouves e te espantas?... Tremes e te aterrorizas?... Por quê?... Que
esperavas, então, que acontecesse?!... Não foi essa a herança que lhes deixaste com o teu suicídio, canalha?!"
E entraram a enxovalhar o desventurado com insultos e vitupérios quais vaias impiedosas,
intentando atacar a viatura a fim de arrebatá­lo, no que foram impedidos pela guarda protetora. Não obstante, exigiu o rebelde pupilo da Legião dos Servos de Maria que o levassem
onde se encontrava o filho, esperança que fora da sua vida, aquele rebento querido, que ficara na
florescência delicada das dez primaveras quando ele próprio, seu pai, houvera por bem abandoná­
lo aos perigos da orfandade, matando­se. Convulsionado sob a ardência de pranto insólito, compreendeu que era conduzido e que
penetrava os muros sinistros de um cárcere, sem que houvesse podido distinguir se se encontrava
no Porto ou realmente em Lisboa. Com efeito! Ali estava Albino, metido em cela sombria, implicado em crimes de
chantagem e latrocínio, condenado a cinco anos de prisão celular e a outros tantos de trabalhos forçados na África, como reincidente nas gravíssimas faltas! Apesar da diferença marcante de
treze anos de ausência, Jerônimo reconheceu o filho, esquálido, pálido, maltratado pelos rigores do
cativeiro, embrutecido pelos sofrimentos e pela miséria, atestado patético do homem desvirtuado
pelos vícios!
O antigo negociante contemplou o mísero vulto sentado sobre um banco de pedra, na
semi­obscuridade da cela, o rosto entre as mãos. Dos olhos amortecidos, fitos nas lajes do chão,
rolavam lágrimas de desespero, compreendendo o suicida que o jovem sofria profundamente. Extenso desfilar de pensamentos caliginosos corria pela mente do cativo, e, dada a
circunstância da atração magnética existente entre ambos, pôde o hóspede do Hospital Maria de
Nazaré inteirar­se das comovedoras peripécias que ao desventurado moço haviam arrastado a tão
deplorável ocaso da vida social, apenas saíra da infância!
Como se a presença da atribulada alma de Jerônimo impregnasse de advertências
telepáticas seus dons sensíveis, Albino entrou a recordar, satisfazendo, sem o saber, os desejos do
pai, que almejava inteirar­se dos acontecimentos; e, como envergonhado das más ações cometidas,
recordava o genitor morto havia treze anos e ia dizendo ao próprio pensamento, enquanto as
lágrimas lhe escaldavam as faces e Jerônimo ouvia­o como se falasse em voz alta: "- Perdoai­me, Senhor, meu bom Deus! E vinde com Vossa Misericórdia socorrer­me
nesta emergência penosa de minha vida! Não foi, exatamente, desejo meu o precipitar­me neste
báratro insolúvel que me ferreteou para sempre! Eu quisera ser bom, meu Deus! Mas faltaram
amigos generosos que me estendessem mãos salvadoras, ocasiões favoráveis que me dilatassem
perspectivas honestas! Vi­me lançado ao abandono depois da morte de meu pai, criança indefesa e
inexperiente! Não tive recursos para instruir­me, habilitando­me em alguma coisa séria e digna!
Sofri fome! E a fome maltrata o corpo enquanto envenena o coração com as ansiedades da revolta!
Tiritei de frio em mansardas inóspitas, e o frio, que enregela o corpo, também enregela o coração!
Sofri a angústia negra da miséria sem esperança e sem tréguas, a solidão do órfão corroído de
saudades do passado, envelhecido em pleno alvorecer da vida, graças às desilusões de múltiplos
dissabores! Não me pude achegar aos bons, aos honestos e respeitáveis, para que me
compreendessem e ajudassem na conquista laboriosa de um futuro digno, porque aqueles de
nossos antigos amigos a quem procurei, confiante, me repeliram com desconfiança, entendendo
que eu pertencia a uma descendência marcada pela desonra, pois, além do mais, minha mãe
desvirtuou­se tão logo se reconheceu desamparada e só! Tornei­me homem depois de me
entrechocar com os piores aspectos e elementos da sociedade! Precisei viver! Acicatava­me o
orgulho ferido, a indomável ambição de libertar­me da miséria abominável que me acossava sem
tréguas desde o suicídio de meu pobre pai! Vi­me arrastado a tentações perversas, mas que, à
minha ignorância e à minha fraqueza, se afiguravam soluções salvadoras!... E cedi às suas
seduções, porque não tive o amparo orientador de um verdadeiro amigo a indicar o carreiro certo a
preferir!... Oh, meu Deus! Que triste é ver­se a criatura órfã e abandonada, ainda na infância, neste
mundo repleto de torpezas! ...Meu pobre e querido pai, por que te mataste, por quê?...Não amavas
então a teus filhos, que se desgraçaram com tua morte?... Por que te mataste, meu pai?... Oh! Não
tiveste sequer compaixão de nós? Lembro­me tanto de ti! Eu te amava! Eu amo... Muitas vezes, naqueles primeiros tempos, chorei inconsolável, com saudades tuas, tão bondoso eras para com
teus filhos! Se nos amavas, por que te mataste, por quê? Por que preferiste morrer, lançar­nos à
miséria e ao abandono, a lutar por amor de nós? Por que não resististe aos dissabores, prevendo
que tua falta desgraçaria teus pobres filhos que só contigo contavam neste mundo? Se viveras e
nos houveras terminado a criação eu seria hoje, certamente, um homem útil, respeitado e honesto, enquanto que, na verdade, não passo de um precito maculado pela desonra irreparável!"
Eram vibrações sombrias e causticantes, que repercutiam na consciência do pai­suicida
como estiletes a lhe rasgarem o coração! Confessava­se culpado único dos desastres insolúveis do
filho, e semelhante convicção se dilatava de intensidade, em diástoles torturantes, à proporção que
as recordações, emergindo das fráguas mentais de Albino, desfilavam quais retalhos de episódios
dolorosos, aos seus olhos aterrados de trânsfuga do Dever! Jamais um homem, na Terra, receberia
tão significativo libelo acusatório, presente ao tribunal da lei, como esse que o desventurado
suicida a si mesmo lançava validando a narração dos infortúnios descritos através das
reminiscências do filho, e que as sombras do presídio circundavam dos lúgubres atavios dos
dramas profundos e irremediáveis!
Desorientado, precipitou­se para o jovem, no incontido desejo de ressarcir tantas e tão
profundas amarguras como testemunho de sua presença, do seu perene interesse paternal, seu
indissolúvel amor pronto a estirar mão amiga e protetora. Queria desculpar­se, suplicar perdão, ele, o pai faltoso, dar­lhe expressivos conselhos que o reconfortassem, reerguendo­lhe o ânimo daquela
ruinosa prostração! Mas era em vão que o tentava, porque Albino deixava correr o pranto, sem vê­
lo, sem ouvi­lo, sem poder supor a presença daquele mesmo por quem chorava ainda!
Então o mísero se pôs a chorar também, emitindo vibrações chocantes, reconhecendo­se
impotente para socorrer o filho encarcerado. E como sua presença, expedindo desalentos, disseminando ondas nocivas de pensamentos dramáticos, poderia agir funestamente sobre a
mentalidade frágil do detento, sugerindo­lhe quiçá o próprio desânimo gerador do suicídio - Ramiro de Guzman e seu assistente aproximaram­se e desarmaram­lhe as investidas encobrindo
Albino de sua visão. "- Voltemos para nossa mansão de paz, meu amigo, onde encontrarás repouso e solução
suave para as tuas atrozes penúrias... - ponderava amigavelmente o chefe da expedição - Não
recalcitres! Volta­te para o Amor d'Aquele que, pregado no cimo do madeiro, ofereceu aos
homens, como aos Espíritos, os ditames da conformidade no infortúnio, da resignação no
sofrimento! Estás cansado... precisas serenar para refletir, porque, no melindroso estado em que te
encontras, nada alcançarás fazer a benefício de quem quer que seja!"
Mas, ao que tudo indicava, Jerônimo ainda não padecera suficientemente a fim de se
acomodar às advertências de seus guias espirituais. "- Não posso, queira desculpar­me, senhor!... - bradou voluntarioso - Não deixarei de
ver minha filha, minha Margaridinha! Quero vê­la! Preciso desmascarar a turba de maledicentes
que a vêm difamando!... A minha caçula, atirada ao Cais da Ribeira?!... A vender peixes?... Fretes?
E... Era o que faltava!... Impossível! Impossível tanta desgraça acumulada sobre um só coração!... Não! Não é verdade! Não pode ser verdade! Confio em Zulmira! É mãe! Velaria pela filha em minha ausência! Quero vê­la, meu Deus! Meu Deus! Preciso ver minha filha! Preciso ver minha
filha, ó Deus do Céu!"
Era bem certo, no entanto, que novas e mais atrozes torrentes de decepções se
despejariam sobre seu ulcerado coração, superlotando­o de dores irreparáveis!
Ainda ao longe, desenhara­se à visão ansiosa do estranho peregrino a perspectiva do Cais
da Ribeira, regurgitando de pessoas que iam e vinham em azafamas incansáveis. Avultavam as
vendedoras e regateiras, mulheres que se alugavam a fretes, de ínfima educação e honestidade
duvidosa.
Jerônimo pôs­se a caminhar entre os transeuntes, seguido de perto pelos guardas e o
paciente vigilante, que se diria a sua própria sombra. Esmagadores pressentimentos advertiam­no
da veracidade do que afirmavam os "difamadores". Mas, desejando mentir a si próprio, na suprema
repugnância de aceitar a abominável realidade, via­se compelido a investigar as fisionomias das
regateiras; ia, voltava, nervosamente, aflito, aterrado à idéia de se lhe deparar entre aquelas
despreocupadas e insolentes criaturas as feições saudosas da sua adorada caçula!
Deteve­se subitamente, num recuo dramático de alarme: acabara de reconhecer Zulmira
gesticulando, em discussão acalorada com uma jovem loira e delicada, que se defendia, chorando, das injustas e insofríveis acusações que lhe eram atiradas por aquela. Acercou­se apressadamente o
pupilo do nobre Teócrito, como impelido por desesperadora diástole, para, em seguida, atingido
por supremo golpe, estacar, submisso a sístole não menos torturante, reconhecendo na jovem
chorosa a sua Margaridinha. Era, com efeito, peixeira! Ao lado pousavam os cestos quase vazios. Trazia os vestidos
típicos da classe e socos imundos. Zulmira, ao contrário, trajava­se quase como as senhoras, o que
não a impedia portar­se como as regateiras. Girava em torno da féria do dia a discussão vergonhosa. Zulmira acusava a filha de
roubar­lhe parte do produto das vendas, desviando­a para fins escusos. A moça protestava entre
lágrimas, envergonhada e sofredora, afirmando que nem todos os fregueses do dia haviam solvido
seus débitos. No calor da discussão, Zulmira, excitando­se mais, esbofeteia a filha, sem que as
pessoas presentes parecessem admiradas ou tentassem impedir a violência, serenando os ânimos. Tomado de indignação, o antigo comerciante interpõe­se entre uma e outra, no intuito de
sanar a cena deplorável. Admoesta a esposa, fala carinhosamente à filha, enxuga­lhe o pranto, que
corria pelas faces, convida­a a recolher­se ao domicílio. Mas nenhuma das duas mulheres podiam
vê­lo, não podiam ouvi­lo, não se apercebiam de suas intenções, o que grandemente o irritava,
levando­o a convencer­se da inutilidade das próprias tentativas. Não obstante, Margaridinha suspendeu os cestos, ajeitou­os ao ombro e afastou­se. Zulmira, a quem as adversidades mal suportadas e mal compreendidas haviam arrastado ao
desmando, transformando­a em megera ignóbil, seguiu­a enraivecida, explodindo em vitupérios e
insultos soezes. O percurso foi breve. Residiam em sombria mansarda, nas imediações da Ribeira. Em
chegando ao misérrimo domicílio, a mãe desumana entrou a espancar excruciantemente a pobre
moça, exigindo­lhe a todo custo a totalidade da féria, enquanto, impotente, a peixeira implorava trégua e compaixão. Finalmente, a desalmada - para quem o Espírito atribulado do esposo leal
trouxera, das moradas do Astral, um ramalhete de rosas - saiu precipitadamente, arrastando
ondas turvas de ódio e pensamentos caliginosos, atirando aos ares insultos e blasfêmias no calão
que, agora, lhe era próprio, e do qual Jerônimo se surpreendeu, confessando desconhecê­lo. A jovem ficou só. A seu lado o vulto invisível do pai amoroso e sofredor entregava­se a
cruciantes expansões de pranto, reconhecendo­se impossibilitado de socorrer o adorado rebento do
seu coração, a sua Margaridinha, a quem entrevia ainda, mentalmente, tão loira e tão linda, na lirial
candidez dos sete anos!... Mas, tal como sucedera a seu irmão Albino, a infeliz menina ocultou o
rosto lavado em lágrimas entre as mãos e, sentando­se a um recanto, rememorou dolorosamente os
dias trevosos da sua tão curta e já tão acidentada vida!
Margarida abriu as comportas dos pensamentos, e ondas de recordações pungentes se
desprenderam aos borbotões, fazendo ciente ao pai o extenso calvário de desventura que passara a
palmilhar desde o dia nefasto em que ele se tornara réu perante a Providência, furtando­se ao dever
de viver a fim de protegê­la, tornando­a mulher honesta e útil à sociedade, à família e a Deus. Ouvia­a como se ela lhe falasse em voz alta. À proporção que se consolidavam as desgraças da
mísera órfã, acentuavam­se a decepção, a surpresa cruciante, a mágoa inconsolável, que lhe
atravessavam o coração como venábulos assassinos a lhe roubarem a vida! Caiu de joelhos aos pés
da sua desventurada caçula, as mãos cruzadas e súplices, enquanto jorrava o pranto convulsamente
de sua alma de precito e tremores traumáticos sacudiam­lhe a configuração astral, como se
estranhas sezões pudessem subitamente atingi­lo. E foi nessa humilhada posição de culpa que o pupilo da legião excelsa recebeu o supremo
castigo que as conseqüências do seu ominoso e selvagem gesto de suicídio poderia infligir à sua
consciência!
Eis o resumo acerbo do drama vivido por Margarida Silveira, tão comum nas sociedades
hodiernas, onde diariamente pais inconscientes desertam da responsabilidade sagrada de guias da
Família, onde mães vaidosas e levianas, destituídas da auréola sublime que o dever bem cumprido
confere aos seus heróis, desvirtuam­se aos solavancos brutais das paixões insanas, incontidas pela
perversão dos costumes:
Tornando­se órfã de pai aos sete anos, a loira e linda Margaridinha, frágil e delicada como
lírios florescentes, criara­se na miséria, entre revoltas e incompreensões, junto à mãe que, habituada à imoderação de insidioso orgulho, como ao imperativo de vaidades funestas, nunca se
resignara à decadência financeira e social que a surpreendera com o trágico desaparecimento do
marido. Zulmira prostituíra­se, esperando, em vão, reaver o antigo fastígio por essa forma culposa
e condenável. Arrastara a filha inexperiente para a lama de que se contaminara. Indefesa e
desconhecedora das insídias brutais dos ambientes e hábitos viciados que a corvejavam, a moça
sucumbiu muito cedo às teias do mal, a despeito de não apresentar pendores para as miseráveis
situações diariamente surgidas. A decadência chegou cedo, como cedo havia chegado a queda
desonrosa. 0 trabalho exaustivo e o Cais da Ribeira com sua usual movimentação de feira
ofereceram­lhes recursos para não se extinguirem, ela e a mãe, às aspérrimas torturas da fome!
Zulmira agenciava fretes, vendas variadas, negócios nem sempre honestos, empregando
geralmente na sua execução as forças e a juventude atraente da filha, a quem escravizara, usurpando lucros e vantagens para seu exclusivo regalo. A pobre peixeira, porém, cuja índole
modesta e aproveitável não se aclimatava ao fel da execrável subserviência, sofria por não entrever
possibilidade de sonegação à miserável existência que lhe reservara o destino. E, inculta,
inexperiente, tímida, não saberia agir em defesa própria, o que a fazia conservar­se submissa à
enoitada situação criada por sua própria mãe! Como Albino, também pensou no pai, advertida, no
recesso do coração, da sua invisível presença, e murmurou, oprimida e arquejante: "- Que falta tão grande tu me fazes, ó meu querido e saudoso pai!... Lembro­me tanto de
ti!... E minhas desventuras nunca permitiram olvidar tua memória, tão bom e desvelado foste para
com teus filhos! Quantos males o destino ter­me­ia poupado, meu pai, se te não houveras furtado
ao dever de velar por teus filhos até o final!... De onde estiveres, recebe as minhas lágrimas, perdoa a peçonha que sobre teu nome involuntariamente lancei, e compadece­te das minhas
ignóbeis desditas, ajudando­me a desentrançar­me deste espinheiro cruciante que me sufoca sem
que nenhuma fulguração de esperança libertadora venha encorajar­me!..." Era o máximo que o prisioneiro do Astral poderia suportar! Ele não possuía energias para
continuar sorvendo o fel das amarguras lançadas no sacrossanto seio de sua própria família pelo
ato condenável que contra si mesmo praticara! Ouvindo os lamentos da desgraçada filha a quem
tanto estremecia, sentiu­se abominavelmente ferido na mais delicada profundeza do seu coração
paternal, onde infernais clamores de remorsos repercutiram violentamente, acordando em suas
entranhas espirituais a dor inconsolável, a dor redentora da mais sincera compaixão que poderia
experimentar! Desesperando­se, na impossibilidade de prestar à filhinha infeliz socorro imediato, de falar­lhe, ao menos, insuflando ânimo à sua alma com o consolo de sua presença, ou
aconselhando­a, Jerônimo avolumou o padrão dos desatinos que lhe eram comuns e entregou­se à
alucinação, completamente influenciado pela loucura da inconformidade. Acorreram os lanceiros a imperceptível sinal de Ramiro de Guzman. Cercaram­no, protegendo­o contra o perigo de possível evasão, afastando­o apressadamente. Condoído em face dos infortúnios da jovem Margarida, Ramiro, que fora homem, fora pai
e tivera uma filha muito amada, porventura mais infeliz ainda, aproximou­se carinhosamente e, pousando em sua fronte as mãos protetoras, transmitiu­lhe ao ser suaves eflúvios magnéticos, confortativos e encorajadores. Margaridinha procurou o leito e adormeceu profundamente, sob a
bênção paternal do servo de Maria, enquanto o suicida, debatendo­se entre o "choro e o ranger de
dentes", suplicava que o deixassem socorrer, de qualquer modo, a filha ignobilmente ultrajada!
Dominando­o, entretanto, com energia, a fim de que por um momento procurasse raciocinar,
retorquiu o paciente guia: "- Basta de desatinos, irmão Jerônimo! Atingiste o máximo de desobediência e
voluntariedade que nossa tolerância poderia aceitar! Não queres, pois, compreender, que coisa
alguma poderás tentar em beneficio de teus filhos, enquanto não conquistares as qualidades para
tanto imprescindíveis, e que a ti mesmo escasseiam? Não entendes que teus filhos, em lutas com
provações aspérrimas, sucumbiriam fatalmente ao suicídio, como tu, se permanecesses junto deles, influenciando suas indefesas sensibilidades com as vibrações funestas que te são próprias, ainda
não devidamente esclarecido quanto ao estado geral em que te debates, tal como te preferes
conservar?... Partamos, Jerônimo! Regressemos ao Hospital... Ou desejarás, porventura, ainda
sondar os passos de Marieta e de Arinda?!"
Chocando­se como que sob a ação de forças renovadoras, o precito obteve um momento
de trégua contra si mesmo, a fim de ponderar alguns instantes. Sacudiu as desesperadoras
alucinações que lhe cegavam o raciocínio, e respondeu, resoluto: "- Oh! Não! Não, meu bom amigo! Basta! Não posso mais! Meus pobres filhos! A que
abismo vos arrojei, eu mesmo, que tanto vos amei!
Perdão, irmão Teócrito! Agora compreendo... Perdão, irmão Teócrito..." E, de nossa enfermaria, vimos que retornavam com as mesmas precauções.
Jerônimo não voltou a fazer parte do nosso grupo.

Memórias de um SuicidaOnde histórias criam vida. Descubra agora