No Hospital "Maria de Nazaré"

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Depois de algum tempo de marcha, durante o  qual tínhamos a impressão de estar 
vencendo grandes distâncias, vimos que foram descerradas as persianas, facultando­nos
possibilidade de distinguir, no horizonte ainda afastado, severo conjunto de muralhas fortificadas, enquanto pesada fortaleza se elevava impondo respeitabilidade e temor  na solidão de que se
cercava. Era uma região triste e desolada, envolvida em neblinas como se toda a paisagem fora
recoberta pelo sudário de continuadas nevadas, conquanto oferecendo possibilidades de visão. Não 
se distinguia, inicialmente, vegetação nem sinais de habitantes pelos arredores da fortaleza imensa. Apenas longas planícies brancas, colinas salpicando.a vastidão, assemelhando­se a montículos
acumulados pela neve. E ao fundo, plantadas no centro  dessa nostalgia desoladora, muralhas
ameaçadoras, a fortaleza grandiosa, padrão das velhas fortificações medievais, tendo por detalhe
primordial meia dúzia de torres cujas linhas grandemente sugestivas despertariam a atenção de
quem por ali transitasse. Funda inquietação percutiu rijamente em nossas sensibilidades, aviventando receios algo 
acomodados durante o trajeto. Que nos esperaria para além de tão sombrias fronteiras?... Pois era evidente que para ali
nos conduziam... Vista, à distância, a edificação apavorava, sugerindo  rigores e disciplinas austeras... Assaltou­nos tal impressão de poder, grandeza e majestade que nos sentimos ínfimos, acovardados
só no avistá­la. Aproximando­se cada vez mais, o comboio finalmente estacou  fronteiro a um grande
portão, que seria a entrada principal. Para além da cornija, caprichosamente trabalhada, e urdida em letras artísticas e graúdas,
lia­se em idioma português esta inscrição já nossa conhecida, a qual, como por encanto, serenou 
nossa agitação logo que a descobrimos –  “Legião dos Servos de Maria” –  seguindo­se esta
indicação que, emocionante, compeliu­nos a novas apreensões:
Colônia Corr ecional
Sem resposta às indagações confusas do pensamento ainda lerdo e atordoado pelas longas
dilacerações que me vinham perseguindo havia muito, desobriguei­me de averiguações e deixei
que os fatos seguissem livre curso, percebendo que meus companheiros faziam o mesmo. Não faltava à fortaleza nem mesmo a defesa exterior de um fosso. Uma ponte desceu 
sobre ele e o comboio venceu o empecilho fazendo­nos ingressar definitivamente nessa Colônia, não isentados, porém, de sérias preocupações quanto ao futuro que nos aguardava. De entrada, notamos pelas imediações numerosos militares, qual se ali se aquartelasse um regimento. Entretanto, estes muito se assemelhavam aos antigos soldados egípcios e hindus, o que muito nos
admirou. Sobre o pórtico da torre principal lia­se esta outra inscrição, parecendo­nos tudo muito 
interessante, como um sonho que nos cumulasse de incertezas: 
Torr e de Vigia
Em que localidade estaríamos?... Voltaríamos a Portugal?... Viajaríamos através de algum
país desconhecido, enquanto a neve se espalhava dominando a paisagem?... Passamos sem estacionar por essa grande praça militar, certo de que se trataria de uma
fortificação guerreira idêntica às da Terra, conquanto revestida de indefinível nobreza, inexistente
nas congêneres que conhecêramos através da Europa, pois não poderíamos, então, avaliar a
verdadeira finalidade da sua existência naquelas regiões desoladas do Invisível inferior, cercadas
de perigos bem mais sérios do que os que poderíamos presumir.
Com surpresa verificamos que entrávamos em cidade movimentadissima, conquanto 
recoberta por extensos véus de neve, ou cerração pesada. Não fazia, porém, frio intenso, o que nos
surpreendeu, e o Sol, mostrando­se a medo entre a cerração, deixava ocasião não só para nos
aquecermos, mas também para distinguirmos o que houvesse em derredor.
Edifícios soberbos impunham­se à apreciação, apresentando o formoso estilo português
clássico, que tanto  nos falava à alma. Indivíduos atarefados, neles entravam e deles saiam em
afanosa movimentação, todos uniformizados com longos aventais brancos, ostentando ao peito a
cruz azul­celeste ladeada pelas iniciais: L. S. M. Dir­se­iam edifícios, ministérios públicos ou  departamentos. Casas residenciais
alinhavam­se, graciosas e evocativas na sua estilização nobre e superior, traçando ruas artísticas
que se estendiam laqueadas de branco, como que asfaltadas de neve. A frente de um daqueles
edifícios parou o comboio e fomos convidados a descer. Sobre o pórtico definia­se sua finalidade em letras visíveis:  Departamento de Vigilância 
(Seção de Reconhecimento e Matrícula)
Tratava­se da sede do Departamento onde seríamos reconhecidos e matriculados pela
direção, como internos da Colônia. Daquele momento em diante estaríamos sob a tutela direta de uma das mais importantes agremiações pertencentes à Legião chefiada pelo grande Espírito Maria
de Nazaré, ser  angélico e sublime que na Terra mereceu  a missão honrosa de seguir, com
solicitudes maternais, Aquele que foi o redentor dos homens! 
Conduzidos a um pátio extenso e nobre, que lembraria antigos claustros de Portugal,
fomos em seguida transportados em pequenos grupos de dez individualidades, para determinado 
gabinete onde vários funcionários colaboravam nos trabalhos de registro. Ali deixaríamos a
identidade terrena, bem assim as razões que nos induziram ao suicídio, o gênero do mesmo como o 
local em que jazeram os despojos. Caso o recém­chegado não  estivesse em condições de
responder, o chefe da expedição supriria rapidamente a insuficiência, pois mantinha­se presente à
cerimônia, dando contas ao diretor  do  Departamento da importante missão que acabava de
desempenhar. Tão árduo trabalho, em torno de toda uma falange, levara quando muito dois quartos
de hora, porquanto os processos usados não eram idênticos aos conhecidos nas repartições
terrenas. As respostas dos pacientes seriam antes gravadas em discos singulares, espécie de álbuns
animados de cenas e movimentos, graças ao concurso de aparelhamentos magnéticos especiais. Tais álbuns reproduziriam até mesmo o  som de nossa voz, como nossa imagem e o 
prolongamento do noticiário sobre nós mesmos, desde que posto em contacto com admirável
maquinismo apropriado ao feito, exatamente como discos e filmes na Terra reproduzem a voz
humana e todas as demais variedades de sons e imagens neles existentes e que devam ser retidos e
conservados. Nossa identidade, portanto, era antes fotografada: as imagens emitidas por nossos
pensamentos, no ato das respostas às perguntas formuladas, seriam captadas por processos que na
ocasião escapavam à nossa compreensão. Durante muito tempo perdemos de vista as mulheres que conosco haviam chegado ao 
Departamento de Vigilância. Os regulamentos da Colônia impunham a necessidade de separá­las
de seus companheiros de desventura. Assim sendo, logo à chegada e imediatamente depois da matrícula, foram confiadas às
damas funcionárias da Vigilância a fim de serem encaminhadas aos Departamentos Femininos. Desde, portanto, que nos matriculavam, éramos separados do elemento feminino. Dentro em pouco, entregues a novos servidores, cujas operosidades se desenrolavam
aquém dos muros da instituição, fomos compelidos ao ingresso em novos meios de transporte, que
tudo indicava serem para uso dos perímetros internos, porquanto nos cumpria continuar a marcha,
iniciada desde o Vale. Nossas viaturas agora eram leves e graciosas, quais trenós ligeiros e confortáveis, puxados pelas mesmas admiráveis parelhas de cavalos normandos, e com capacidade para dez
passageiros cada um. Ao cabo de uma hora de corrida moderada, durante a qual deixávamos para
trás o bairro da Vigilância, penetrando, por  assim dizer, o campo, porque avançando em região 
despovoada, conquanto as estradas se apresentassem caprichosamente projetadas, orladas de
arbustos níveos quais flores dos Alpes, avistamos grandes marcos, como arcos de triunfo, assinalando o ingresso em novo Departamento, nova província dessa Colônia Correcional
localizada nas fronteiras invisíveis da Terra com a Espiritualidade propriamente dita.
Com efeito. Lá estava a indicação necessária entestando a arcada principal, norteando o 
recém­chegado por auxiliá­lo no esclarecimento de possíveis dúvidas: 
Departamento Hospitalar
A um e outro lado destacavam­se outras em que setas indicavam o início  de novos
trajetos, enquanto novas inscrições satisfaziam a curiosidade ou necessidade do viajante: 
À direita = Manicômio.  À esquerda = Isolamento.
Nossos condutores fizeram­nos ingressar pela do  centro, onde também se lia, em
subtítulo: 
Hospital Maria de Nazar é
Imenso parque ajardinado surpreendeu­nos para além dos marcos, enquanto amplos
edifícios se elevavam em locais aprazíveis da situação. Padronizando sempre o estilo português
clássico, esses edifícios apresentavam muita beleza e amplas sugestões com suas arcadas, colunas,
torres, terraços, onde flores trepadeiras se enroscavam acentuando agradável estética. Para quem, como nós, angustiados e miseráveis, procedia das atras regiões, semelhante localidade, não 
obstante insulsa, graças à inalterável brancura, aparecia como suprema esperança de redenção! E
nem faltavam, aformoseando o parque, tanques com repuxos artísticos a esguicharem água límpida
e cristalina, a qual tombava em silêncio, cascateando mimosas gotas como pérolas, enquanto aves
mansas, bando de pombos graciosos esvoaçavam ligeiros entre açucenas. Ao contrário das demais dependências hospitalares, como o Isolamento e o Manicômio, o 
Hospital Maria de Nazaré, ou  "Hospital Matriz", não se rodeava de qualquer barreira. Apenas
árvores frondosas, tabuleiros de açucenas e rosas teciam­lhe graciosas muralhas. Muitas vezes
pensei, quando dos meus dias de convalescença, como seria arrebatadora a paisagem se a
policromia natural rompesse o sudário níveo que tudo aquilo envolvia entristecendo o ambiente de
incorrigível monotonia! 
Fatigados, sonolentos e tristes, subimos a escadaria. Grupos de enfermeiros atenciosos, todos homens, chefiados por dois jovens trajados à
indiana, assistentes do  diretor do Departamento, os quais mais tarde soubemos chamarem­se –  Romeu e Alceste, receberam­nos das mãos dos funcionários da Vigilância incumbidos, até então, da nossa guarda, e, amparando­nos bondosamente, conduziram­nos ao interior.
Penetramos galerias magníficas, ao longo das quais portas largas e envidraçadas, com
caixilhos levemente azuis, deixavam ver o interior das enfermarias, o que vinha esclarecer que o 
enfermo jamais se reconheceria a sós. Nossos grupos separaram­se à indicação dos enfermeiros: –  dez à direita... dez à esquerda... Cada dormitório continha dez leitos alvíssimos e confortáveis, amplos salões com balcões para o parque. Forneceram­nos, caridosamente, banho, vestuário 
hospitalar, o que nos proporcionou lágrimas de reconhecimento e satisfação. A cada um de nós foi
servido delicioso caldo, tépido, reconfortante, em pratos tão alvos quanto os lençóis: e cada um
sentiu o sabor daquilo que lhe apetecia. Fato singular: – enquanto fazíamos a refeição frugal, era o 
lar paterno que acudia às nossas lembranças, as reuniões em família, a mesa da ceia, o doce vulto 
de nossas mães servindo­nos, a figura austera do pai à cabeceira... E lágrimas indefiníveis se
misturaram ao alimento reconfortador... Num ângulo favorável aos dez leitos uma lareira aquecia o recinto, proporcionando­nos
reconforto. E acima, suspensa ao alto da parede, que se diria estruturada em porcelana, fascinante
tela a cores, luminosa e como animada de vida e inteligência, despertou nossa atenção tão logo 
transpusemos os acolhedores umbrais. Era um quadro da Virgem de Nazaré, algo semelhante ao 
célebre painel de Murilo, que eu tão bem conhecia, mas sublimado por virtuosidades inexistentes
entre os gênios da pintura na Terra! 
Ao terminarmos a refeição, eis que dois varões hindus entraram em nosso compartimento, apresentando particularidades que os deixavam reconhecer como médicos. Faziam­se acompanhar de dois outros varões, os quais deveriam acompanhar­nos durante
toda a nossa hospitalização, pois eram responsáveis pela enfermaria que ocupávamos. Chamavam­ 
se estes: Carlos e Roberto de Canalejas, eram pai e filho, respectivamente, e, quando encarnados, haviam sido médicos espanhóis na Terra. Era no entanto imperfeitamente que a todos eles percebíamos, dado o estado de
debilidade em que nos encontrávamos. Dir­se­ia que sonhávamos, e o que vimos narrando ao leitor 
só podia ser por nós entrevisto como durante as oscilações do sonho... Não obstante, os hindus aproximaram­se de cada um dos leitos, falaram docemente a cada
um de nós, apuseram sobre nossas cabeças atormentadas as mãos delicadas e tão níveas que se
diriam translúcidas, acomodaram nossas almofadas, obrigando­nos ao repouso; cobriram­nos
paternalmente, aconchegando cobertores aos nossos corpos enregelados, enquanto murmuravam
em tonalidades tão carinhosas e sugestivas, que pesada sonolência nos venceu imediatamente: “— Necessitais de repouso... Repousai sem receio, meus amigos... Sois todos hóspedes de
Maria de Nazaré, a doce Mãe de Jesus... Esta casa é dela..." 
E se conosco assim procederam, outros assistentes, certamente, o mesmo  fizeram em
torno dos demais componentes da trágica falange recolhida pelo Amor de Deus! 
Ao despertar, depois de sono profundo e reparador, afigurou­se­me ter dormido longas
horas, e de algum modo senti que o raciocínio se me aclarava, oferecendo maior possibilidade de
entendimento e compreensão das circunstâncias. Reconhecia­me de posse de mim mesmo, como 
desoprimido daquele estado mórbido de pesadelo, que tantas exasperações acarretava. Mas, ai de
mim!  Semelhante reconforto mental antes aprofundava do que balsamizava angústias, pois me
compelia a examinar com maior dose de senso e serenidade a profundeza da falta que contra mim
mesmo cometera!  Ardente sentimento  de desgosto, remorso, temor, desapontamento, coibia­me
apreciar devidamente a melhoria da situação. E incômoda sensação de vergonha chicoteava­me o 
pudor, gritando ao meu  orgulho que ali me achava indevidamente, sem quaisquer direitos a me assistirem para tanto, unicamente tolerado pela magnanimidade de indivíduos altamente caridosos,
iluminados pelo vero amor de Deus! 
Dúvidas amaríssimas continuavam remoinhando­me na mente. Não era possível que eu 
tivesse morrido. O suicídio absolutamente não me matara! Eu continuava vivo e bem vivo!... Que se passara, pois?... Meus companheiros de enfermaria e, por certo, todos os demais
que integravam o extenso cortejo proveniente das escuridades do Vale, entregar­se­iam a idênticas
elucubrações! Estampavam­se o assombro, o temor e o  pesar inconsolável naqueles semblantes
desfigurados. E, acompanhando a nova série de amarguras que nos invadia apesar da hospitalização e
do sono reconfortador, as dores físicas oriundas do  ferimento que fizéramos continuavam
supliciando nossa sensibilidade, como a lembrarem nosso estado irremediável de réprobos. Eu e Jerônimo gemíamos de quando em quando, sob o imperativo do ferimento feito no 
ouvido pela arma de fogo que utilizáramos no momento trágico; Mário Sobral estorcia­se, o 
pescoço intumescido, a esbater­se em cacoetes periódicos contra a asfixia, pois enforcara­se; João 
d'Azevedo, retendo na mente torturada o envenenamento do corpo que lá se consumira, sob o 
segredo do túmulo, chorava de mansinho, exigindo a visita médica; e Belarmino a esvair­se em
sangue, o braço dolorido, entorpecido, já paralítico  –  oh!  Preludiando, desde aquele tempo, o 
drama físico que seria o seu, em encarnação posterior – pois fora ao suicídio golpeando os pulsos! 
Todavia o reconforto era sensível. Bastaria observássemos que já não víamos as cenas
mentais de cada um, reproduzindo em figurações assombrosas o momento supremo, tal como 
sucedia no Vale, onde não existia outra paisagem. A enfermaria, muito confortável, dizia de como 
nos haviam bem instalado. Existiam mesmo traços de arte e beleza naqueles portais de caixilhos
azuis, formados de substâncias polidas como a porcelana; naqueles reposteiros de rendilhados
também azuis, nas trepadeiras brancas que subiam pelos balcões, intrometendo­se a dentro do 
terraço, como espionando nossas carantonhas dramáticas de réprobos colhidos em flagrante. De chofre, a voz de um enfermo, nosso companheiro, quebrou o silêncio da meditação em
que mergulháramos o pensamento, externando as próprias impressões, como se apenas para si
falasse: “— Cheguei à conclusão  –  disse, pausada e amarguradamente –  de que o melhor que
todos temos a fazer é nos recomendarmos a Deus, resignando­nos de boamente às peripécias que
ainda sobrevenham... Para nada há valido o desespero, senão para nos tornar ainda mais
desgraçados! Tanta revolta e insensatez... e nada mais obtivemos a não ser o agravo das nossas já
tão atrozes desgraças!... Por aí se poderá ver que vimos escolhendo caminhos errados para nossos
destinos... inegável, porém, que somos todos subordinados a uma Direção Maior, que independe
de nossa vontade!... Isso é assaz significativo... Não sei bem se morri... Mas, sinceramente, creio 
que não!...” A senhora minha mãe era pessoa simples, humilde, de poucas letras, mas boa devota à
crença e ao respeito a Deus. Afirmava aos filhos, com estranha convicção, quando os reunia ao pé
da lareira a fim de ensinar­lhes as orações da noite, de mistura com os princípios da lei cristã, que
todas as criaturas trazem uma alma imortal, criada pelo Ser Supremo e destinada à gloriosa redenção pelo amor de Jesus Cristo, e que dessa alma daríamos contas, um dia, ao Criador e Pai! 
Nunca mais, desde então, obtive ciência de mais alto valor! Considero as aulas ministradas por 
minha mãe, durante o serão da família, superiores às que, mais tarde, aprendi na Universidade.
Infelizmente para mim, sorri à sabedoria materna, embrenhando­me pelos desvios das paixões
mundanas... Contudo, ó minha mãe!  eu  aceitava a possibilidade da crença formosa que tentaste
infundir em minha alma revel! Não fui propriamente ateu!.. Hoje, passados tantos anos, e depois de tantos sofrimentos, colocado em situações que
escapam à minha análise, eu me convenço de que a senhora minha mãe estava com a razão: – devo 
possuir uma alma, realmente imortal! Escapa­se de um tiro de revólver, e pode­se até restabelecer­ 
se! Curamo­nos da ingestão de um corrosivo, tais sejam as circunstâncias em que o  tenhamos
usado. Mas não se escapa de uma forca, como a que me destinei! E, se estou aqui e se sofri tudo 
quanto sofri sem conseguir aniquilar dentro de mim as potências da vida, é porque sou imortal! E
se sou imortal é que possuo uma alma, com efeito, porque, quanto ao corpo humano, esse não é
imortal, pois se consome no túmulo! E se possuo uma alma dotada da virtude da imortalidade é
que ela proveio de Deus, que é Sempiterno! Oh, minha mãe, tu dizias a verdade! Oh, meu Deus! 
Meu Deus! Tu existes! E eu a renegar­te sempre, com meus atos, minhas paixões, meu descaso ás
tuas normas, minha indiferença criminosa aos teus princípios!... Agora... eis que é soada a hora de
prestar­te contas da alma que tu criaste – da minha alma! Eis que nada tenho a dizer­te, Senhor,
senão que minhas paixões infelicitaram­na, quando o que determinaste ao criá­la era que eu  a
conduzisse obedientemente ao teu regaço de Luz! Perdoa­me! Perdoa­me, Senhor Deus...." 
Lágrimas abundantes misturaram­se a estertores de asfixia. Mas, apesar de saberem a
intensa amargura, já não traziam o macabro característico das convulsões que, no Vale, as lágrimas
provocam. Fora Mário Sobral que falara. Mário tinha grandes olhos negros, cabeleira revolta, olhar  alucinado. Cursara a
Universidade de Coimbra e reconhecia­se nele o tipo bem acabado do boêmio rico de Lisboa. Seu 
palavreado, de ordinário, era nervoso e fácil. Seria excelente orador, se da Universidade houvera
saído sábio e não boêmio. No cativeiro do Vale fora das entidades mais sofredoras que tive ocasião 
de conhecer, e assim mesmo se destacou durante todo o longo período de internação na Colônia. Com esse arrazoado iniciou­se uma série de confidências entre os dez. Não sei por que
desejáramos conversar. Talvez a necessidade de mútua consolação nos impelisse a abrir os
corações, recurso, aliás, ineficiente para lenificar  angústias, porque, se é difícil a um suicida o 
consolar­se, não será, certamente, recordando dores e desgraças passadas que logrará amenizar a
penúria que lhe oprime a alma. “— És forte em dialética, amigo, e felicito­te pela progressão do modo de raciocinar: –  não foi assim que tive a honra de te conhecer algures...” —  chasqueei eu, a quem incomodara
muito a quebra do silêncio. “— Também eu assim o creio e admiro a lógica das suas considerações, ó amigo Sobral!” —  interveio um português de bigodes fartos, meu  vizinho de leito, cujo  ferimento no ouvido 
direito, a sangrar sem intermitências me causava infinito mal­estar, pois que, quantas vezes lhe prestasse atenção, lembrava­me de que também eu  trazia ferimento idêntico e torturava­me em
reminiscências atrozes. Era, esse, Jerônimo de Araújo Silveira, o mais impaciente e pretensioso dentre os dez, mais incoerente e revoltado. Prosseguiu ele: “— Aliás, eu jamais descri da existência de Deus, Criador de Todas as Coisas. Fui... isto 
é, sou! Eu sou, pois que não morri! — católico militante, irmão remido da Venerável Irmandade da
Santíssima Trindade, de Lisboa, com direitos a bênçãos e indulgências especiais, quando 
necessário...”
“—  Creio, meu  vizinho, que chegou, ou  já vai passando, a ocasião de reclamares os
favores que são de direito obteres... Não podes estar mais necessitado deles...” — revidei, num
crescendo de mau­humor, fazendo­me de obsessor. Não respondeu, mas continuou: “—  Fui, porém, muito impaciente e nervoso  desde a juventude!  Impressionava­me
facilmente, era insofrido  e inconformado, às vezes melancólico e sentimental... e confesso que
nunca levei a sério os verdadeiros deveres do cristão, expresso nas santas advertências do nosso 
conselheiro e confessor, de Lisboa. Por isso mesmo, certamente, quando se me deparou a ruína dos
meus negócios comerciais, pois não sei se sabeis que fui importador  e exportador de vinhos;
crivado de dívidas insolúveis; surpreendido por estrondosa e irremediável falência; sem ascendente
para evitar a miséria que a mim e à minha família escancarava fauces irremediáveis; acusado por 
amigos e pessoas da família como responsável único do dramático insucesso; abatido pela
perspectiva do que sucederia à minha mulher e aos meus filhos, a quem eu, por muito estremecer, habituara a excessivo conforto, mesmo ao luxo, mas os quais, agora que me viam castigado e
sofredor, me responsabilizavam cruamente por tudo, em vez de pacientemente me ajudarem a
remover a cruz dos insucessos, que a todos nos abatia – fraquejei na coragem que até então tivera e
"tentei"  desertar da frente de todos e até de mim mesmo, a fim de poupar­me a censuras e
humilhações. Todavia, enganei­me: mudei apenas de habitação, sem conseguir encontrar a morte, e perdi de vista minha família, o que me tem acarretado insuportáveis contrariedades!”
“— Sim, é lastimável! – tornou Mário na mesma tonalidade acabrunhada, como se não 
tivesse ouvido  o  precedente –  Caí nas trevas da Desgraça!... quando  tão boas oportunidades
encontrei pela vida afora, facultando­me o domínio das paixões para o advento de aquisições
honestas!... Esqueci­me de que o respeito a Deus, à Família, ao Dever, seria o alvo sagrado a
atingir, pois recebi bons princípios de moral na casa paterna! . . . Jovem, sedutor, inteligente, culto, envaideci­me com os dotes que me assistiam e cultivei o egoísmo, dando asas aos instintos
inferiores, que reclamavam prazeres sempre mais febricitantes... A convivência afetada da
Universidade fez de mim um pedante, um tolo  cujas preocupações únicas eram as exibições
vistosas, senão escandalosas... Daí o perder­me no roldão das embocaduras das paixões
deprimentes,.. E, depois, quando não mais consegui encontrar­me a fim de reconduzir­me a mim
próprio, procurei a morte supondo poder  esconder­me dos remorsos atrás do olvido de um
túmulo!... Enganei­me! A morte não me aceitou! Encontrou­me decerto demasiadamente vil para me honrar  com sua proteção!  Por isso devolveu­me à vida quando  o coveiro teve a honra de
encobrir minha figura repulsiva da frente da luz do Sol!... Minha mãe, porém, essa sim, não se enganou: – eu sou imortal! Jamais, jamais morrerei! 
Hei de existir por toda a consumação dos evos, em presença d’Aquele que é o meu Criador! Sim! 
Porque, para sobreviver às desgraças que cruciaram o meu  sentir, desde a noite aziaga da
primavera daquele ano de 1889, só um ser que seja imortal!” Alongou  os olhos congestos, como chamando recordações passadas para o minuto 
presente e murmurou, arquejante, apavorado, frente à página mais negra que lhe desvirtuava a
consciência: “— Sim, meu Deus! Perdoa­me! Perdoa­me! Eu me arrependo e submeto­me, visto que
reconheço que errei! Perdi­me diante de ti, meu Deus, à frente da desesperadora paixão que nutri
por Eulina!... Mas, se mo permites, reabilitar­me­ei por amor de ti... Eulina!,.. Tu não valias sequer o pão que eu fornecia para saciares tua fome! Contudo, eu 
te amava, acima de todas as conveniências, a despeito até da própria honra!  Eras pérfida, malvada!... Eu, porém, inferior devia ser, ainda mais do que tu, porque casado, sendo minha
esposa nobre e digna senhora!  Era pai de três inocentes criancinhas, às quais devia amor e
proteção!  Abandonei­os por ti, Eulina, desinteressei­me de seus encantos porque me arrebatei
irremediavelmente pelos teus, estranha beleza dos torrões sul­americanos, que tu eras!... Oh, como 
eras linda!... Mas não me amavas... E depois de me arrastares de queda em queda, explorando­me
a bolsa e o coração, abandonaste­me ao desespero da miséria e da ingratidão, ao me preterires pelo 
capitalista brasileiro, teu compatriota, que te requestou! 
Fui a tua casa: vi­me desfeiteado... Supliquei­te, rastejei a teus pés como louco, desesperado por perder­te, como insensato que sempre fui! Implorei migalhas da tua compaixão, em vendo que já não seria possível teu amor! 
Provoquei­te à discussão, compreendendo que te fazias insensível às minhas desesperadas
tentativas de reconciliação... e, cego pelos insultos que repetias, eu te agredi, ferindo as faces que
eu  adorava; espanquei­te sem piedade, maltratei­te a pontapés, meu  Deus!  Ó meu  Deus! 
Estrangulei­te, Eulina! Matei­te!... Matei­te...” Parou sufocado, em convulsões odiosas de perfeito réprobo, para continuar após, como se
dirigindo aos companheiros: “— Quando, tomado de horror, contemplei a ação abominável que praticara, apenas um
recurso me acudiu, rápido qual impulso obsessor, a fim de escapar a conseqüências que, naquele
momento, se me afiguravam insuportáveis: o suicídio!  Então, ali mesmo, sem perder  tempo,
rasguei os lençóis da desgraçada... e pendurei­me a uma trave existente na cozinha...”
“— Forma, essa, pouco poética de um amante morrer... — zombei eu, enfadado com a
longa descrição que desde o Vale diariamente ouvia­o repetir. — Aposto em como V. Excia., Sr. Professor, que tão elegantemente desejou morrer, recordando Petrônio, fê­lo pelo amor platônico 
de alguma senhora inglesa, loira e apessoada?... Portugueses ilustres, como  V. Excia. Vem
demonstrando ser, gostam de amar damas inglesas...” Dirigia­me agora a Belarmino de Queiroz e Sousa, cujo nome tresandava a fidalguia.
Até essa data ainda me irritavam as atitudes do pobre comparsa do grande drama que eu 
também vivia; e, sempre que houvesse oportunidade, ridicularizava­o, defeito muito do meu feitio 
e que muitos vexames e dissabores custou­me até corrigi­lo, durante os serviços de reforma
interior que ao meu caráter impus na Pátria Espiritual. Belarmino era alto e seco, muito elegante e fino de maneiras. Dizia­se rico e viajado,
professor de Dialética, de Filosofia e Matemática, e poliglota —  cortejo respeitável para um só 
homem que se arraste na Terra, não havia dúvida, mas que o não impedira de demorar­se, e mais o 
monóculo, o fraque e a bengala, nas pocilgas do Vale Sinistro, durante o interessante estágio que
ali fizera, por se haver suicidado. Isso mesmo lançara­lhe eu em face muitas vezes, mal­humorado 
ante a vaidosa enumeração que fazia dos variados cabedais próprios. O doutor, porém — porque
era doutor, honorificado por mais de uma Universidade —, jamais revidou minhas impertinências. Polido, educado, sentimental, chegaria também á vera bondade de coração se a par de tão bonitos
dotes não carregasse os defeitos do orgulho, do egoísmo de a si mesmo endeusar por a todos se
julgar superior. Ouvindo­me, não respondeu com agastamento, como sempre. Antes, foi em tom macio, mesmo pesaroso, que se expandiu, dirigindo­se a todos: “—  Eu  julgava, sinceramente, que o túmulo absorveria minha personalidade,
transmudando­a na essência que se perderá nos abismos da Natureza: seria o Nada! 
Discípulo de Augusto Comte, a filosofia levou­me ao Materialismo, ao  mecanismo 
acidental das coisas, única explicação satisfatória que ao raciocínio pude oferecer diante das
anomalias com que deparava a cada passo pela vida em fora, para me alarmar o coração e
decepcionar a mente! 
Nutri sempre grande ternura e compaixão pelos homens, aos quais considerava irmãos de
desgraça, pois para mim, a vida era a expressão máxima da Desgraça, embora deles procurasse
afastar­me quanto possível, temendo amá­los demasiadamente, e, portanto, sofrer. Nem outra coisa
compreenderia eu o que seria senão desgraça um homem nascer, viver, trabalhar, sofrer, lutar por 
todos os pretextos... para depois desfazer­se irremissivelmente, no pó do túmulo! 
Não fui, jamais, dado a namoramentos, de baixa ou  elevada classe. Para que amar,
constituir família, contribuindo para lançar à vida outros desgraçados a mais se a Filosofia
convencera­me, além do mais, de que o Amor era apenas uma secreção do cérebro?... Fui um
estudioso, isso sim, e estudava a fim de me aturdir, evitando o acúmulo de elucubrações sobre a
miserável situação da Humanidade. Assim sendo, não sobravam a mim horas para cultivar amor 
junto a damas inglesa; ou  portuguesas,.. Estudava para esquecer de que um dia também me
perderia no vácuo! Fui um infeliz, como toda a Humanidade o é! Somente no ambiente sereno do 
lar desfrutava alguma satisfação... Agarrei­me ao lar  quanto possível, pesaroso  de, um dia, ser 
forçado a abandoná­lo para me aniquilar entre os vermes que destruiriam minha individualidade! 
Minha mãe, que partilhava de minhas convicções, porque também as recebera de meu  genitor,
bastava­me para companhia nas horas de lazer. O móvel da minha "tentativa" de suicídio, como 
vê, não foi desgosto amoroso. Foi a perca da saúde! Fui sempre fisicamente débil, franzino, um
triste, sonhador infeliz e insatisfeito, apavorado do Existir! Incorrigível desconsolo entenebreceu os dias de minha vida! Encerrado neste círculo deprimente, vi a tuberculose apossar­se de meu 
organismo, mal hereditário que me não foi possível combater! Desenganado pela Ciência, preferi, então, acabar de vez, sem maiores sofrimentos, com a matéria miserável que começava a
apodrecer sob a desintegração fornecida por uma moléstia incurável, matéria que, por sua própria
natureza, destinada era à podridão da morte, ao eterno tombo nas voragens do Nada! 
Para que, pois, esperaria eu  a marcha dolorosa da tuberculose extinguir minha
individualidade em lentos suplícios, sem consolo, sem esperança compensadora no porvir de além­  morte, onde não encontraria senão o aniquilamento absoluto, a desintegração perfeita, espantalho 
humano atirado ao desalento, do qual fugiriam todos, a própria mãe inclusive, quem o adivinharia?
Temendo os perigos do contágio?!... Morrer era solução boa, muito lógica, para quem, como eu, só  via à frente um corpo 
aniquilado pela doença e a destruição absoluta do ser como desanimadoras expectativas...”
“—  Não possuo a competência de V. Excia., Senhor  Professor, nem me será dado 
raciocinar com tanta finura. Todavia, com o devido respeito à pessoa de V. Excelência, considero 
execrável pecado o não aceitar o homem a existência de Deus, Sua Paternidade para com as
criaturas e a eternidade da alma, por mais criminoso e abjeto que seja. Felizmente para mim, foram
coisas em que sempre acreditei com veemência...” — intrometeu­se Jerônimo com simplicidade,
sem perceber a tese profunda que apresentava a um ex­professor de Dialética. “—  Como e por que, então, vos revoltastes contra as circunstâncias naturais da vida
humana, isto é, aos sofrimentos que vos couberam na desoladora partilha, a ponto de confessardes
que desejastes morrer, Sr. De Araújo Silveira?!... Se eu, desfavorecido pela Fé, carente de
Esperança, desamparado pela descrença em um Ser Supremo, à mercê do pessimismo a que
minhas convicções conduziam, para quem o túmulo apenas traduzia olvido, aniquilamento, absorção no vácuo, me desorientasse ao embater da desventura e "tentasse" matar­me a fim de
poupar­me luta desigual e inútil, concebe­se!  Mas, vós outros?!... Vós outros, crentes na
Paternidade de um Deus Criador, sede de perfeições infinitas, como dizeis, sob cuja direção sábia
caminhais; vós, certos da personalidade eterna, fadada à mesma finalidade gloriosa do seu Criador,
herdeira da própria eternidade existente naquele Ser  Supremo, para a qual marcha pela ordem
natural da lei de atração e afinidade, cair em desesperações e revoltar­se contra a mesma lei, pois
sei que a crença num Poder Absoluto proíbe a infração do suicídio, é paradoxo que não se chega a
admitir. Portadores de tal ciência, corações alumiados pelos ardores de tão radiosa convicção, energias revigoradas pela fortaleza de tão sublime esperança, deveríeis considerar­vos deuses
também, homens sublimizados para quem os infortúnios seriam meros contratempos de momento! 
Oh!  Pudesse eu  convencer­me dessa verdade e não temeria enfrentar, novamente, nem os
desgostos que arruinaram meus dias, nem a tuberculose que me reduziu ao que vedes!” — revidou 
com lógica férrea o discípulo de Conte, cuja sinceridade me despertou simpatia. “—  E agora, qual a opinião de V. Excia. sobre o momento presente? Que explicação 
sugere a filosofia contista para o que se passa?!..” —  interroguei, cheio  de curiosidade,
interessando­me pelo debate.
“—  Nada!  —  respondeu  simplesmente —  Não sugere coisa alguma... Continuo na
mesma... Não consegui morrer!...” Evidente era que dúvidas desconcertantes nos atacavam a todos, a ele também. O que não 
queríamos era curvar­nos à evidência. Tínhamos medo de encarar de frente a realidade. “— Dizei algo de vós, Sr. Botelho — atreveu­se João castigar­me — Há muito estimais
observar­nos, mas tendes silenciado sobre vossa pessoa, que tão interessante nos parece... Quanto 
a mim, não desejo  permanecer  incógnito! Bem sabeis os motivos que me arrojaram ao pélago 
ignóbil do suicídio: a paixão pelo jogo. Joguei tudo! A honra inclusive, e a própria vida!...”
“— Perdão, amigo d'Azevedo, como jogaste a vida... se aí estás a falar­nos de ti?!” — 
interveio Jerônimo desconcertantemente. O interlocutor sobressaltou­se e, sem responder, insistiu no propósito de excitar­me: “—  Vamos, ilustre romancista, velho boêmio do Porto, desce do teu  feio pedestal de
orgulho... Vem dizer algo de tua "majestosa" superioridade...” Senti a mordacidade nas descorteses expressões de João, que se antipatizara comigo na
mesma proporção que eu a Belarmino, do qual era muito amigo, e que deixara, um momento, de
choramingar para me provocar o mau­humor. Aborreci­me. Fui indivíduo sempre melindroso e suscetível, e a morte não corrigira ainda
a grave anormalidade. “—  Pois quê?!... Seria eu, acaso, forçado a confessar particularidades a tal corja, só 
porque ela havia confessado as suas?!... Porventura devia eu qualquer consideração a essa ralé, que
fui encontrar no Vale imundo?!” —  pensei, sufocado pelo orgulho, com efeito, de me julgar 
superior.
A consideração que aos companheiros de infortúnio  o meu mau­senso negava, a mim
mesmo continuava dispensando gratamente, entendendo que, se para lá eu  também me vira
arremessado, era que no meu caso existira injustiça calamitosa; que eu não merecera a repressão 
por ser melhor, mais digno, mais credor de favores do  que os outros que comigo lá se haviam
homiziado. Fosse como fosse, preferiria não me expandir porque o meu orgulho a tanto não me
animava. Mas, personagens de nossa infeliz categoria não se acham à altura de sopitar impulsos do 
pensamento calando expansões diante de afins; tampouco sabem dominar emoções, furtando­se à
vergonha das devassas no campo íntimo, em presença de estranhos. Assim sendo, as torrentes de
vibrações deseducadas derramam­se do seu  interior configuradas em palavreado ardente e
emotivo, ainda que elas próprias não o desejem, tal se as comportas magnéticas, que as retivessem
nos pegos mentais, se houvessem rompido graças às agitações de que se fizeram presas. Aliás, o 
tom sincero, a formosa lhaneza do professor de Filosofia e Dialética, convidando­me a atitude
menos descortês do  que a que me habituara até então, fez­me aquiescer ao  alvitre de João 
d'Azevedo. Mas foi, antes, dirigindo­me de preferência àquele, por entender que só a sua elevada
cultura estaria a plano de me compreender, que fui dizendo, grave, compenetrado, concedendo­me
importância ridícula na humílima situação em que me achava: “— Eu, Sr. Professor, sou um indivíduo que se imaginava iluminado por um saber sem
jaças, mas que, em verdade, hoje começa a compreender que ignorava, e continua ignorando, o que a dois palmos do próprio nariz existe. Fui paupérrimo (digo "fui" porque algo segreda em meu 
ser que tudo isso pertenceu ao pretérito), com o insuportável defeito de ser orgulhoso. Um homem,
finalmente, que não descria da existência de um Ser Superior presidindo à Sua Criação, é certo, mas que, considerando­o uma Incógnita a desafiar possibilidades humanas de lhe decifrar os
enigmas, não somente deixava de associar o respeito a esse Ser à sua vida, como, principalmente, não lhe dava quaisquer satisfações do que fazia ou pretendia para regalo dos próprios caprichos e
paixões. Será, pois, redundância afirmar que, muito  sábio, tal como me julgava, arrastava a
diasonante ignorância da descrença na possibilidade de existirem leis onipotentes, irremissíveis, partindo da Divindade Criadora e Orientadora para dirigir a Criação, o que me fez cometer erros
gravíssimos! 
Sofri, e minha existência foi fértil em situações desanimadoras! A resignação nunca foi
virtude a que se amoldasse o meu  caráter violento e agitado por índole. A fundeza dos meus
sofrimentos tornou­me irritadiço, genioso. O orgulho insulou­me na convicção de que para além
de mim só existiriam valores sofríveis. Após décadas de prélios malogrados, de aspirações banidas da imaginação por 
irrealizáveis no campo da objetividade, de ideais decepcionados, de desejos tão  justos quanto 
insatisfeitos, de esforços rechaçados, de energias varridas por sucessivos desapontamentos e
vontades conjugadas para o bem tornarem ao ponto de origem enfraquecidas e rotas por 
impiedosos insucessos: a cegueira, amigo! que atingiu meus olhos cansados, como desconcertante
prêmio às lutas que de minhas forças exigiram impulsos supremos! 
Fiquei cego! 
O espectro negro da eterna escuridão estendia sobre meus olhos apavorados o seu manto 
de trevas, que nem a ciência dos homens, nem a fé alcandorada e ingênua dos amigos que me
tentavam levar à conformidade, nem os votos místicos dos corações que me amavam as Potestades
Celestes seriam capazes de arredar! 
Descri mais das mesmas Potestades: — Cego! Cego, eu?!... — Como viveria eu, cego?... Entendi que, se o Ente Supremo, de quem eu não descria até então, existisse realmente, tal
não se daria, porque não quereria certamente desgraçar­me. Esquecia­me de que existiam esparsos
pelo mundo milhões de homens cegos, muitos em condições ainda mais prementes que a minha, e
que eram todos, como eu, criaturas advindas do mesmo Deus! Descri porque entendi que, se havia
outros cegos, que houvesse: mas que eu não o deveria ser! Era, sim, injustiça, uma finalidade dessa
para mim! Cego!!... Era o máximo! 
Tão profundo quão surpreendente desespero devorava minhas vontades, minhas energias
mentais, minha coragem moral, reduzindo­me à inferioridade do covarde!  Eu, que tão 
heroicamente soubera levar de vencida os abrolhos que dificultaram minha marcha para a
conquista da existência, sobrepondo­me a eles, daí para diante encontrar­me­ia impossibilitado de
continuar lutando! Dei­me por vencido. Cego, eu compreendia ser a minha vida como coisa que
pertencesse ao pretérito, realidade que "fora", mas que já não "era"...
A obsessão fatal do suicídio entrou  a fazer ronda em torno de minhas faculdades. Enamorei­me dela e lhe dei guarida com todo o abandono do meu ser desanimado e vencido. A
morte atraía­me como remate honroso de uma existência que jamais curvara a cerviz à frente fosse
do que fosse!  A morte estendia­me os braços sedutores, falsamente mostrando, às minhas
concepções viciadas pela descrença em Deus, a paz do túmulo em consoladoras visões! 
Firmada a resolução sobre sugestões doentias; acabrunhado e a sós com a minha
superlativa desgraça; insocorrido pelo sereno consolador da Fé, que teria suavizado a ardência do 
meu intimo desespero; excitada a imaginação já de si mesma audaz e ardente, criei um romance
dolorido em torno de mim mesmo e, considerando­me mártir, condenei­me sem apelação! 
É que tive medo e vergonha de ser cego! 
Matei­me no intuito de encobrir  da sociedade, dos homens, dos meus inimigos a
incapacidade a que ficara reduzido! 
Não!  Ninguém se gloriaria vendo­me receber o amargo pão da compaixão alheia! 
Ninguém contemplaria o espetáculo, humilhante para mim, de minha figura vacilante, tateando nas
trevas dos meus olhos incapacitados para a visão! Meus inimigos não se rejubilariam, refocilando 
na vingança de assistirem à minha irremediável derrota! Mil vezes não! Eu não me brutalizaria na
inércia de olhar só para dentro de mim mesmo, quando o Universo continuaria irradiando vida
fecunda e progressiva ao redor de minha sombra empobrecida pela cegueira! 
Matei­me porque me reconheci demasiadamente fraco para continuar, dentro da noite
pávida da cegueira, a jornada que, já enfrentada à boa luz dos olhos, fora farta de empeços e
percalços! 
Era demais!  Revoltei­me até ao âmago contra o  Destino que me reservara tão 
desconcertante surpresa e inconsolável permaneci sob o esmagamento da dramática ingratidão que
supunha provir de Deus!  Para mim, a Providência, o Destino, o mundo, a sociedade, estavam
errados todos: só eu estava certo, exagerando a tragédia das minhas desesperanças! 
Pois quê?!... Eu, que possuía capacidade intelectual avantajada, era paupérrimo, quase
faminto, ao passo que circulavam em torno a mim ignorantes e beócios de cofres recheados! Eu,
que me sentia idealista e bom, vivia molestado por adversidades que me teciam continuado cerco,
sitiando­me em campos que desafiavam possibilidades de vitória! Eu, cujo coração sentimental
abrasava­se em ânsias generosas e ternas, de excelência quiçá sublime, a conhecer­me
ininterruptamente incompreendido, incorrespondido, ferido por descasos tanto mais amaros quanto 
mais extensas fossem as radiações do meu  sentir!  Eu, honesto, probo, reto, a pautar­me por 
diretrizes sadias por entendê­las, mais belas ajustadas ao  idealismo que acompanhava o meu 
caráter, a tratar com patifes, a comerciar com roubadores, a disputar com hipócritas, a confiar em
velhacos, a considerar tratantes!... Sim, era demais!... E depois de tão extenso panorama de desventuras, porque, para mim, indivíduo 
impaciente e nada conformado, esses fatos, tão vulgares na vida cotidiana, avultavam como veras
calamidades morais, o doloroso arremate da cegueira reduzindo­me à insignificância do verme, à
angústia do desamparo, à inércia do idiota, à solidão do emamorrado!
Não pude mais! 
Faltou­me compreensão para tão grande anomalia! Não compreendi Deus! Não entendi
sua Lei!  Não entendi a Vida!  Uma torrente de confusão  insolúvel alagou­me o pensamento 
aterrado em face da realidade! Só compreendi uma coisa: era que precisava morrer, devia morrer! 
E quando uma criatura deixa de confiar  no seu  Deus e Criador, torna­se desgraçada! É um
miserável, é um demônio, é um réprobo!  Quer o abismo, procura o abismo, precipita­se no 
abismo! Precipitei­me!” Não sei que malvadas sugestões a minha facúndia blasfema espalhou  pelo ambiente
mórbido de nossa enfermaria. O que sei é que a triste assembléia deixou­se resvalar para as
vibrações desarmoniosas, entregando­se a pranto dolorido e crises impressionantes, notadamente o 
antigo exportador de vinhos — Jerônimo — e o universitário Sobral, que eram os mais sofredores. Eu  mesmo, à proporção que prosseguia na minha angustiante exposição, eivada de conceitos
doentios, tanto retroagia mentalmente às situações precipitosas de minha passada vida carnal, às
fases doloridas e inelutáveis que me deprimiram cruamente — que lágrimas rescaldantes voltaram
a correr por minhas faces maceradas, enquanto  novamente se me obscurecia a visão e trevas
substituíam os doces pormenores dos cortinados azuis, esvoaçantes, e das róseas trepadeiras
galgando as colunatas dos balcões. Acudiram enfermeiros solícitos a verem o que se passava, uma vez que não era previsto o 
incidente.No Hospital Maria de Nazaré o enfermo, rodeado das emanações mentais revivificantes
de seus tutelares e dirigentes, visitados por ondas magnéticas salutares e generosas, que visavam a
beneficiá­lo, deveria auxiliar o tratamento conservando­se silencioso, sem jamais se entreter  em
conversações de assuntos pessoais. Conviria repousar, procurar esquecer  o passado tormentoso, varrer recordações chocantes, refazendo­se quanto possível das longas dilacerações que desde
muito o acutilavam. Fomos advertidos, portanto, como infratores de um dos mais importantes
regulamentos internos. E nem poderíamos exculpar­nos alegando ignorância, porque, ao longo das
paredes, letreiros fosforescentes a cada momento despertavam nossas atenções com permanentes
pedidos de silêncio, enquanto a própria instituição oferecia o exemplo  movimentando suas
constantes azas sob o controle de criteriosa discrição. E, embora bondosamente, declararam que
uma reincidência implicaria em atitude punitiva por parte da direção, qual a transferência para o 
Isolamento, pois, o fato, a repetir­se, produziria distúrbios de conseqüências imprevisíveis, não 
somente para o nosso estado geral, mas também para a disciplina hospitalar, que deveria ser 
rigorosamente observada —  o que nos levou  a perceber serem mais austeras as regras no 
Isolamento, mais temíveis as suas disciplinas. E para que medida tão ríspida fosse evitada, estabelecida foi severa vigilância em nossa
dependência. Desde aquele momento, um guarda do regimento de lanceiros hindus, aquartelados
no Departamento de Vigilância, foi designado para o plantão em nossos apartamentos. Cerca de um quarto de hora depois, enfermeiro loiro e risonho, jovem que andaria pelos
vinte e três anos de idade, o qual entrevíramos ao darmos entrada no importante estabelecimento 
do astral, por ser um daqueles que nos receberam a par de Romeu  e de Alceste, visitou­nos fazendo­se acompanhar  de mais dois obreiros da casa; e, irradiando simpatia, foi dizendo mui
afetuosamente, pondo­nos à vontade: “— Meus amigos, chamo­me Joel Steel, sou, ou fui, como queiram, português nato, mas
de origem inglesa. Em verdade o velho Portugal foi sempre muito  querido ao meu  coração...
Jamais pude esquecer os dias venturosos que em seu seio generoso passei... Fui feliz em Portugal... Mas depois... os fados me arrastaram para o País de Gales, berço  natal de minha querida mãe, Doris Mary Steel da Costa, e então... Bem, é como  compatriota e amigo que vos convido ao 
gabinete cirúrgico a fim de serdes submetidos aos necessários exames, pois que se iniciaram neste
momento os trabalhos de cirurgia...” Prontificamo­nos, esperançados. Não desejávamos outra coisa desde muito tempo!  As
dores que sentíamos, nossa indisposição geral, refletindo penosamente o que ocorrera com o corpo 
físico­material, havia muito que nos fazia ansiar pela presença de um facultativo. Mário e João, cujo estado era melindroso, foram transportados em macas, enquanto os
demais seguiam amparados pelos braços fraternos dos enfermeiros bondosos. Pude então distinguir algo dessa casa magnânima assistida pela carinhosa proteção  da
excelsa Mãe do  Nazareno. Não somente o  excelente conjunto arquitetônico seria digno de
admiração. Também a montagem, o grandioso aparelhamento, conjunto de peças extraordinárias, apropriadas às necessidades da clínica no astral, demonstrando o elevado grau  que atingira a
Medicina entre nossos tutelares, muito embora se não tratasse, o local onde nos encontrávamos, de
zona adiantada da Espiritualidade. Médicos dedicados e diligentes atendiam com fraternas solicitudes aos míseros
necessitados dos seus serviços e proteção. Estampavam­se em suas fisionomias bondosas o 
compassivo interesse do ser superior pelo mais frágil, da inteligência esclarecida pelo irmão infeliz
ainda mergulhado nas trevas da ignorância. Entretanto, nem todos trajavam uniformes à indiana. Muitos envergavam longos aventais vaporosos e alvíssimos, quais túnicas singulares, de tecido 
fosforescente... Não assisti ao que foi passado com meus companheiros de desdita. Mas, quanto a mim, em chegando ao pavilhão reservado aos labores assistenciais, fui transferido dos cuidados de Joel
Steel para os do jovem doutor Roberto de Canalejas, o qual me encaminhou  para determinada
dependência, onde minha organização  físico­espiritual —  o perispírito  —  foi submetida a
minuciosos e importantes exames. Carlos de Canalejas, pai do precedente, ancião venerável, antigo facultativo espanhol que fizera da Medicina um sacerdócio, página heróica de abnegação e
caridade digna do beneplácito do Médico  Celeste, e mais um dos psiquistas hindus que nos
socorreram à chegada — Roaendo —, foram os meus assistentes. Roberto passou então a assistir 
ao importante labor qual doutorando às lições dos mestres nos santuários da Ciência, o que vinha
esclarecer encontrar­se ele ainda em aprendizado na Medicina local. A minha organização astral prestaram socorros físico­astrais justamente nas regiões
correspondentes às que, no envoltório físico­terreno, foram dilaceradas pelo projétil de arma de
fogo de que utilizara para o suicídio, ou seja, os aparelhos faríngico, auditivo, visual e cerebral, pois o ferimento atingira toda essa melindrosa região do meu infeliz envoltório carnal.
Era como se eu, quando homem encarnado (e realmente assim fora, assim é com todas as
criaturas) possuísse um segundo corpo, molde, modelo do  que fora destruído pelo ato brutal do 
suicídio; como se eu fora "duplo" e o segundo corpo, possuindo a faculdade de ser indestrutível, se
ressentisse, no entanto, do quanto sucedesse ao primitivo, qual se estranhas propriedades acústicas
sustentassem repercussões vibratórias capazes de se prolongarem por indeterminado prazo,
fazendo enfermar aquele. Sei que os tecidos semimateriais das regiões já citadas do meu perispírito, profundamente
afetadas, receberam sondagens de luz, banhos de propriedades magnéticas, bálsamos
quintessenciados, intervenções de substâncias luminosas extraídas dos raios solares; que deles
extraíram fotografias e mapas movediços, sonoros, para análises especiais; que tais fotografias e
mapas mais tarde seriam encaminhados à "Seção de Planejamento de Corpos Físicos", do 
Departamento de Reencarnação, para estudos concernentes à preparação da nova vestidura carnal
que me caberia para o retorno aos testemunhos e expiações na Terra, aos quais julgara poder 
furtar­me com o  tresloucado gesto que tivera. Sei que, submetido  ao estranho tratamento, envolvido em aparelhos sutis, luminosos, transcendentes, permaneci uma hora, durante a qual o 
velho doutor de Canalejas e o cirurgião hindu desvelaram­se carinhosamente, reanimando­me com
palavras encorajadoras, exortando­me á confiança no futuro, á esperança no Supremo Amor de
Deus!  E sei também que causei trabalhos árduos, mesmo fadigas àqueles abnegados servos do 
Bem; que exigi preocupações, obrigando­os a devotamentos profundos até que em meu físico­  astral se extinguissem as correntes magnéticas afins com o físico­terreno, as quais mantinham o 
clamoroso desequilíbrio que nenhuma expressão humana será bastante veraz para descrever! 
É que o "corpo astral", isto é, o perispírito — ou ainda o "físico­espiritual" — não é uma
abstração, figura incorpórea, etérea, como supuseram. Ele é, ao contrário disso, organização viva,
real, sede das sensações, na qual se imprimem e repercutem todos os acontecimentos que
impressionem a mente e afetem o sistema nervoso, do qual é o dirigente.
Já que, nesse envoltório admirável da Alma — da Essência Divina que em cada um de
nós existe, assinalando a origem de que provimos —  persiste também uma substância material, conquanto quintessenciada, o que a ele faculta a possibilidade de adoecer, ressentir­se, pois que
semelhante estado de matéria é assaz impressionável e sensível, de natureza delicada, indestrutível, progressível, sublime, não podendo, por isso mesmo, padecer, sem grandes distúrbios, a violência
de um ato brutal como o suicídio, para o seu invólucro terreno. Entretanto, sob tantos cuidados médicos mais se avantajavam minhas dúvidas quanto á
situação própria. Muitas vezes, durante a desesperadora permanência no  Vale Sinistro, eu  chegara a
acreditar que morrera, oh, sim! E que minhalma condenada expiava nos infernos os tremendos
desatinos praticados em vida. Agora, porém, mais sereno, vendo­me internado em bom hospital,
submetido a intervenções cirúrgicas, conquanto muito diversos fossem os métodos locais doa que
me eram habituais, novas camadas de incertezas inquietavam­me o espírito: “Não! Não era possível que eu tivesse morrido! Isto seria morte?... Seria vida?...”
Foi, portanto, derramando aflitivo pranto que, em dado momento, naquele primeiro dia,
sob as desveladas atenções de Carlos e Rosendo, bradei excitado, febril, incapaz de por mais
tempo me conter:
"— Mas, afinal, onde me encontro eu?... Que aconteceu?... Estarei sonhando?... Eu morri
ou não morri?... Estarei vivo?... Estarei morto?...” Atendeu­me o cirurgião hindu, sem se deter na melindrosa atuação. Fitando­me com
brandura, talvez para demonstrar que minha situação lhe causava lástima ou compaixão, escolheu 
o tono mais persuasivo de expressão, e respondeu, sem deixar margem à segunda interpretação: “— Não, meu amigo! Não morreste! Não morrerás jamais!... porque a morte não existe na
Lei que rege o Universo!  Que se passou foi, simplesmente, um lamentável desastre com o teu 
corpo físico­terreno, aniquilado antes da ocasião oportuna por um ato mal orientado do teu 
raciocínio... A Vida, porém, não residia naquele teu  corpo físico­terreno e sim neste que vês e
contigo sentes no momento, o qual é o que realmente sofre, o que realmente vive e pensa e que
traz a qualidade sublime de ser imortal, enquanto o outro, o de carne, que rejeitaste, aquele, apropriado somente para o uso durante a permanência nos proscênios da Terra, já desapareceu sob 
a sombria pedra de um túmulo, como  vestimenta passageira que é este outro que aqui está... Acalma­te, porém... Melhor compreenderás à proporção que te fores restabelecendo...” Trouxeram­me em maca rumo da enfermaria. Meu estado requeria repouso. Serviram­me
reconfortante caldo, pois eu tinha fome. Deram­me a beber água cristalina e balsamizante, pois eu 
tinha sede. Em redor, o silêncio e a quietação, envolvidos em ondas de reconforto e beneficência, convidavam ao recolhimento. Obedecendo à caridosa sugestão de Rosendo, procurei adormecer, enquanto o desapontamento, trazido pela inapelável realidade, fazia ecoar suas decisivas
expressões em minha mente atormentada: “— A Vida não residia no corpo físico­terreno, que destruíste, mas sim neste que vês e
sentes no momento, o qual traz a qualidade sublime de ser imortal!”

Memórias de um SuicidaOnde histórias criam vida. Descubra agora