V A causa de minha cegueira no século XIX

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Transcorriam os primeiros decênios do século  XVII  quando renasci nos arredores de
Toledo, a antiga e nobre capital dos Visigodos, que as águas amigas e marulhentas do velho Tejo 
margeiam qual incansável sentinela... Arrojava­me a outro renascimento nos alcantilados proscênios terrestres em busca de
possibilidades para urgente aprendizado que me libertasse o Espírito imerso em confusões, o qual
deveria aliviar os débitos da consciência perante a Incorruptível Lei, pois impunha­se a
necessidade dos testemunhos de resignação na pobreza, de humildade passiva e regeneradora, de
conformidade ante um perjúrio de amor até então em débito nos assentamentos do Passado, de
devotamento ao instituto da Família. Pertencia então a uma antiga família de nobres arruinados e, na ocasião, perseguidos por 
adversidades insuperáveis, tais como rivalidades políticas e religiosas e desavenças com a Coroa. A primeira juventude deixou­me ainda analfabeto, bracejando nas árduas tarefas do 
campo. Apascentava ovelhas, arava a terra qual miserável tributário, repartindo­me em múltiplos
afazeres sob o olhar severo de meu  pai, rude fidalgo provinciano a quem desmedido  orgulho 
religioso, inspirado nas idéias da Reforma, fizera cair em desgraça, no conceito do soberano,
suspeitado que fora de infidelidade à fé católica e mantido em vigilância; rigoroso no trato da
família como dos servos, qual condestável para os feudos. Os rígidos deveres que me atinham à
frente das responsabilidades agrárias, porém, mais ainda atiçavam em meu imo a nostalgia singular 
que desalentava meu  caráter, pois no recesso de minhalma tumultuavam ambições vertiginosas, descabidas em um jovem nas minhas penosas condições. Sonhava, nada menos, do que abandonar 
o campo, insurgir­me contra o despotismo paterno, tornar­me homem culto e útil como os primos
residentes em Madrid, alguns deles militares, cobertos de glórias e condecorações; outros
formando na poderosa Companhia de Jesus, eruditos representantes da Igreja por mim considerada
única justa e verdadeira, em desajuste com as opiniões paternas, que a repudiavam. Invejava essa parentela rica e poderosa, sentindo­me capaz dos mais pesados sacrifícios a fim de atingir posição 
social idêntica. Certo dia revelei à minha mãe o desejo que, com a idade, avultava, tornando­me
insatisfeito e infeliz. A pobre senhora que, como os filhos e os servos, também sofria a opressão do 
tirano doméstico, aconselhou­me prudentemente, como inspirada pelo Céu, a moderação  dos
anelos pela obediência aos princípios da Família por mim encontrados ao nascer, objetando ainda
ser minha presença indispensável na casa paterna, visto não poder prescindir o bom andamento da
lavoura do experiente concurso do primogênito, e seu futuro chefe. Não obstante, dadas as minhas
instâncias, intercedeu junto ao senhor e pai no sentido de permitir­me instrução, o que me valeu 
maus tratos e castigos inconcebíveis num coração paterno!  Com a revolta daí conseqüente
fortaleceu­se o desejo tornado obsessão irresistível, a qual só com imenso sacrifício era contida por 
meu gênio impetuoso e rebelde. Recorri ao pároco da circunscrição, a quem sabia prestativo e amigo das letras. Narrei­lhe
as desventuras que me apoucavam, pondo­o a par do desejo de alfabetizar­me, instruir­me quanto 
possível. Aquiesceu  com bondade e desprendimento, passando a ensinar­me quanto sabia. E
porque se tratasse de homem culto, intelectualmente avantajado, sorvi a longos haustos as lições
que caritativamente a mim concedia, demonstrando sempre tanta lucidez e boa­vontade que o 
digno professor mais ainda se esmerava, encantado com as possibilidades intelectuais deparadas
no aluno. A meu pedido, porém, e compreendendo, com alto espírito de colaboração, as razões por 
mim apresentadas, minha família não foi posta ao corrente de tal acontecimento. Minha freqüência
à casa paroquial passou a ser interpretada como auxílio à paróquia para o amanho da terra, favor 
que meu pai não ousava negar, temeroso de represálias e delações. Um dia, depois de muito tempo passado em martirizar a mente à procura de solução para
o que considerava eu  a minha desventura, surgiu  nas cogitações desesperadas das minhas
ambições a infeliz idéia de fazer­me sacerdote. Seria, pensei, meio seguro e fácil de chegar aos fins
de que me enamorava... Não se tratava, certamente, de honrosa vocação para os ideais divinos, como não se cogitava de servir às causas do Bem e da Justiça através de um apostolado eficiente, pois que, nas manifestações de religiosidade que a mim e a minha mãe impeliam, não entravam a
vera crença em Deus nem o respeito devido às suas Leis! Expus ao pároco, meu antigo mestre, o 
intento considerado louvável por minhas pretensiosas ambições. Para surpresa minha, no entanto, aconselhou­me, bondosa e dignamente, a evitar cometer o sacrilégio de me prevalecer da sombra
santificadora do Divino Cordeiro para servir às paixões pessoais que me inquietavam o coração, entenebrecendo­me o senso... pois percebia muito bem, por ver a descoberto o meu caráter, que
nenhuma verdadeira inclinação me induzia ao delicado ministério.
"—  O Evangelho do Senhor, meu filho — rematou  certa vez, após um dos prudentes
discursos em que costumava expor as graves responsabilidades que pesam sobre a consciência de
um sacerdote —, deverá ser servido com inflamado amor ao bem, renúncias continuadas, durante
as quais havemos de muitas vezes morrer para nós mesmos, como para o mundo e suas paixões;
com trabalho sempre ativo, incansável, renovador, a benefício alheio e para glória da Verdade, e
que se destaque por legítima honestidade, espírito de independência e cooperação, sem nenhum personalismo, porquanto o servidor de Jesus deve dar­se incondicionalmente à Causa, abstraindo­ 
se das opiniões e vontades próprias, que nenhum valor poderão ter diante dos estatutos e das
normas da sua doutrina! É caminho áspero, semeado de urzes e percalços, de ininterruptos
testemunhos, sobre o qual o peregrino derramará lágrimas e se ferirá continuadamente, ao contacto 
de desgostos cruciantes!  As flores, só mais tarde ele as colherá, quando puder  apresentar  ao 
Excelso Senhor da Vinha os preciosos talentos confiados ao seu  zelo de servo obediente e
prestimoso... "Quem quiser vir após mim —  foi Ele próprio  que sentenciou  —, renuncie a si
mesmo, tome a sua cruz e siga­me!"
Fora daí, meu  caro filho, apenas servirá o ambicioso ao regalo das ambições pessoais, afastando­se do Senhor com ações reprováveis enquanto finge servi­Lo! 
Não tens vocações para a renúncia que se impõe frente ao honroso desempenho!... Deixa­ 
te ficar tranqüilamente, servindo ao próximo com boa­vontade e como puderes, mesmo no seio da
família, que não andarás mal... Não te sentes verdadeiramente submisso à palavra de comando d’Aquele que se deu em
sacrifício nos braços de uma Cruz!... Não te precipites, então, querendo arrostar responsabilidades
tão grandiosas e pesadas que te poderão comprometer o futuro espiritual! Retorna, filho, às tuas
obrigações de cidadão, porfiando no cumprimento dos deveres cotidianos, experimentando a cada
passo a decência dos costumes... Volta à tua aldeia, apascenta o teu  gado, deixa­te permanecer 
isento de ambições precipitadas, que te será isso mais meritório do que atraiçoar um ministério 
para o qual não te encontras ainda preparado... Ara cuidadosamente a terra amiga, zelando 
alegremente pelo torrão que te serviu de berço... e, espargindo em seu generoso seio as sementes
pequeninas e fecundas, bem cedo compreenderás que Deus permanece contigo, porque verás suas
bênçãos sempre renovadas nos frutos saborosos dos teus pomares, nas espigas loiras do trigo que
alimentará a família toda, no leite criador que robustecerá o corpo de teus filhos... Cria antes o teu 
lar! Educa filhos no respeito a Deus, no culto da Justiça, no desprendimento do Amor ao próximo! 
Sê, tu mesmo, amigo de quantos te rodearem, sem esqueceres as tuas plantações e os animais
amigos que te servem tão bem como teus próprios servos, que tudo isso é sacerdócio sublime, é
serviço santificante do Senhor da Vinha..." 
A idéia dos esponsais substituiu com rapidez as antigas aspirações, impressionando­me os
conselhos do  digno servo  do  Evangelho, que me calaram fortemente. Afoito e apaixonado, entreguei­me ao nobre anelo com grandes arrebatamentos do coração, passando a preparar­me,
satisfeito, para a sua consecução. Dada, porém, a situação melindrosa em que me colocara na casa
paterna, desarmonizado com o gênio de meu genitor, e a pobreza desconcertante que me tolhia as
ações, mantive em segredo os projetos de consórcio elaborados carinhosamente pelo coração, que
perdidamente se enamorara... Dentre as numerosas moçoilas que alindavam nossa aldeia com a graça dos atrativos
pessoais e as prendas morais que lhes eram recomendações inesquecíveis, destaquei uma, sobrinha
de minha mãe, à qual havia muito admirava, sem contudo ousar externar sequer a mim mesmo os
ardores que me avivavam o peito ao avistá­la e com ela falar. Chamava­se Maria Magda. Era esbelta, linda, corada, com longas tranças negras e
perfumadas que lhe iam à cinta, e belo par de olhos lânguidos e sedutores. Como eu, era filha de
nobres arruinados, com a vantagem única de ter adquirido boa educação doméstica e mesmo 
social, graças à boa compreensão de seus pais. Passei a requestá­la com ardor, muito enamorado desde o início do romance, tal como 
seria lógico em um caráter violento e revel. Senti­me correspondido, não suspeitando que somente
a solidão de uma aldeia isolada entre os arrabaldes tristes de Toledo, onde escasseava rapaziada
galante, criara a oportunidade por meus sonhos considerada irresistível! Amei a jovem Magda com
indomável fervor, em suas mãos depositando o meu destino. De bom grado ter­me­ia para sempre
refugiado na lenidade de um lar  honradamente constituído, pondo em prática os ditames do 
generoso conselheiro. A adversidade, no entanto, rondava­me os passos, arrastando ao  meu 
encontro tentações fortes nos trabalhos dos testemunhos inadiáveis, tentações das quais me não 
pude livrar, devido ao meu gênio que me infelicitava o caráter, à insubmissão do orgulho ferido 
como à revolta que desde o berço predominava em minhas atitudes à frente de um desgosto ou de
uma simples contrariedade! 
Maria Magda, com quem, secretamente, eu concertara aliança matrimonial para ocasião 
propícia, preteriu­me por um jovem madrileno, primo de meu pai, adepto oculto da Reforma, que
visitara nossa humilde mansão, conosco passando a temporada estival! Tratava­se de guapo militar 
de vinte e cinco anos, a quem muito bem assentavam os cabelos longos, os bigodes luzidios e
aprumados, como bom cavalheiro da guarda real que era; a espada de copos reluzentes como ouro, as luvas de camurça, a capa oscilante e bem cheirosa, que lhe dava ares de herói! Chamava­se
Jacinto de Ornelas y Ruiz e acreditava­se, ou realmente era, conde provinciano, herdeiro de boas
terras e boa fortuna. Entre sua figura reconhecidamente elegante, as vantagens financeiras que
arrastava e a minha sombra rústica de lavrador bisonho e paupérrimo, não seria difícil a escolha
para uma jovem que não atingira ainda as vinte primaveras! 
Jacinto de Ornelas não voltou sozinho à sua mansão de Madrid! 
Maria Magda concordou  em ligar seu  destino ao dele pelos vínculos sagrados do 
Matrimônio, deixando a aldeia, afastando­se para sempre de mim, risonha e feliz, prevalecendo­se, para a traição infligida aos meus sentimentos de dignidade, do segredo dos nossos projetos, porquanto nossos pais tudo ignoravam a nosso respeito, enquanto eu, humilhado, o coração a
sangrar insuportáveis torturas morais, tive, desde então, o futuro irremediavelmente comprometido 
para aquela existência, falindo nos motivos para que reencarnei, olvidando conselhos e
advertências de abnegados amigos, em vista da inconformidade e da revolta que eram o apanágio 
da minha personalidade! 
Jurei ódio eterno a ambos. Rancoroso e despeitado, desejei­lhes toda a sorte de desgraças, enquanto projetos de vingança compeliam minha mente a sugestões contumazes de maldade,
tornando­me a existência num inferno sem bálsamos, num deserto de esperanças! Minha aldeia
tornou­se­me odiosa!  Por toda a parte por  onde transitasse era como se defrontasse a imagem
graciosa de Magda com suas tranças negras baloiçando ao  longo do corpo... A saudade inconsolável apoucava­me o ser, humilhando­me profundamente!  Envergonhava­me ante a
população local pela traição de que fora vítima. Supunha­me ridiculizado, apontado por antigos companheiros de folguedos, acreditando 
girar o meu nome em torno de comentários chistosos, pois muitos havia que descobriram o meu 
segredo. Perdi a atração pelo trabalho.O campo se me tornou intolerável, por humilhar­me ante a
recordação do faceiro aspecto do rival que me arrebatara os sonhos de noivado!  Em vão 
compassivos amigos aconselharam­me a escolher outra companheira a fim de associá­la ao meu 
destino, advertindo­me de que o fato, que tão profundamente me atingira, seria coisa vulgar na
vida de qualquer homem menos rigoroso e irascível. Ardente e exageradamente sentimental, porém, aboli o matrimônio de minhas aspirações, encerrando no coração revoltado a saudade do 
curto romance que me tornara desditoso. Então sussurraram novamente ao meu raciocínio as antigas tendências para o sacerdócio.
Acolhi­as agora com alvoroço, disposto a me não deixar embair pelas cantilenas fosse de quem
fosse, encontrando grande serenidade e reconforto à idéia de servir à Igreja enquanto levasse a
progredir minha humílima condição social. Não seria certamente difícil: se recursos financeiros
escasseavam, havia um nome respeitável e parentes bem­vistos que me não negariam auxílio para
a realização do grande intento. Escorei­me ainda na impetuosa esperança de vencer, de ser alguém, de subir fosse por que meio fosse, contando que ultrapassasse Jacinto na sociedade e no poder,
fazendo­o curvar­se diante de mim, ao mesmo tempo em que de qualquer modo humilhasse Maria
Magda, obrigando­a a preocupar­se comigo ainda que apenas para me odiar! 
A morte de meu  venerando genitor simplificou  a realização de meus novos projetos. Afastei as razões apresentadas por minha mãe, tendentes a me deterem na direção da propriedade,
substituindo o braço forte que se fora. Inquietação insopitável desvairava meus dias. Idéias
ominosas firmavam em meu cérebro um estado permanente de agitação e angústia, estabelecendo­ 
se um complexo em meu  ser, difícil de solucionar no  decurso de apenas uma existência! 
Seguidamente presa de pesadelos alucinatórios, sonhava, noites a fio, que meu  velho pai, assim
outros amigos falecidos, voltavam do túmulo a fim de me aconselharem a deter­me na pretensão 
adotada com vistas ao futuro, preferindo o consórcio honesto com alguma de minhas
companheiras de infância, pois era esse o caminho mais digno para facultar­me tranqüilidade de
consciência e ventura certa. Mas o ressentimento por Magda, incompatibilizando­me com novas
tentativas sentimentais, desfazia rapidamente as impressões tentadas a meu favor pelos veneráveis
amigos espirituais que desejavam impedir praticasse eu novos e deploráveis deslizes frente à Lei
da Providência. Fiz­me sacerdote com grande facilidade! 
A Companhia de Jesus, famosa pelo poderio exercido em todos os setores das sociedades
regidas pela legislação católico­romana e pelos feitos e realizações que nem sempre primaram pela
obediência e o respeito  às recomendações do excelso patrono, de cujo nome usou  e abusou,
proporcionou­me auxílios inestimáveis, vantagens verdadeiramente inapreciáveis!  Instruí­me
brilhante e rapidamente à sua sombra, como tanto almejara desde a infância! Absorvia, sequioso, o 
manancial de ilustração  que me ofertavam na comunidade ao observarem minhas ambições frementes, fácil instrumento que seria eu para se amoldar sob o férreo domínio de suas garras! Era
como se minha inteligência apenas recordasse do que era dado a aprender, tal o poder de
assimilação que em minhas faculdades existia! Minha gratidão, por sua vez, não conheceu limites! 
Prendi­me à Companhia com todas as forças de que dispunha minhalma ardorosa. Obedecia aos
superiores com zelo fervoroso, servindo­os a contento, indo mesmo ao encontro dos seus desejos! 
Os interesses da Igreja, como do clero da organização em foco, aprendi a respeitar e servir acima
de todas as demais conveniências, fossem quais fossem, tal como bem assentaria a um vero 
jesuíta! 
Não me referirei à causa divina. Não a esposei, dela não cogitando a fim de edificar 
minhalma com as claridades da Justiça e do Dever. Tampouco aprendi a amar a Deus ou a servir o 
Mestre Redentor no seio da comunidade a que me filiara. Certamente que na Companhia de Jesus existiam servos eminentes, cujos padrões de
desempenhos cristãos poder­se­iam equiparar ao dos primeiros obreiros do apostolado messiânico. Com esses, todavia, não me solidarizei. Não os conheci nem suas existências lograram interessar­  me. Da poderosa organização religiosa que foi a Companhia de Jesus, eu  apenas desejava a
posição social que ela me podia proporcionar, a qual me compensasse da obscuridade do meu 
nascimento: como os deleites do mundo, as loucas satisfações do orgulho, das ambições inferiores, das vaidades soezes, já que o perjúrio da noiva idolatrada cerceara meus nascentes projetos
honestos! 
Assim sendo, isto é, a fim de todo esse detestável cabedal lograr adquirir, servi com zelos
frenéticos às leis da Inquisição! Persegui, denunciei, caluniei, intriguei, menti, condenei, torturei, matei! Denunciaria, meu próprio pai, tal a demência que de mim se apossara, levando­o ao tribunal
como agente da Reforma, se, protegido pela misericórdia celeste, não tivesse ele entregado antes a
alma ao Criador! Não o fazia, porém, propriamente com requintes de maldade: meu intento era
servir os superiores, engrandecer a causa da Companhia, provar  com dedicação imorredoura e
incondicional a gratidão que me avassalara a alma apaixonada, pelo amparo que me haviam
dispensado!  Fui, eu  mesmo, vítima da mesma instituição, porque, reconhecendo­me submisso, penhorado pelos favores recebidos, exploravam os chefes maiorais tais sentimentos, induzindo­me
à prática de crimes abomináveis, certos da minha impossibilidade de tergiversação. Se, ao em vez
desta, eu optasse por alguma comunidade franciscana, ter­me­ia certamente educado,
transformando­me numa alma de crente, incapaz de práticas danosas. Pelo menos ter­me­ia
habituado à honradez dos costumes, ao respeito ao nome do Criador, ao interesse pelas desgraças
alheias, pensando em remediá­las. A Companhia de Jesus, no entanto, mau grado o nome excelso 
do qual se valeu a fim de inspirar­se, converteu­me em réprobo, uma vez que me aliciei justamente
ao departamento político­social, que tantos abusos cometeu no seio das sociedades e em nome da
religião! 
Durante muito tempo esqueci aqueles que me haviam atraiçoado. Não os procurei, não me
importou  o destino que tinham tomado. A verdade é que se transferiram para a Holanda, onde
Jacinto de Ornelas se incumbira de certa missão militar. Mas um dia o acaso me pôs novamente na
presença deles! Haviam já passado quinze longos anos que sua execrada visita à mansão de meus pais convertera meu  coração sentimental em fornalha de ódios! Os deveres profissionais, que o 
tinham afastado da Pátria, agora o faziam retornar, gozando de excelente conceito até mesmo nas
antecâmaras reais, desfrutando invejável posição social. Ao vê­lo, obrigado a apertar­lhe a mão em
certa cerimônia religiosa, fi­lo como a um estranho, sentindo, não obstante, que o coração fremia
em meu  peito, enquanto a antiga rivalidade, as doridas angústias experimentadas no passado 
fervilhavam, tumultuosas, à sua vista, prevenindo­me de que, se o sentimento de amor por Maria
Magda desaparecera, sufocando­me na vergonha do perjúrio indigno, no entanto, a chaga aberta
então sangrava ainda, clamando por desforras e represálias! 
Procurei observar a vida de tão odiado varão: seus passos de adepto da Reforma, seu 
passado como seu presente, o que fazia, o que pretendia, como vivia, o grau de harmonia existente
no lar doméstico e até as particularidades de sua existência, graças ao experimentado corpo de
espiões que me ficava as ordens, como bom agente do Santo­Ofício que era eu. Jacinto de Ornelas
era feliz com a esposa e amavam­se terna e fielmente. Tinham filhos, aos quais procuravam educar 
nos preceitos de boa moral. Maria Magda, dama formosa e cortejada, que se impunha na sociedade
por virtudes inatacáveis, apresentava a beleza altiva e digna das suas trinta e três primaveras, e, desorientado, enlouquecido por mil projetos nefastos e degradantes, ao vê­la pela primeira vez, depois de tantos anos de ausência, senti que não a esquecera como a princípio supusera, que a
amava ainda, para desventura de todos nós! 
A antiga paixão, a custo sopitada pelo tempo, irrompeu  porventura ainda mais ardente
desde que comecei a vê­la novamente, todas as semanas, praticando ofícios religiosos numa das
igrejas da nossa diocese, como boa católica que desejava parecer, a fim de ocultar as verdadeiras
inclinações reformistas que animavam a família toda. Desejei atraí­la e cativar, agora, as atenções amorosas negadas outrora, e, sob a pressão de
tal intento, visitei­a oferecendo préstimos e me desfazendo em amabilidades. Não o consegui,
todavia, não obstante as visitas se sucederem. Recrudesceu  em meu  seio o furor  sentimental, compreendendo­me totalmente esquecido, tal como a erupção inesperada e violenta de vulcão 
adormecido desde séculos!  Tentei cativá­la ternamente, rojando­me em mil atitudes servis, apaixonadas e humilhantes. Resistiu­me com dignidade, provando absoluto desinteresse pelo afeto 
que lhe depunha aos pés, como  também pelas vantagens sociais que eu  lhe poderia fornecer. Experimentei suborná­la levando­a a compreender o poder de que dispunha, a força que o hábito 
da Companhia me proporcionava no mundo todo, o acervo de favores que lhe poderia prestar e ao 
marido, até mesmo garantias para exercer a sua fé religiosa, pois eu saberia protegê­los contra as
repressões da lei, desde que concordasse em aquiescer aos meus ansiosos projetos de amor! 
Repeliu­me, no entanto, sem compaixão nem temor, escudada na mais santificante fidelidade
conjugal por mim apreciada até então, deixando­me, aliás, convencido de que mais do que nunca
se escancarara supremo abismo entre nossos destinos, que eu tanto quisera unidos para sempre! 
Ora, Jacinto de Ornelas y Ruiz, que fora conhecedor  da paixão que me infelicitara a
existência, agora, vendo­me assediar­lhe o lar com atitudes amistosas, percebeu facilmente a
natureza dos intentos que me animavam. Eu, aliás, não procurava dissimulá­los. Agia, ao contrário 
disso, acintosamente, dado que a pessoa de um jesuíta e, ainda mais, oficial do Santo­Ofício, era inviolável para um leigo! Posto ao corrente dos fatos pela própria esposa, que junto dele procurava
forças e conselhos a fim de resistir às minhas insidiosas propostas, encheu­se de temor, desacreditado dos laços de parentesco; e, concertando entendimentos e resoluções com os seus
superiores, preparou­se a fim de deixar Madrid, buscando refúgio no estrangeiro para si próprio, como para a família. Descobri­o, porém, a tempo! Viver sem Magda era tortura que já me não seria possível
suportar!  Eu  quisera antes tornar­me desgraçado, ainda que desprezado  por ela com descaso 
porventura mais chocante, quisera mesmo ser odiado com todas as forças do seu coração, mas que
a tivesse ao alcance dos meus olhos, que a visse freqüentemente, que a soubesse junto de mim, embora que em verdade separados estivéssemos por duras e irremediáveis impossibilidades! 
Desesperado, pois, desejando o inatingível por qualquer preço, denunciei Jacinto de
Ornelas como huguenote, ao Tribunal do Santo­Ofício, pensando livrar­me dele para melhor 
apossar­me da esposa! Provei com fatos a denúncia: livros heréticos em relação à Virgem Mãe, que sempre foram armas terríveis nas mãos dos denunciantes para perderem vítimas das suas
perseguições, espantalhos fabricados, não raramente, pelos próprios que ofereciam a denúncia;
farta correspondência comprometedora com luteranos da Alemanha; inteligências com adeptos
dispersos pelo país inteiro como pela França; sua ausência sistemática do confessionário, os
próprios nomes dos filhos, que lembravam a Alemanha e a Inglaterra, mas não a Espanha, e cujos
registros de batismo não pôde apresentar, alegando haverem sido  realizadas na Holanda as
importantes cerimônias. Tudo  provei, não, porém, por zelo à causa da religião que eu  pudesse
considerar digna de respeito, mas para me vingar do desprezo que por amor dele Maria Magda me
votava! 
Uma vez preso e processado, Jacinto foi­me entregue por ordem de meus superiores, os
quais me não puderam negar a primeira solicitação que no gênero eu lhes fazia, dados os bons
serviços por mim prestados à instituição. Conservei­o desde então no segredo de masmorra infecta, onde o desgraçado passou  a
suportar longa série de martirizantes privações, de angústias e sofrimentos indescritíveis, por 
inconcebíveis à mentalidade do homem hodierno, educado sob os auspícios de democracias que, embora bastante imperfeitas ainda, não podem permitir compreensão exata da aplicação das leis
férreas e absurdas do passado! Nele cevei a revolta que me estorcia o coração em me sentindo 
preterido pela mulher amada, em seu favor! Meu despeito inconsolável e o ciúme nefasto que me
alucinara desde tantos anos inspiraram­me gêneros de torturas ferazes, as quais eu  aplicava
possuído de demoníaco prazer, recordando as faces rosadas de Maria Magda, que eu não beijara
jamais; as tranças ondulantes cujo perfume não fora eu que aspirara; os braços cariciosos e lindos
que a outro que não eu — que a ele! haviam ternamente prendido de encontro ao coração! Cobrei,
infame e satanicamente, a Jacinto de Ornelas y Ruiz, na sala de torturas do tribunal da Inquisição, em Madrid, todos os beijos e carícias que me roubara daquela a quem eu amara até à loucura e ao 
desespero! 
Fiz que lhe arrancassem as unhas e os dentes; que lhe fraturassem os dedos e deslocassem
os pulsos; que lhe queimassem a sola dos pés até chagá­las, mas lentamente, pacientemente, com lâminas aquecidas sobre brasas; que lhe açoitassem as carnes, retalhando­as, e tudo a pretexto de
salvá­lo do inferno por haver anatematizado, obrigando­o a confissões de supostas conspirações
contra a Igreja, sob cujo nome me acobertei para a prática de vilezas. Presa de enlouquecedoras inquietações, Magda procurou­me... Suplicou­me, por  entre lágrimas, trégua e compaixão!  Lembrou­me sua qualidade de
parente próximo, como a qualidade de Jacinto, também parente; os dias longínquos da infância
encantadora, desfrutados no doce convívio campestre, entre as alegrias do lar doméstico, protegido 
ambos pela intimidade de quase irmãos... Cínico e cruel, respondi­lhe, interrogando se fora pensando em todos aqueles detalhes
inefáveis de nossa juventude que, consigo mesma, ou certamente com Jacinto, concertara a traição 
abominável que me infligira... Falou­me dos filhos, que ficariam à mercê de duríssimas conseqüências, com o pai
acusado pelo Santo­Ofício; e, ainda mais, se viesse ele a morrer, em vista do encarceramento 
prolongado; concluindo por suplicar, banhada em pranto, a vida e a liberdade do marido, como 
também a minha proteção a fim de se refugiarem na Inglaterra... Falei então, após lançar­lhe em rosto o odioso fel que extravasava de minhalma, vendo­a
à mercê de minhas resoluções:
"— Terás de retorno teu marido, Maria Magda... Mas sob  uma condição, da qual não 
abrirei mão jamais: Entrega­te! Sê minha! Consente em aliar tua existência à minha, ainda que
ocultamente... e to restituirei sem mais incomodá­lo!..." 
Relutou a desgraçada ainda durante alguns dias. Todos os arrazoados que uma dama virtuosa, fiel à consciência e aos deveres que lhe são 
próprios, poderia conceber a fim de eximir­se à prevaricação, minha antiga noiva apresentou  à
minha sanha de conquistador desalmado e inescrupuloso, por entre lágrimas e súplicas, no intuito 
de demover­me da resolução indigna. Mas eu me fizera irredutível e bárbaro, tal como ela própria, quando outrora lhe suplicara, desesperado ao me reconhecer abandonado, que se amerceasse de
mim, não atraiçoando meu amor a benefício de Jacinto! Aquela mulher que eu tanto amara, que
teria feito de mim o esposo escravo e humilde, tornara­me feroz com o perjúrio em favor de outro! 
Levantavam­se, então, das profundezas do meu ser psíquico, as remotas tendências maléficas que, em Jerusalém, no ano de 33, me fizeram condenar Jesus de Nazaré em favor da liberdade do 
bandoleiro Barrabás! Aliás, existia muito de capricho e vaidade nas atitudes que me levavam a
desejar a ruína de Magda; e, enquanto o casal execrado sofria o drama pungente que o homem
moderno não compreende senão através do colorido da lenda, eu me rejubilava com a satisfação de
vencê­la, despedaçando­lhe a felicidade, que incomodava meu orgulho ferido! 
Quando, alguns dias depois do nosso entendimento, a desventurada noiva da minha
juventude, descendo à sala de torturas, contemplou o espectro a que se reduzira seu belo oficial de
mosqueteiros, não mais trepidou em aceder aos meus ignóbeis caprichos! Eu a conduzira até ali
propositadamente, a título de visitá­lo, observando que sua relutância ameaçava prolongar­se! 
Para suavizar os sofrimentos do marido, furtando­o às torturas diárias, que o extenuavam;
a fim de conservar aquela vida para ela preciosa sobre todos os demais bens, e a qual minha sanha assassina ameaçava exterminar, a infeliz esposa curvou­se ao algoz, imolou­se para que de seu 
sacrifício resultasse a libertação, a vida do pai dos seus filhos muito queridos! 
Não obstante, meu  despeito exasperou­se com o  triunfo, pois, mais do que nunca,
reconheci­me execrado!  Eu  pretendera convencer  Magda a associar­se para sempre ao meu 
destino, embora lhe concedendo o retorno  do esposo. Ela, porém, que se sacrificara às minhas
exigências intentando salvar­lhe a vida, não pudera ocultar  o desprezo, o ódio que minha
desgraçada pessoa lhe inspirava, o que, finalmente, me provocou o cansaço e a revolta. Detive­me
então, exausto de lutar por um bem inatingível, e renunciei aos insensatos anelos que me
dementavam. Mas, ainda assim, sinistra vindita engendrou­se em meu  cérebro inspirado nos
poderes do Mal, a qual, realizada com o requinte da mais detestável atrocidade que pode afluir das
profundezas de um coração tarjado de inveja, de despeito, de ciúme, de todos os vis testemunhos
da inferioridade em que se refocila, deu causa às desgraças que há três séculos me perseguem o 
Espírito como sombra sinistra de mim mesmo projetada sobre o meu  destino, desgraças que os
séculos futuros ainda contemplarão em seus dolorosos epílogos! 
Maria Magda pedira­me a vida e a liberdade do marido e comprometi­me a conceder­ 
lhas. Esqueceu­se, porém, de fazer­me prometer restituí­lo intacto, sem mutilações! Então, fiz que
lhe vazassem os olhos, perfurando­os com pontas de ferro incandescido, assim barbaramente
desgraçando­o, para sempre lançando­o nas trevas de martírio inominável, sem me aperceber de
que existia um Deus Todo­Poderoso a contemplar, do alto da Sua Justiça, o meu ato abominável, que eu arquivara nos refolhos de minha consciência como refletido num espelho, a fim de acusar­  me e de mim exigir inapeláveis resgates através dos séculos! 
Oh!  Ainda hoje, três séculos depois destes tristes fatos consumados, recordando tão 
tenebroso pretérito, fere­me cruciantemente a alma a visão da desgraçada esposa que, indo, a
convite meu, receber o pobre companheiro no pátio da prisão, ao constatar a extensão da minha
perversidade nada mais fez senão contemplar­me surpreendida para, depois, debulhar­se em
pranto, prostrada de joelhos diante do esposo cego, abraçando­lhe as pernas vacilantes, beijando­ 
lhe as mãos com indescritível ternura, recebendo­o maltratado e inválido com inexcedível amor, enquanto entre risos chistosos eu chasqueava:
"— Concedi­lhe a vida e a liberdade do homem amado, senhora, tal como constou  do 
nosso ajuste... Não podereis negar a minha generosidade, para com a noiva perjura de outro tempo, pois que, podendo agora matá­lo, deponho­o nos seus braços..." 
Mas estava escrito, ou  eu  assim o quisera, que Maria Magda continuaria galgando um
calvário áspero e tempestuoso, irremediável para aquela desventurada existência: Jacinto de
Ornelas y Ruiz, inconformado com a situação inesperada quanto deplorável, não desejando tornar­ 
se um estorvo  nefasto à vida de sua dedicada companheira, que passara à chefia do lar, desdobrando­se em atividades heróicas, abandonada pelos amigos, que temiam as suspeitas do 
mesmo tribunal que julgara seu marido; esquecida até mesmo por mim, que me desinteressara da
sua posse, exausto das inúteis tentativas para me tornar amado; Jacinto, que a ela própria, como 
aos filhos, desejara salvar da perseguição religiosa, que fatalmente se estenderia contra todos os da
família, suicidou­se dois meses depois de obter a liberdade, auxiliado no gesto  sinistro pelo próprio filho mais jovem, que, na inocência dos seus cinco anos de idade, entregara ao pai o 
punhal por  este solicitado discretamente, e o qual acionou encostando­o à garganta enquanto a
outra extremidade era apoiada sobre os rebordos de uma mesa, pondo, assim, termo à existência! 
Maria Magda voltou para a aldeia natal com os filhos, desolada e infeliz. Nunca mais, até
o momento em que esboço estas páginas, pude vê­la ou dela obter notícias! 
E já se passaram três séculos, ó meu Deus!... O arrependimento não tardou a iniciar vigorosa reação em meu amesquinhado ser. Nunca
mais, desde então, logrei tranqüilidade sequer para conciliar o sono. Indescritível estado de
superexcitação nervosa trazia­me invariavelmente atordoado e surpreendido, fazendo­me
reconhecer a imagem de Jacinto de Ornelas, martirizado  e cego, por toda parte onde me
encontrasse, tal se se houvera estampado em minhas retentivas indelevelmente. Posso mesmo asseverar que meu desejo de emenda teve início no momento justo em que, entregando Jacinto à sua mulher, a esta vi prostrar­se diante dele, cobrindo­lhe as mãos de ósculos
e de lágrimas como a testemunhar, no ápice do infortúnio, não sei que sentimento sublime de amor 
e compaixão, que eu  não estava à altura de compreender! Desse momento em diante procurei
evitar cumprir as tenebrosas ordens de meus superiores, o que, lentamente me induzindo à
inobservância dos deveres à minha guarda confiados, me fez cair das boas graças em que até então 
vivia e, mais tarde, me levou ao cárcere perpétuo! Da segunda metade, pois, do XVII século até
agora, entrei a expiar, quer  na Terra como homem ou  no Invisível como Espírito, os crimes e
perversidades cometidos sob a tutela do Santo­Ofício! 
Arrependimento sincero e que eu vos garanto, meus amigos, existir inspirando todos os
meus atos, há­me encorajado a enfrentar situações de todos os matizes do infortúnio, contanto que
de minha consciência se apagar venha a nódoa vexatória de me ter prevalecido do nome augusto 
do Divino Crucificado para a prática de ações criminosas. Narrar o que têm sido tais lutas até hoje, as lágrimas que me têm escaldado a alma repesa e desolada, as insólitas investidas dos remorsos
torturantes, impostas pela consciência exacerbada, a série, enfim, dos acontecimentos dramáticos
que desde então me perseguem, seria tarefa cansativa, horripilante mesmo, à qual me não exporei. Necessários se fariam, aliás, alguns volumes especiais, para cada etapa... Até que, na segunda metade do século XIX, eu me preparei, só então! para a última fase
das expiações inalienáveis: — a cegueira! 
Cumpria­me perder, de qualquer modo, a vista, impossibilitar­me, por essa forma, de
garantir a subsistência própria, privar­me do trabalho honroso a fim de aceitar o auxílio, tanto mais
vexatório e humilhante para o desmedido orgulho que ainda não pude exterminar do meu caráter 
revel, quanto mais compassivo e terno fosse; desbaratar ideais, desejos, ambições, contemplando, ao mesmo tempo, ruírem fragorosamente meus valores morais e intelectuais, minha posição social, para aceitar  a escuridão inalterável com meus olhos apagados para sempre!  Mas também me
cumpria fazê­lo resignada e dignamente, testemunhando pesares pelas selvagens ações contra o 
rival de outrora, como atestando respeito e provando intimas homenagens àquele mesmo Jesus
cuja memória fora por mim ultrajada tantas vezes!
Todos vós sabeis da fraqueza que me assaltou  ao  reconhecer­me cego!  Não  tive, absolutamente, forças para o terrível testemunho, na hora culminante da minha reabilitação! Oh! A
Justiça imanente do Criador, que nos deixa entregues às nossas próprias responsabilidades, a fim
de que nos punamos ou  nos glorifiquemos através do enredamento e seqüência, fatídicos ou 
brilhantes, das ações que cometemos pelo desenrolar das sucessivas existências! O mesmo horror 
que Jacinto de Ornelas sentiu pela cegueira senti também eu, três séculos depois, ao perceber que
perdera a luz dos olhos!  As atormentações morais, as angústias, as humilhações insofríveis, o 
desespero inconsolável, ao se ver à mercê das trevas, e que levaram aquele desgraçado ao funesto 
erro do suicídio, também em meu ser se acumularam com tão dominadora efervescência que lhe
imitei o gesto, tornando­me, em 1890, suicida como ele o fora em meado do século XVII...
Isso tudo foi acontecido assim. Certo, errado ou discutível, assim foi que aconteceu... e tal
como foi é que me cumpriria relatar. Da tessitura deste enredo pavoroso compreender­se­á que a Suprema Lei do Criador me
imporia como expiação cometer um suicídio para sofrer­lhe as conseqüências?
Absolutamente não! 
A Suprema Lei, cujos dispositivos se firmaram na supremacia do Amor, da Fraternidade, do Bem, da Justiça, como do Dever e de toda a esteira luminosa de suas gloriosas conseqüências, e
que, ao mesmo tempo, previne contra todas as possibilidades de desarmonização e
heterogeneidade com suas sublimes vibrações, não estabeleceria como lei, jamais, a infração 
máxima, por ela mesma condenada! O que se passou  comigo foi, antes, o efeito lógico de uma
causa por mim criada à revelia da Lei Soberana e Harmoniosa que rege o Universo! Com ela
desarmonizado, enredando­me em complexos cada vez mais deprimentes através das
escabrosidades perpetradas nos sucessivos ligamentos das existências corporais, fatalmente
chegaria ao desastre máximo, tal o bloco de rocha que, se precipitado do alto da montanha, rola
rápido e inapelavelmente até ao fundo do abismo... E a fatalidade é essa criação nossa, gerada dos nossos erros e inconseqüências através das
idades e do tempo! 
Que tu  me acredites ou  não, leitor, não destruirás as linhas da verdade palidamente
exposta nestas páginas: a triste história da Humanidade com seus carregamentos de desgraças, que
tão bem conheces, aí está, diariamente afirmando exemplos idênticos ao que acabo de apresentar...

Memórias de um SuicidaOnde histórias criam vida. Descubra agora