VII Nossos amigos - os discípulos de Allan Kardec

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Nos intervalos que se seguiam de uma reunião à outra não voltávamos ao nosso abrigo da
Espiritualidade. Permanecíamos antes no próprio ambiente terrestre, em virtude de ser a viagem a
empreender  excessivamente dificultosa para grupo numeroso e pesado, tal como o nosso, poder 
repeti­la em trânsito diário. Assim foi que ficamos entre os homens cerca de dois meses, tempo 
necessário à consecução das reuniões íntimas de que carecíamos e de outras tantas de preparação 
iniciática, onde apenas os princípios e conceitos morais e filosóficos eram examinados, sem a
prática dos mistérios. Nossa qualidade de suicidas, cuja aura virulada por irradiações inferiores poderia levar a
perturbação e o desgosto às pobres criaturas encarnadas das quais nos aproximássemos, ou delas
receber influenciações prejudiciais ao delicado tratamento  a que éramos submetidos, inibia­nos
permanecer em quaisquer recintos habitados ou visitados por almas encarnadas. Convém esclarecer que éramos entidades em vias de reeducação, e, por isso mesmo,
submetidas a regras muito severas de conduta, o que impedia de vivermos ao léu entre os homens,
influenciando molestamente a sociedade terrena... coisa que fatalmente sucederia se
continuássemos rebelados, recalcitrantes no erro. Éramos então conduzidos a locais pitorescos, nos arredores das povoações em que nos
encontrássemos, e onde se tornasse difícil o ingresso dos homens: bosques amenos, prados
ensombrados por árvores frutíferas, colinas férteis e verdejantes onde o gado saboreava a relva
fresca da sua predileção. Tendas eram levantadas e aldeamento gracioso, invisível a olhos
humanos, mas perfeitamente real para nós outros, e a que doce poesia bucólica assinalava de
matizes sedutores, surgia sob o  zimbório eternamente azul dos céus brasileiros, onde o  carro 
flamejante do Astro Rei resplandecia com a pompa inigualável dos seus raios revigorantes. À noite, terna melancolia adoçava nossas amarguras de exilados do lar e da família, quando, voltando de assistir às arrebatadoras preleções evangélicas, durante as reuniões dos
espiritistas cristãos, nos quedávamos a meditar, sob o silêncio inalterável das colinas ou  da placidez dos vergeis, rememorando as lições fecundas sobre a existência do Ser Supremo como 
Criador e Pai, enquanto fitávamos a umbela celeste marchetada de estrelas lucilantes e lindas. Profundas elucubrações então  dilatavam nosso raciocínio, ao mesmo  tempo em que
contemplávamos, enternecidos quais jovens enamorados, aquele espaço sideral arrastando a glória
inavaliável com que o Arquiteto Supremo o dotou: aqui, eram astros fulgurantes e imensos, sóis
poderosos, centros de força, de luz, de calor e de vida; além, mundos arrebatadores de beleza e
grandeza inconcebível, cujo esplendor chegava até nossas vistas de precitos do mundo invisível
como amoroso aceno fraterno, a afirmar que também eles abrigavam outras humanidades, almas
nossas irmãs em marcha para a redenção, enamoradas do Bem e da Luz, e, como nós, oriundas do 
mesmo sopro paternal divino que em nosso âmago sentíamos agora palpitar, apesar  da extrema
pobreza moral em que nos debatíamos! E por toda a parte a expressão gloriosa do pensamento do 
Altíssimo a falar do Seu poder, do Seu amor, da Sua sabedoria! 
Não raramente, sob o sussurro mavioso das frondes que engrinaldavam aquelas colinas, ante as dúlcidas virações que refrescavam a noite clarificada pela refulgência dos astros que
rolavam pela imensidão, nossos amigos, os discípulos de Allan Kardec, isto é, os médiuns, os
doutrinadores, os evangelizadores cujo altruísmo e boa­vontade tanto contribuíam para alívio de
nossas inquietações, visitavam­nos em nosso acampamento, pela calada da noite, mal seus corpos
físicos repousavam em sono profundo. Confabulavam conosco piedosa e amorosamente, pois
tinham livre acesso em nosso aldeamento de emergência, ampliavam explicações em torno da
excelência das doutrinas que professavam, revelando­se respeitosos crentes na paternidade de
Deus, na imortalidade da alma e na evolução do ser para o seu Todo­Poderoso Criador! 
Grandes entusiastas da Fé, concitavam­nos ao amor a Deus, à esperança na Sua paternal
bondade, à confiança no porvir por Ele reservado ao gênero humano, à coragem para vencer, como 
bases inalienáveis de serenidade no grande esforço pelo progresso! Afiançavam ser, todos eles, atestados insofismáveis, patéticos, da excelência dos ensinos filosóficos ministrados pela Doutrina
de que eram filiados, Doutrina cujas bases, assentadas na moral grandiosa do Divino Modelo e na
Ciência do Invisível, transformara­os em rijas fortalezas de Fé, capazes de resistirem a toda e
qualquer adversidade com ânimo sereno, mente equilibrada e sorriso nos lábios, estampando o céu 
que traziam em si mesmos graças aos conhecimentos superiores que tinham da Vida e dos destinos
humanos!  Expunham, então, cheios de eloqüência, os ardores da adversidade com que muitos
deles lutavam, e, ouvindo­os, abismávamo­nos, e nossa admiração crescia, tornando­os maiores no 
conceito que deles fazíamos; — este varão respeitável, chefe de família numerosa, era paupérrimo, vivendo a lutar sem tréguas pela subsistência dos seus; aquele outro, incompreendido  no lar,
isolado no seio da própria família, que lhe não respeitava o direito sagrado de pensar e de crer 
como lhe aprouvesse; esta senhora, carregando a pesada cruz de um matrimônio desventurado,
subjugada ao imperativo de duras humilhações e desgostos diários! Eis, porém, mais esta, que vira
morrer o filho único em plena juventude, arrimo e doçura da sua viuvez e da sua velhice! 
Enquanto esta jovem, nas vésperas do consórcio ternamente almejado, se vira recompensada, na
sua doce e prometedora dedicação, com o perjúrio abominável daquele que lhe despertara os primeiros arroubos do coração!  Pois, o  ser iniciado no Espiritismo Cristão não exclui a
necessidade de grandes reparações e testemunhos dolorosos! 
No entanto, a serenidade, a paciente conformidade presidiam a tais choques em seus
corações! Haviam­se voltado confiantes para o seio amorável de Jesus, fiéis ao convite terno que
Lhe conheciam permanente! Abriram os corações e o entendimento às doces influências celestes, alcandorando­se aos influxos assistenciais de seus guias instrutores... e agora marchavam
confiantes, demandando o futuro, certos da vitória final! Não tiveram pejo, antes foi com visível
bom­humor que narraram que dentre eles havia os que iam para o cumprimento do dever em suas
reuniões sem ter feito a refeição da tarde, por  escassez de recursos, mas que nem por isso se
sentiam desgraçados, pois esperavam que o Pai Supremo, que veste os lírios dos campos e provê
as necessidades dos pássaros que voam no ar 
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, também teria com que lhes remediar a situação,
tão depressa quanto possível... e fortes se sentiam para, por si mesmos, e escudados na Fé e no 
bom ânimo dela conseqüente, reagirem contra a penúria do momento, e vencerem! 
Desse convívio, por assim dizer  diário, resultou  que grandes afeições e simpatias
indestrutíveis se estabelecessem de parte a parte, mormente entre nós, desencarnados, que nos
sentíamos sinceramente agradecidos pelo interesse que nos dispensavam e as inestimáveis mercês
que lhes devíamos. 12
Tínhamos licença para segui­los em jornadas laboriosas, no desempenho da beneficência. Poderosamente interessantes, tais labores serviam­nos de magnificentes lições, de vez que, arraigados a insano egoísmo, não compreendíamos como poderia alguém dedicar­se ao bem alheio 
com tão elevadas demonstrações de desinteresse e amor fraterno. Não me eximirei de dedicar 
algumas linhas destas narrativas à descrição das operosidades a que assistimos então, para só nos
referirmos ao que era realizado por eles em corpo astral, durante as horas dedicadas ao sono e ao 
descanso físico­material. Os médiuns, e demais iniciados cristãos encarnados, comissionados pelo Instituto Maria
de Nazaré, mereciam a sua confiança e estavam sob a sua vigilância até findarem os compromissos
que haviam assumido com os seus diretores. Muitas vezes, porém, essa vigilância estendia­se por 
tempo indeterminado, passando o aprendiz terreno a fazer parte da falange de trabalhadores da
Colônia, o que será o mesmo que dizer que se tornava colaborador da magna Legião dos Servos de
Maria. Se eram verdadeiramente dedicados ao ministério apostólico que experimentavam sob os
auspícios da grande doutrina compilada pelo chefe da Escola em que se iniciaram, isto é, por Allan Kardec, não limitariam o concurso da sua boa­vontade às sessões semanais de cunho secreto, em o 
núcleo a que pertenciam. Ao contrário, dilatariam o raio das ações próprias empreendendo 
esforços favoráveis à exaltação da Causa a que serviam. Pela noite a dentro, aqueles a quem nos ligávamos transportavam­se a grandes distâncias, em corpo astral, associando­se a seus mentores e guias para nobres realizações. Em nossa falange
cada grupo de dez ou mesmo em número menor, poderia associar­se­lhes no intuito de instruir­se,
segui­los nas peregrinações dignificantes em prol da causa esposada pelo  Mestre Magnânimo, desde que seus tutelares e assistentes dirigissem os serviços e que mentores da Legião tomassem
parte na comitiva. Durante os dois meses de nossa convivência na Terra, tive ocasião de segui­los algumas
vezes, acompanhado de outros cômpares da falange, inclusive Belarmino, e seguidos de nossos
afetuosos amigos de Canalejas e de Ramiro de Guzman.
Encaminhados por seus instrutores espirituais, visitavam hospitais através do silêncio da
noite, abeirando­se dos leitos em que gemiam pobres enfermos desesperançados e tristes, no 
piedoso interesse de lhes ministrarem alívio e vigores novos com aplicações magnéticas
vitalizantes, de que eram fecundos depositários. Falavam­lhes amigavelmente, valendo­se da
sonolência em que os viam mergulhados, reanimavam­nos transfundindo­lhes os alvores da Fé e
da Esperança que iluminavam seus Espíritos de crentes fiéis, sugeriam­lhes coragem e vontade de
vencer através de conselhos e alvitres cuja inspiração recebiam de seus bondosos acompanhantes. Com eles, assim, ingressamos também em domicílios particulares, observando que o intuito que
levavam era sempre o de servir e aprender, quer se tratasse de visita aos palácios, às choupanas ou 
até aos prostíbulos, pois entendiam, com seus guias, que também aqui existiam corações a
consolar, Espíritos enfraquecidos a reerguer  e aconselhar!  De outras vezes solicitavam nossa
cooperação no empenho de consolar grandes infelizes, isto  é, pessoas encarnadas que
atravessavam testemunhos dolorosos na série de provações convenientes, e cuja tendência para o 
desânimo e a desesperação poderia tornar­se fatal. Levavam­nos então para a sede da agremiação a
que pertenciam e, ali, enquanto seus fardos materiais continuavam em profundo sono, assim como 
os daqueles por quem se interessavam, reanimavam os pobres sofredores expondo­lhes conceitos
vivos e prudentes, ministrando­lhes os grandiosos ensinamentos evangélicos que enriqueciam suas
próprias almas e deles faziam grandes e animosos batalhadores diários, incapazes de se julgarem
vencidos, desanimados, desesperados!... E era então que emprestávamos nossa dolorosa experiência, aquiescendo em falar da
sinistra aventura que o desânimo nos reservara arrastando­nos para o abismo  do suicídio! 
Belarmino encontrava ensejos, então, para expandir seu  verbo arrebatador de orador fecundo e
brilhante; e por  mais de uma vez pôde ele arrebatar, de uma queda certa, infelizes que já se
inclinavam para a enoitada região da qual provínhamos. Tudo isso valeu­nos aproveitamento 
valioso, elucidações de alto valor, exemplificação sedutora, ao passo que reação consoladora nos
reanimava, fornecendo­nos esperança! 
Ao fim de dois meses, porém, nada mais sendo necessário recebermos do plano material
terreno, fora ordenado o regresso da falange à sua Colônia do Astral. 
Não foi sem profunda comoção que abraçamos esses ternos e singelos amigos, na última
visita ao nosso bucólico aldeamento para as despedidas, e cuja placidez comunicativa do coração 
tão sadio vigor emprestara às nossas almas vacilantes e apreensivas. Conquanto seus corpos
carnais se mantivessem adormecidos quando iam ver­nos, era bem certo que os enxergávamos
realmente, como homens ou  mulheres, sem que chegasse a impressionar­nos a diferença do 
envoltório. Hipotecamos­lhes gratidão eterna, apresentamos­lhes protestos de afeição inquebrantável, prometemos­lhes visitas freqüentes tão depressa no­lo permitissem as circunstâncias, retribuição 
das gentilezas e provas de consideração com que nos haviam honrado, assim nos víssemos para
tanto capacitados. Por sua vez prometeram continuar interessando­se pelo drama que nos
aprisionava, quer orando à Clemência Divina em nosso favor, ou nos transmitindo suas expressões
de amizade através das missivas telepáticas que suas faculdades anímicas principiavam a produzir,
promessa que imensamente nos desvaneceu.
Com efeito, após chegarmos ao nosso nevado asilo, freqüentemente víamos suas figuras
amigas se destacarem na lucidez dos nossos aparelhos de televisão, envoltas sempre nas ondas
opalinas da prece e dos pensamentos generosos com que encaminhavam a Deus os bons votos que
faziam pela melhoria de nossa situação. Se, passando dois longos meses sobre a crosta terrestre, hóspedes dos serenos céus
brasileiros, não nos concederam os guardiães a devida autorização para visitarmos sítios queridos
de nossa Pátria, cujas recordações saudosas umedeciam de pranto as fibras sensíveis de nossas
almas, deram­nos, no entanto, a conhecer estes amigos prestativos e gentis, dóceis e humildes, os
discípulos do nobre mestre da Iniciação  —  Allan Kardec —, a cuja memória, desde então, passamos a render respeitoso preito de admiração!  E pensávamos, enternecidos e sinceramente
encantados: —  Uma doutrina como essa, capaz de lapidar corações, abrilhantando­os com as
cândidas manifestações da Bondade, como víamos irradiando em torno dos nossos novos amigos, não pode estar distante das verdades celestes! 
Passaram­se dois anos, longos e trabalhosos, durante os quais muito choramos sob o peso 
de frementes remorsos, analisando  diariamente o erro  cometido contra nós mesmos, contra a
Natureza e as sábias Leis do  Sempiterno, votando­nos à situação amara deixada pelo suicídio! 
Voltamos algumas vezes a assistir a outras reuniões nos gabinetes terrestres de experimentações
psíquicas, visitando nossos amigos e lhes falando por via mediúnica. Por esse tempo relacionara­me com um amável aparelho mediúnico, isto é, um médium
dotado de peregrinas faculdades, o qual me visitava, e aos demais, freqüentemente, quer através
dos pensamentos e irradiações benévolas que dirigia a nosso favor ou no fervor da oração. Era compatriota meu, o que me atraiu  e sensibilizou  poderosamente, forçoso será
confessar! Perscrutador, corajoso, impávido, mesmo imprudente, entusiasta insofrido que também
era das Ciências Invisíveis, para as quais se inclinava com férvido encantamento, ia ao extremo de
rondar, qual romântico enamorado, as muralhas de nossa Colônia, em corpo  astral, durante o 
repouso noturno ou em expressivos transes mediúnicos, intentando atrair­nos a fim de pôr­se em
comunicação direta conosco, o que preocupava soberanamente nossos instrutores e a direção da Colônia. Não lhe permitiam a entrada por assaz perigoso para ele contacto tão direto com ambiente
privativo de réprobos, mas ofereciam guarda e assistência para o retorno, levando em conta a
sinceridade das intenções em que se escudava, e uma vez que atravessaria locais precipitosos da
Espiritualidade. Tão  amável quão intrépido amigo possuía, é certo, conselheiros e guias, assistência particular, como médium que era. Não obstante possuía também — o livre­arbítrio — a vontade livre para agir como lhe
aprouvesse, uma vez que lhe fora recomendado precatar­se com as disciplinas apropriadas ao 
exercício das faculdades mediúnicas, as quais compete ao iniciado observar com o máximo rigor! 
Ele, porém, arrojava­se imprudentemente, pelo Invisível a dentro, atrevendo­se por sombrias
plagas sem esperar  convites ou  oportunidades oferecidas por seus maiorais, escudando­se na
ardente Fé que lhe inspirava o desejo  do Bem. Ora, por uma das vezes que visitamos nossos
amigos brasileiros, proporcionaram­nos os dedicados mentores uma entrevista amistosa com o 
amoroso compatriota. Inesperadamente visitamo­lo, fomos vistos facilmente por ele, que se
rejubilou sinceramente, enquanto me davam ordens de algo dizer­lhe por via mediúnica, como 
recompensa à sua grande dedicação!  Eis­me comovido, indeciso, perturbado, escrevendo para
meus antigos amigos de Lisboa e do Porto, depois de tantos anos de ausência! Não visitáramos, no 
entanto, senão o médium, retornando aos postos de concentração da falange imediatamente. A despeito, porém, de tudo isso, as disciplinas dos primeiros dias prosseguiam sem
alterações: continuávamos hospitalizados, submetidos a tratamento meticuloso e exercícios
complexos para corrigenda dos vícios mentais, assim como a instruções e prática nos serviços de
reeducação. Conhecíamos já a lógica férrea da Reencarnação — fantasma que apavora qualquer 
Espírito delinqüente e a um suicida em particular, e que ele reluta em aceitar, intimamente
convencido, no entanto, de que é verdade que se impõe; que procura negar por que a teme,
sentindo, todavia, que a cada dia que passa, a cada minuto que se escoa no estágio consolador onde
assistem seus guias desvelados, é por ela atraída como o  bloco minúsculo de aço pelo ímã
poderoso e irresistível, e a qual porfia em afastar das próprias cogitações, sabendo­a inevitável de
seu destino como a morte o é dos destinos humanos! Entretanto, não a experimentáramos ainda
pessoalmente, vasculhando os arquivos reveladores da subconsciência a fim de contemplarmos
nosso ser na plenitude da inferioridade moral que lhe era própria. Nossa qualidade de suicidas, cujas vibrações excitadas nos torturavam a mente com
repercussões e impressões excessivamente dolorosas, retardava a consecução desse progresso que
se verifica facilmente nas entidades normais ou evolvidas. A esse tempo haviam­se estreitado poderosamente as nossas relações de amizade com o 
pessoal dos serviços hospitalares, e particularmente cada grupo com os seus guias responsáveis
mais diretos, isto é, médicos, enfermeiros, vigilantes, instrutores e psiquistas. Ora, o assistente que mais assiduamente nos seguia era o jovem médico espanhol Roberto 
de Canalejas, cujas peregrinas qualidades intelectuais e morais observávamos diariamente. Ele e
seu pai Carlos de Canalejas, pequeno fidalgo espanhol, alma de apóstolo, coração angelical, e mais
Joel Steel, mereciam, do nosso pavilhão em geral e de nossa enfermaria em particular, as mais
efusivas demonstrações de amizade e respeito. Roberto, porém, não era entidade muito evolutida, conquanto fosse avantajado o cabedal de prendas morais por ele duramente adquirido através de
existências planetárias. Tratava­se de Espírito em marcha franca no carreiro áspero do progresso, e
viera para o estágio de Além­túmulo  não havia sequer um século, após encarnação reparadora
muito acerba, na qual a dor de brutal traição conjugal despedaçara­lhe o coração e a felicidade que
julgara fruir. Tivera Roberto nada menos do que o lar destroçado pelo perjúrio da esposa a quem amara
com todo o devotamento possível a um coração de esposo; vira morrer a filha querida, primogênita
dessa união que tudo fizera supor  auspiciosa e duradoura, aos sete anos de idade, vítima da
nostalgia originada pela ausência materna, agravada com a tuberculose herdada dele próprio, seu 
pai, que, por sua vez, a adquirira durante abnegadas pesquisas em enfermos portadores do terrível
mal, pois, como médico, dedicara­se a humanitários estudos em torno do até hoje insolúvel
problema! Sofrera humilhações penosas e mil situações difíceis, por causa do casamento desigual
que fizera, pois o destino levara­o a apaixonar­se irremediavelmente pela encantadora Leila, filha
do  Conde de Guzman, o nosso muito estremecido amigo da Vigilância! Correspondido com
veemência pela volúvel menina, que então contava apenas quinze primaveras, a ela se unira pelo 
matrimônio não obstante as relutâncias de D. Ramiro, cuja penetração psicológica em torno da
própria filha não augurara feliz desfecho para o importante acontecimento. Roberto de Canalejas, em verdade, não passava de pobre e obscuro filho adotivo de um fidalgo generoso que lhe dera
nome e posição social, mas cuja fortuna fora disseminada em meritórias obras de socorro e
proteção à infância desvalida. Nos últimos quartéis do século XVII tivera Roberto uma existência no centro da Europa,
tornando­se suicida no ano de 1680. Por essa dolorosa razão, já no século  XX, conforme nos
achávamos na Espiritualidade, ainda sofria conseqüência do malsinado ato de então, pois o seu 
drama conjugal verificado na Espanha, na primeira metade do século XIX, mais não fora do que a
experiência a que não se quisera submeter ao findar  do século  XVII!  Esse nobre amigo, cujo 
aspecto grave e meditativo tanto nos atraía, aparecia no Além­túmulo tal como existira em vestes
carnais durante a última existência, passada na Espanha: estatura mediana, barba negra e cerrada
elegantemente terminada em ponta, qual usavam os aristocratas da época, e acompanhada de
bigodes bem tratados; cabeleira volumosa e farta, tez branquíssima, quase nívea, olhos negros, grandes, pensativos, lembrando ciganos andaluzes, e mãos longas indicando  o exercício 
continuado do pianista ou  o mal terrível que fizera tombar seu  último fardo carnal. Ele próprio 
revelara­me essa pavorosa síntese de sua vida, durante os serões em que nos acompanhava pelas
aléias mortas do parque do Hospital. Fizera­o, porém, no intuito altruístico de elucidação, concitando­nos ao valor para enfrentar o futuro que áspero nos aguardava, porquanto ao suicida
cumpre reparar a fraqueza, de que deu provas, curando­se do desânimo que o ata à inferioridade, com testemunhos decisivos de fortaleza e resoluções salvadoras. Ou fosse porque ele conhecera e amara Portugal, tendo ali vivido os últimos meses de sua
vida, recebendo como derradeiro pouso para a sua armadura humana a argila portuguesa; fosse
porque, além de médico, era também artista de elevado mérito, porquanto cultivava as belas­letras
e a música, enquanto a verdade era que nosso grupo se compunha de intelectuais portugueses orgulhosos de sua heróica Pátria, o certo foi que afetuosa simpatia a ele nos enlaçou, fundindo­se
logo em imorredouro afeto fraternal. Belarmino de Queiroz e Sousa, o poliglota filósofo que, a esse tempo, só de longe em
longe recordava o antigo monóculo, era dos que mais vivamente se empolgavam com a nova
amizade, pois no amigo pretendera descobrir de algum modo um similar. Confessara de Canalejas
que tivera a desdita de professar doutrinas materialistas quando encarnado, renegando a idéia do 
Ser Supremo e repelindo a luz dos sentimentos cristãos pelo domínio exclusivo da Ciência, fato 
que o desamparara grandemente durante os contínuos dissabores da existência, agravando, mais
tarde, a própria situação  moral, quando a adversidade lhe desferira o supremo golpe no  lar 
doméstico. Continuadamente entretinham longas dissertações em torno dos tão palpitantes temas
materialistas à luz da ciência psíquica, respondendo Roberto com lógica irretorquível aos
argumentos vivos de Belarmino, que mal iniciara a reeducação no campo espiritual, pois trazia
aquele, sobre o interlocutor, a vantagem de conhecimentos muito mais profundos não somente em
Filosofia como ainda em Ciência e Moral... E era de vê­los, amistosa e fraternalmente discutindo 
sobre os mais belos e profundos assuntos: —  o poliglota desejando reaprender, renovando 
cabedais sobre as ruínas das antigas convicções; o jovem doutor acendendo para ele fachos de
luzes inéditas com que norteasse a trajetória do porvir, estribando­se em fatos positivos que tão do 
agrado eram do interlocutor!  Muitas vezes nós outros, os ouvintes, sorríamos à socapa, por 
observarmos a nulidade do pobre Belarmino, que se considerara iluminado na Terra, em presença
de um simples assistente hospitalar de uma Colônia de suicidas, humilde trabalhador que nem
mesmo méritos sensíveis possuía na Espiritualidade! 
Um dia em que demorara um pouco mais a visita aos nossos apartamentos, avisando­nos
de que fora informado que receberíamos alta dentro de poucos dias, falei­lhe eu, não sem certo 
constrangimento diante da indiscrição de que usava: “—  Meu  caro Sr. doutor!  Os pequeninos relatos de vossa vida, que tivestes a
magnanimidade de confiar­me, calaram fundamente no âmago de meu  ser, comovendo­me
profundamente, e fazendo­me refletir. Fui romancista na Terra e, escrevendo, procurei estampar 
em minhas humildes produções determinado caráter moral. Deixei na Terra obra vultosa se não em
qualidade — pois hoje reconheço que bem pequenos foram os meus cabedais intelectuais — pelo 
menos em quantidade!... Confesso, porém, que raramente inventava os meus romances! Eles foram
antes filhos do conúbio da observação com os retoques sentimentais de que várias vezes usei para
enfeitar a dureza da realidade e assim mais rapidamente cativar editores e leitores, dos quais
dependia a minha bolsa quase sempre vazia... o que não deve ser qualidade muito recomendável
para um escritor terreno! 
Quem sabe, Sr. doutor, vossa lhaneza forneceria ainda alguns informes acerca do próprio 
drama pessoal, que tanto me impressionou, para que algum dia possa eu voltar a visitar a Terra e, através de um aparelho mediúnico, narrar aos homens algo interessante intercalado  com as
luminosas doutrinas que começo a aprender?... Quem sabe poderia eu transmitir  aos antigos
leitores de minhas obras terrenas as radiosas novidades que aqui defrontei, romanceando­as com
aspectos reais da vida intima, tão humana e tão instrutiva, de Espíritos que aqui eu conheça, e que foram homens e também sofreram, e também amaram, e também lutaram e morreram, como toda a
Humanidade?... E isto porque tenho ouvido asseverar, os nossos mestres locais, ser muito 
meritório para um Espírito, desejoso de progredir, o romper as barreiras do túmulo a fim de relatar 
aos homens as impressões colhidas na Espiritualidade, a moral que a todos os recém­vindos da
Terra aqui surpreende?!”
Quedou­se ele pensativo, enquanto rude melancolia lhe ensombrava o semblante que eu 
me habituara a ver  sereno, o que me trouxe arrependimento do que havia proferido. Passados
alguns instantes, porém, respondeu, como ressuscitando do passado por mim timidamente
lembrado:“— Sim! É meritório para um Espírito esse labor, justamente por se tratar de um dos mais
difíceis gêneros que é dado a algum de nós realizar! Com maior facilidade penetraremos um antro 
de obsessores, nas camadas bárbaras da esfera terrestre, a fim de retê­los, cassando­lhes a
liberdade, ou um covil de magias com seu arsenal de intrujices, onde atrocidades se praticam com
desencarnados e encarnados, a fim de anularmos tentativas criminosas; com mais presteza
convenceremos um endurecido no mal à volta a uma reencarnação expiatória do que
conseguiremos vencer o cerrado espinheiro  que representa a mente de um médium a fim de
conseguirmos transmitir centelhas das claridades que aqui nos deslumbram! 
De início deverei esclarecer que não existem muitos médiuns dispostos a tão melindroso 
gênero de tarefa! E quando se nos depara um ou outro dotado com as necessárias aptidões, além de
os reconhecermos deseducados da moral cristã, elemento indispensável ao fim idealizado pelos
grandes instrutores que estimulam o gênero de experiência, entrincheiram­se eles de tal forma no 
comodismo, indispostos para as disciplinas que a seu  próprio benefício deles exigimos, assim
como na dúvida e na vaidade de se presumirem iluminados, predestinados, indispensáveis ao 
movimento de propaganda do Invisível, que anulam completamente nosso entusiasmo, como se
suas mentes nos atingissem com duchas geladas! Daí o preferirmos as almas simples, os humildes
e pequeninos, os quais, por sua vez, por não disporem senão de bem pequenos cabedais
intelectuais, exigem de nossa parte perseverança, dedicação e trabalhos exaustivos para algo 
revelarmos aos homens através de suas faculdades! 
Minha vida, prezado amigo, ou antes, minhas vidas, através das migrações terrenas em
que tenho experimentado as lides do progresso, relatadas que fossem, com efeito, aos seus leitores, oferecer­lhes­iam lições que não seriam de rejeitar! A vida de qualquer homem ou  de qualquer 
Espírito é sempre fértil de seqüências elucidadoras, romance instrutivo que arrebata, porque reflete
a luta da Humanidade contra si própria, através de longa jornada em busca do porto florido e áureo 
da redenção!  Poderá colher sua observação aqui mesmo, pois na estreiteza deste asilo há bons
temas educativos para transmitir aos humanos por via mediúnica. Mas estou capacitado a adverti­ 
lo de que as mais decepcionantes dificuldades avolumar­se­ão, enfrentando os seus louváveis
desejos, ainda porque todos os entraves surgem diante de um suicida, pois colocou­se ele em
situação anormal, que afetou até a mais insignificante fibra da sua organização psíquica, assim
carro o seu destino! No entanto, as suas nobres intenções, sua perseverança, o amor ao trabalho, o anseio pelo bem e o belo poderão operar milagres e estou certo de que seus futuros mestres e guias
educadores orientá­lo­ão a respeito. Quanto aos informes solicitados teria satisfação em fornecer­lhos, meu  amigo! 
Reconheço­o sinceramente intencionado e o Espírito, uma vez despido dos preconceitos terrenos, perde o pejo, que o homem conserva, de revelar aos amigos os infortúnios e particularidades que o 
confrangem. Infelizmente, porém, não sinto em mim o desprendimento necessário para reviver o 
drama terrível que ainda me conturba!  Medir o passado cujas cinzas ainda se encontram
palpitantes, aquecidas pelo fogo interior de um amor inesquecível, que amortalha de saudades e
pesares insopitáveis todos os meus passos na Espiritualidade; extrair das sombras da
subconsciência a imagem idolatrada da perjura, a quem não pude jamais desprezar, tentando 
conceder­me o  consolo  supremo  do esquecimento; vê­la ressurgir dos refolhos de minhas
lembranças tal como existiu  ainda ontem, formosa e sedutora, enlaçada ao meu  destino pelo 
matrimônio, e reviver as horas felizes do convívio conjugal, quando as imaginava imorredouras,
sem perceber que eram enganosas, fictícias, tão­só oriundas da minha sinceridade, da fé que me
inspirava, da minha grande boa­vontade, será padecer pela segunda vez a insuportável aflição de
reconhecê­la adúltera quando todo o meu ser anseia pela ver redimida da infâmia que a arrojou ao 
báratro repugnante da mais torpe situação que a um Espírito feminino poderá macular: o adultério! 
Não posso, Camilo, não posso!  Amo  Leila e sinto que tal sentimento desdobrar­se­á comigo 
através dos evos, porque me há acompanhado ele pelo destino em fora desde muitos séculos... desde quando a voz maviosa de Paulo de Tarso ecoava vitoriosa e pura, anunciando a Boa­Nova
sob as frondes pujantes das florestas da velha Ibéria!... E não descansarei enquanto não a tiver 
novamente a meu lado, exculpada da afronta dirigida a mim, a si mesma, à Lei de Deus, a nossos
filhos e à sua qualidade de esposa e mãe, pelas reparações cruciantes a que se submeteu, levada
pelos remorsos!”
Fez uma pausa, durante a qual deixou transparecer nos olhos a imensa ternura que vivia
em seu  coração e continuou  em tonalidades humildes, que me levaram a duplamente admirar o 
adamantino caráter que havia três anos eu observava diariamente: “—  Pudesse eu, Camilo, e evitaria as dores da expiação para minha pobre Leila, chamando­a para o meu convívio carinhoso e apagando de nosso entendimento, como outrora o 
tentei, as nódoas do delito com o ósculo do perdão que de há muito voluntária e de boamente lhe
concedi! Contudo, ela mesma nada quer aceitar de mim antes de ressarcir o próprio débito ao 
embate das tormentas de uma reencarnação amortalhada nas lágrimas de rijos sofrimentos, a fim
de poder considerar­se digna do meu amor e do perdão de Deus! Sua consciência entenebrecida
pelo erro foi o austero juiz que a julgou e condenou, pois, com a alma chagada pelas dentadas do 
remorso, apavora­se tanto com o próprio passado e tanto o execra que nada, nada será capaz de
mitigar  as ardências que a torturam senão a dor irremediável no sacrifício da expiação terrena! 
Bem quisera eu  aproximar­me dela, refrigerar minhas saudades falando­lhe pessoalmente, em
vigília ou durante o sono, consolando­a, incitando­a à luta pela vitória com os meus protestos de
perene amizade!  No entanto, não posso nem mesmo aproximar­me porque, se me percebe, apavora­se e procura fugir, envergonhada com a mácula de que a acusa a consciência! Quanto a mim, poderei vê­la ou acompanhá­la em qualquer momento que o deseje, porém, cautelosamente, a fim de me não dar a perceber, para evitar desorientá­la.”
”—  Convenço­me cada vez mais, Sr. doutor, de quanto os meus leitores estimariam
tornasse eu  para narrar­lhes os comoventes episódios que percebo  nas entrelinhas de vossas
exposições...”
“— Pedirei ao pai de Leila que posteriormente leve ao conhecimento do meu caro escritor 
lusitano o drama que tanto o atrai... Quem sabe?!... O trabalho é consagrado como elemento 
primordial do progresso e a intenção nobre e generosa que inspire o trabalhador sincero sempre
obterá o beneplácito divino para as suas realizações... D. Ramiro de Guzman encontra­se à altura
de fazê­lo. Trata­se de um Espírito forte, experimentado nas lutas do infortúnio, e que sabe
dominar as emoções, possuindo em grau adiantado a disciplina mental. Poderá e quererá fazê­lo, pois comprometeu­se comigo mesmo a pugnar  pela reeducação moral da juventude feminina na
Terra, em memória de sua infeliz filha tão amada por seu coração de pai, mas que tantos e tão 
acerbos desgostos lhe causou... mau grado a educação aprimorada que se esforçou por fornecer­ 
lhe. Falar­lhe­ei a respeito.” Compreendendo­o disposto a retirar­se, observei ainda, fiel à impertinência da antiga
curiosidade do romancista, que em toda a parte fareja substâncias sentimentais com que
engrandecer seus temas: “—  E... perdoai­me, boníssimo doutor... Vossa esposa... a formosa Leila... onde se
encontra presentemente?” Levantou­se calmo, firmou  o pensamento gravemente, como exercitando  mensagem
telepática a seus maiorais, e em seguida aproximou­se do esplêndido receptor  de imagens,
sintonizou­o cuidadosamente para a crosta terrestre e esperou, murmurando como que para si
mesmo  “—  Deve estar entardecendo no hemisfério sul ocidental... Não haverá indiscrição em
procurar vê­la neste momento...” Com efeito! A pouco e pouco a configuração de uma criança destacava­se da penumbra
de um aposento de família paupérrima. Tudo indicava tratar­se de um lar  brasileiro dos mais
modestos, conquanto não miserável. Uma menina aparentando  cinco anos de idade, cujas feições concentradas e tristes
indicavam a violência das tempestades que lhe tumultuavam o Espírito, entretinha­se com seus
modestos brinquedos de criança pobre, parecendo mentalmente preocupada com reminiscências
que se embaralhavam aos fatos presentes, pois falava às bonecas como se conversasse com
personagens cujas imagens se desenhavam quais contornos a "crayon" em suas vibrações mentais. Roberto contemplou­a tristemente e, voltando­se para mim, que me apossava do  ensinamento 
deslumbrado ante a majestade do drama cujos primórdios me davam a conhecer: “— Aí está! Reencarnada na Terra de Santa Cruz... onde palmilhará seu doloroso calvário 
de expiações... Vive agora fora dos ambientes que tanto amava!... desamparada pela ausência
daqueles que tão devotadamente a estremeciam, mas cujos corações espezinhou com a mais cruel
ingratidão! Leila desapareceu  para sempre na voragem do pretérito!... Seu  nome agora é outro: chamam­lhe Maria... o nome venerável de nossa augusta Guardiã... Para o mundo terrestre será
linda e graciosa criança, inocente e cândida como os anjos do Céu! Perante a consciência dela
própria, porém, e o julgamento da Lei Sacrossanta que infringiu, é grande infratora que cumprirá
merecida pena, é a adúltera, a perjura, a infiel, blasfema e suicida, pois Leila foi também suicida, que renegou pais, esposo, filhos, a Família, a Honra, o Dever, pelas funestas atrações das paixões
inferiores.”Duas lágrimas oscilaram no veludo de suas belas pestanas de andaluz, enquanto 
continuou comovidamente: “—  Oh, Camilo!  Glória a Deus!  Hosanas à Sua Paternal Bondade, que encobre dos
homens encarnados o cortejo sinistro de seus erros pretéritos!... Que seria da sociedade humana se
a cada criatura fosse facultada a recordação de suas passadas existências?!... se todos os homens
conhecessem o pretérito espiritual uns dos outros?!...” De repente, brado indefinível, misto de pavor, de emoção  ou  vergonha, que tocaria as
raias da loucura, abalou  o silêncio do humilde lar brasileiro, repercutindo na placidez da nossa
enfermaria de além­túmulo: — a menina acabara de pressentir Roberto, vira­o como refletido nas
ondas telepáticas, pois os remorsos segredavam à sua consciência ser ele a grande vítima dos seus
desatinos, e, em prantos, procurara refúgio nos braços maternos, sem que ninguém compreendesse
a razão da súbita crise... Deteve­se o assistente de Teócrito, isolando apressadamente o impressionante aparelho. “— É assim sempre — exclamou tristemente —, não tem coragem para enfrentar­me... No entanto, pensa em mim e deseja voltar ao meu convívio...” Despediu­se e retirou­se meditativo. Nunca mais tornei a falar­lhe no assunto. Todavia, nessa mesma tarde iniciei os apontamentos para a preparação destas humildes páginas... Quem sabia lá o que a misericórdia do Altíssimo reservaria para conceder­me?... Talvez
me não fosse de todo impossível escrever como outrora... Não possuía eu  agora alguns amigos
terrenos capazes de me ouvirem e compreenderem?... Sim! Eu melhorara muitíssimo, graças ao eficiente tratamento usado no Hospital Maria de
Nazaré...Afirmava­o a Esperança radiosa que fortalecia o meu Espírito!

Memórias de um SuicidaOnde histórias criam vida. Descubra agora