VII Últimos traços

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Faz precisamente cinqüenta e dois anos que habito  o  mundo astral. Tendo­o atingido 
através da violência de um suicídio, ainda hoje não logrei alcançar a felicidade, bem como a paz
íntima que é o beneplácito imortal dos justos e obedientes à Lei. Durante tão longo tempo tenho 
voluntariamente adiado o  sagrado dever de renascer no plano físico­material envolvido na
armadura de um novo corpo, o que já agora me vem amargurando sobremodo os dias, não obstante
tê­lo feito desejoso de sorver ainda, junto dos nobres instrutores, o elemento educativo capaz de, uma vez mergulhado na carne, proteger­me bastante, o suficiente para me tornar vitorioso  nas
grandes lutas que enfrentarei rumo à reabilitação moral­espiritual. Muito aprendi durante este meio século em que permaneci internado nesta Colônia
Correcional que me abrigou  nos dias em que eram mais ardentes as lágrimas que minhalma
chorava, mais dolorosos os estiletes que me feriam o coração vacilante, mais atrozes e
desanimadoras as decepções que surpreenderam o meu Espírito, muros a dentro do túmulo cavado 
pelo ato insano  do suicídio!  Mas, se algo aprendi do que ignorava e me era necessário para a
reabilitação, também muito sofri e chorei, debruçado sobre a perspectiva das responsabilidades dos
atos por mim praticados! Mesmo desfrutando o convívio confortativo de tantos amigos devotados,
tantos mentores zelosos do progresso de seus pupilos, derramei pranto pungentíssimo, enquanto, muitas vezes, o desânimo, essa hidra avassaladora e maldita, tentava deter­me os passos nas vias
do programa que me tracei. Aprendi, porém, a respeitar  a idéia de Deus, o que já era uma força vigorosa a me
escudar, auxiliando­me no combate a mim mesmo. Aprendi a orar, confabulando com o Mestre
Amado nas asas luminosas e consoladoras da prece lídima e proveitosa!  Muito trabalhei, esforçando­me diariamente, durante quarenta anos, ao  contacto de lições sublimes de mestres
virtuosos e sábios, a fim de que, das profundezas ignotas do meu  ser, a imagem linda da
Humildade surgisse para combater a figura perniciosa e malfazeja do Orgulho que durante tantos
séculos me vem conservando entre as urzes do mal, soçobrado nos baixios da animalidade! Ao 
influxo caridoso dos legionários de Maria também comecei a soletrar as primeiras letras do divino 
alfabeto do Amor, e com eles colaborei nos serviços de auxílio e assistência ao próximo, desenvolvendo­me em labores de dedicação àqueles que sofrem, como jamais me julgara capaz! 
Lutei pelo bem, guiado por essas nobres entidades, estendi atividades tanto nos parques de
trabalhos espirituais acessíveis à minha humílima capacidade como levando­as ao plano material, onde me foi permitido contribuir para que em vários corações maternos a tranqüilidade voltasse a
luzir, em muitos rostinhos infantis, lindos e graciosos, o sorriso despontasse novamente, depois de
dias e noites de insofrida expectativa, durante os quais a febre ou a tosse e a bronquite os haviam
esmaecido, e até no coração dos moços, desesperançados ante a realidade adversa, pude colocar a
lâmpada bendita da Esperança que hoje norteia meus passos, desviando­os da rota perigosa e
traiçoeira do desânimo, que os teria impelido a abismos idênticos aos por mim conhecidos! 
Durante quarenta anos trabalhei, pois, denodadamente, ao lado de meus bem­amados
Guardiães!  Não servi tão só ao Bem, experimentando atitudes fraternas, mas também ao Belo,
aprendendo com insignes artistas e "virtuoses" a homenagear a Verdade e respeitar a Lei, dando à
Arte o que de melhor e mais digno foi possível extrair das profundezas sinceras de minhalma. Não 
obstante, jamais me senti satisfeito e tranqüilo comigo mesmo. Existe um vácuo em meu ser que
não  será preenchido senão depois da renovação em corpo  carnal, depois de plenamente
testemunhado a mim mesmo  o dever que não foi perfeitamente cumprido na última romagem
terrena, abreviada pelo suicídio! A recordação dolorosa daquele Jacinto de Ornelas y Ruiz, por 
mim desgraçado com a cegueira irremediável, num gesto de despeito e ciúme, permanece
indelével, impondo­se às cordas sensíveis do meu  ser como estigma trágico do  Remorso 
inconsolável, requisitando de meu destino futuro penalidade idêntica, ou seja — a cegueira, já que
aprova máxima de ser  cego fora por mim anulada à frente do primeiro ensejo ofertado pela
Providência, mediante o suicídio com que julgara poder libertar­me dela, ficando, portanto, com
esse débito na consciência! 
De há muito devera eu ter voltado à reencarnação. O que fora lícito aprender nas Academias da Cidade Esperança foi­me facultado 
generosamente, pela magnânima diretoria da Colônia, a qual não interpôs dificuldades ao longo 
aprendizado que desejei fazer. Até mesmo avantajados elementos da medicina psíquica adquiri ao 
contacto dos mestres, durante aulas de Ciência e no desempenho de tarefas junto às enfermarias do 
Hospital Maria de Nazaré, onde sirvo há doze anos, substituindo Joel, que partiu  para novas
experiências terrenas, no testemunho que à Lei devia, como suicida que também era. Tal aptidão 
valer­me­á o poder tornar­me "médium curador", mais tarde, quando novamente habitara crosta do 
planeta onde tantas e tão graves expressões de sofrimento existem para flagelar  a Humanidade
culposa de erros constantes! 
Faltava­me, todavia, o idioma fraterno do futuro, aquele penhor inestimável da
Humanidade, e que tenderá a envolvê­la no amplexo unificador das raças e dos povos
confraternizados para a conquista do mesmo ideal: —  o progresso, a harmonia, a civilização 
iluminada pelo  Amor!  Era estudo facultativo esse, como, aliás, todos os demais deveres que
tenderíamos a abraçar, mas que os iniciados, particularmente, aconselhavam a fazermos, a ele
emprestando grande importância, porquanto esse idioma, cujo nome simbólico é o mesmo de
nossa Cidade Universitária, isto é, Esperança — (Esperanto) —, resolverá problemas até mesmo no além­túmulo, facultando aos Espíritos elevados o se comunicarem eficiente e brilhantemente, através de obras literárias e científicas, as quais o mundo terreno tende a receber do Invisível nos
dias porvindouros — servindo­se de aparelhos mediúnicos que também se hajam habilitado com
mais essa faculdade a fim de bem atenderem aos imperativos da missão que, em nome do Cristo e
por amor da Verdade e da redenção do gênero humano, deverão exercer. Ora, convinha extraordinariamente aos meus interesses em geral e aos espirituais em
particular, a aquisição, no plano invisível, desse novo  conhecimento, ou  seja, do  idioma
"Esperanto". Ao reencarnar, levando­o decalcado nas fibras luminosas do cérebro perispiritual, em
ocasião oportuna advir­me­ia a intuição de reaprendê­lo ao contacto de mestres terrenos. Eu fora, aliás, informado de que seria médium na existência porvindoura e comprometera­me a trabalhar,
uma vez reencarnado, pela difusão das verdades celestes entre a Humanidade, não obstante o 
fantasma da cegueira que se postou à minha espera nas estradas do futuro. Meditei profundamente
na conveniência que adviria da ciência de um idioma universal entre os homens e os Espíritos, do 
quanto eu mesmo, como médium que serei, poderei produzir em prol da causa da Fraternidade —  a mesma do Cristo —, uma vez o meu intelecto de posse de tal tesouro. Obtida, pois, a permissão para mais esse curso, matriculei­me na Academia que lhe era
afeta e me dediquei fervorosamente ao nobre estudo. Não era simplesmente um edifício a mais, figurando na extensa Avenida Acadêmica onde
suntuosos palácios se alinhavam em magistral efeito de arte pura, mas escrínio de beleza
arquitetônica, que levaria o pensador  ao sonho e ao deslumbramento!  Era também um templo, como as demais edificações, e nos seus majestosos recintos interiores a Fraternidade Universal era
homenageada sem esmorecimentos, e sob as mais sadias inspirações da Esperança, por ministros
do Bem, incansáveis em operosidades tendentes ao beneficio e progresso da Humanidade. Localizado num extremo da artéria principal da nobre e graciosa cidade do  Astral, elevava­se
sobre ligeiro planalto circulado de jardins cujos tabuleiros profusos também se multiplicavam em
matizes suaves, evolando  oblatas de perfumes ao ar  fresco, que se impregnava de essências
agradáveis e puras. Arvoredos floridos, caprichosamente mesclados de tonalidades verde­gaio e
como que translúcidas, ora esguios, de galhadas festivas, ou frondosos, orlados de festões garridos
onde doces virações salmodiavam queixumes enternecidos, alinhavam as alamedas e pequenas
praças do jardim, emprestando ao encantador recanto o idealismo augusto dos ambientes criados
sob o fulgor das inspirações de mais elevadas esferas. Não foi sem sentir vibrar nas cordas sutis do meu Espírito um frêmito de insólita emoção 
que lentamente galguei as escadarias que levavam à alameda principal, acompanhado, a primeira
vez, de Pedro e Salústio, representantes que eram da direção do movimento universitário do 
cantão, isto é, espécie de inspetores escolares. Ao longe, o edifício fulgia docemente, como  estruturado em esmeraldinos tons de
delicada quinta­essência do Astral. Dir­se­ia que os revérberos do Astro Rei, que muito de
mansinho penetrava os horizontes do nosso  burgo, resvalando brandamente pelos zimbórios e
pelas cornijas rendilhadas e graciosas, o envolviam em bênçãos diárias, aquecendo com ósculos de
fraterno estímulo a idéia genial processada no seu  interior  augusto por um pugilo de entidades esclarecidas, enamoradas do progresso da Humanidade, de realizações transcendentes entre as
sociedades da Terra como do Espaço. Era, todavia, a única edificação refulgindo tonalidades
esmeraldinas e flavas, em desacordo  com suas congêneres, que lucilavam nuanças azuladas e
brancas, e que não obedecia ao clássico estilo hindu. Lembraria antes o estilo gótico, evocando 
mesmo certas construções famosas da Europa, como a catedral de Colônia, com suas divisões e
reentrâncias bordadas quais jóias de filigrana, suas torres apontando graciosamente para o alto 
entre flamejamentos que se diriam ondas transmissoras de perenes inspirações para o exterior. Os
recintos interiores não decepcionavam, porquanto eram o que de mais belo e mais nobre pude
apreciar nos interiores da Cidade Esperança. Feição de catedral, com efeitos de luzes surpreendentes e um acento de arte fluídica da
mais fina classe que me seria possível conceber, compreendia­se imediatamente não serem
orientais e tampouco iniciados os seus idealizadores; que não pertenceriam à falange sob cujos
cuidados nos reeducávamos e que antes deveria tratar­se de realização  transplantada de outras
falanges, como que uma embaixada especial, sediada em outras plagas, mas com elevadas missões
entre nós outros, e cuja finalidade seria, sem sombra de dúvidas, igualmente altruística. Com efeito! A uma interrogação minha, Pedro e Salústio responderam tratar­se de uma
filial da grande Universidade Esperantista do Astral, com sede em outra esfera mais elevada, a
qual irradiava inspiração para suas dependências do Invisível, como até da Terra, onde já se
iniciava apreciável movimentação  em torno do nobilíssimo certame, entre intelectuais e
pensadores de todas as raças planetárias! 
Igualmente não era, como as demais Escolas do nosso burgo, dirigida por iniciados em
Doutrinas Secretas. Seus diretores seriam neutros, na Terra como no Além, em matéria de conhecimentos
filosóficos ou  crenças religiosas em geral. Seriam antes renovadores por excelência, idealistas a
pugnarem por um melhor estado nas relações sociais, comerciais, culturais, etc., etc., que tanto 
interessam a Humanidade. Ali destacamos grandes vultos reformadores do Passado emprestando 
do seu  valioso concurso à formosa causa, alguns deles tendo vivido  na Terra aureolados por 
insuspeitáveis virtudes, e com os próprios nomes registrados na História como mártires do 
Progresso, porquanto trabalharam em várias etapas terrenas, nobre e heroicamente, pela melhoria
da situação humana e da confraternização das sociedades. Surpreendido, ali encontrei plêiade
cintilante de intelectuais de toda a Europa aderidos ao movimento, entre muitos o grande Victor 
Hugo, para só me referir a um representante do continente francês, ainda e sempre genial e
trabalhador, dando de suas vastas energias à idéia da difusão de um inapreciável patrimônio entre a
Humanidade. Quando, por isso mesmo, tomei lugar no  amplo e bem iluminado salão para o 
advento das primeiras aulas, confessava­me grandemente atraído para essa nova e admirável
falange de servidores da Luz. Uma vez no recinto, onde nuanças docemente esmeraldinas se casavam ao rendilhado 
dourado da arquitetura fluídica e sutil, emprestando­lhe sugestões encantadoras, não me pude
furtar  à surpresa de averiguar ser o elemento feminino superior em número ao masculino,
referência feita aos aprendizes. E, durante o prosseguimento de todo o interessante curso, pude verificar com que fervor minhas gentis colegas de aprendizado, as mulheres, se dedicavam à
vultosa conquista de armazenarem no refolho do cérebro perispirítico as bases espirituais de um
idioma que, uma vez reencarnadas, lhes seria grato  lenitivo no futuro, afã generoso a lhes
descortinar horizontes mais vastos, assim para a mente como para o  coração, dilatando ainda
possibilidades muito mais ricas de suavizar críticas situações, remover empecilhos, solucionar 
problemas com que porventura viessem a deparar  no trajeto das reparações e testemunhos
inalienáveis do  porvir. E que de afeições puríssimas e blandiciosas, durante o mencionado 
labor?!... Ao amável aconchego dos meus companheiros de ideal esperantista, desde os primeiros
dias harmonizadas as cordas do meu ser às suas vibrações gêmeas da minha, encheu­se o meu 
Espírito  de indizível satisfação, o coração se me dilatando para o advento da mais viva e
consoladora Esperança de melhores dias presidindo às sociedades terrenas do futuro, no seio das
quais tantas vezes ainda renasceríamos, rumando para as alcandoradas plagas do Progresso! 
Tal como no desenrolar das lições ministradas pelos antigos mestres Aníbal e
Epaminondas, desde o primeiro  dia de aula na Academia de Esperanto verificou­se magistral
desfile de civilizações terrenas. Suas dificuldades, muitas até hoje insanadas, muitos dos seus mais
graves impasses foram analisados sob  nossas vistas interessadas, em quadros expositivos e
seqüentes como o cinematógrafo, mostrando a Humanidade a debater­se contra as ondas até hoje
insuperáveis da multiplicidade de idiomas e dialetos, dificuldades que figuravam ali como um dos
flagelos que assolam a atribulada Humanidade, complicando até mesmo o seu futuro espiritual, porquanto  no próprio Mundo Invisível se luta contra estorvos motivados pela diferença de
linguagem, nas zonas inferiores ou  de transição, onde prolifera o elemento espiritual pouco 
evolvido ou ainda muito materializado. Minúcias, ramificações, conseqüências surpreendentes até
mesmo dentro do lar doméstico, empeços desanimadores, no alongamento das relações e até do 
amor, entre as nações, os povos e os indivíduos, tudo foi magistralmente examinado desde as
primeiras civilizações contempladas no planeta até ao século XX, que eu próprio não alcançara no 
plano material. E, depois, a simplificação dos mesmos casos, a remoção das mesmas dificuldades, a aurora de um progresso franco, também alicerçado na clareza de um idioma que será patrimônio 
universal, da mesma forma que a Fraternidade e o Amor, unindo idéias, mentes, corações e
esforços para um único movimento geral, uma gloriosa conquista: —  a difusão da cultura em
geral, a aproximação dos povos para o triunfo da unidade de vistas, a felicidade das criaturas! 
Soletramos, então, os vocábulos. Eram­nos apresentados artística e gentilmente, através
de quadros vivos e inteligentes. Sobrepunham­se estes em seqüências admiráveis de leitura,
fornecendo­nos o de que necessitávamos para nos apossarmos dos segredos que nos permitiriam
mais tarde até mesmo discursar fluentemente, em assembléias seletas. Eram, portanto, álbuns,
livros móveis, inteligentes, como que animados por fluido singular, a nos ensinarem a
conversação, a escrita, toda a esplendente irradiação de um idioma que se ia decalcando em nosso 
intelecto, permitindo­nos, quando reencarnados, a explosão de intuições brilhantes tão logo nos
encontrássemos na pista do assunto! E tais eram as perspectivas que nos acenavam os fatos do 
cimo glorioso daquela conquista, que nos sentimos triplicemente irmanados a toda a Humanidade:
pelos laços amoráveis da Doutrina do Cristo; pelo beneplácito da Ciência que nos iluminava o coração e pela finalidade a que nos arrastaria o exercício  de um idioma que futuramente nos
habilitaria a nos reconhecermos como em nossa própria casa, estivéssemos em nossa Pátria ou 
vivendo no seio de nações situadas nas mais diferentes plagas do globo terrestre, como até no seio 
do mundo invisível! 
Ora, a Embaixada Esperantista em nossa Colônia não se limitava a facultar­nos elementos
lingüísticos capazes de nos confraternizar com os demais cidadãos terrenos, com quem seríamos
compelidos a viver nos arraiais da crosta planetária, em futuro próximo. De quando em quando, das esferas mais elevadas desciam visitas de confraternização, no 
intuito generoso de encorajarem os irmãos de ideal ainda ergastulados nas dificuldades de antigas
delinqüências. Verdadeiros congressos que eram, tais visitas à nossa Academia tratavam, em
assembléias brilhantes, do interesse da Causa, das atividades para a vitória do Ideal, dos sacrifícios
e lutas de muitos pares do novo empreendimento para a sua difusão e progresso!  Era quando 
tínhamos ocasião de avaliar a colaboração daqueles vultos eminentes que viveram na Terra e cujos
nomes a História registrou, e dos quais falamos mais atrás. Grandes turmas de alunos, aprendizes
do mesmo movimento, e pertencentes a outras esferas, aderiam a tais congressos, piedosamente
colaborando para o reconforto de seus pobres irmãos prisioneiros do suicídio. Então, eram dias festivos em Cidade Esperança! Nas suntuosas praças ajardinadas que
circundavam o majestoso palácio da Embaixada Esperantista, sobre tapetes de relvas cetinosas, garridamente mescladas de miosótis azuis, de azáleas níveas ou róseas, realizavam­se os jogos
florais, perfeitos torneios de Arte Clássica, durante os quais a alma do espectador se deixava
transportar ao ápice das emoções gloriosas, deslumbrada diante da majestade do Belo, que então se
revelava em todos os delicados e maviosos matizes possíveis à sua compreensão! Destacavam­se
os bailados coreográficos e mesmo individuais, levados a cena por jovens e operosas esperantistas, cujas almas reeducadas à luz benfazeja da Fraternidade não desdenhavam testemunhar a seus
irmãos cativos do pecado o  apreço e a consideração que lhes votavam, descendo das paragens
luminosas e felizes em que viviam para a visitação amistosa, com que lhes concediam tréguas para
as ominosas preocupações através do refrigério de magnificentes expressões artísticas! 
Então, a beleza do espetáculo atingia o indescritível, quando, deslizando graciosamente
pelo relvado florido, pairando no ar quais libélulas multicores, os formosos conjuntos
evolucionavam traduzindo a formosa arte de Terpsicore através do tempo e dos característicos das
falanges que melhor souberam interpretá­la; agora, eram jovens que viveram outrora na Grécia,
interpretando a beleza ideal dos "ballets" de seu antigo berço natal; depois, eram egípcias, persas, hebraicas, hindus, européias, extensa falange de cultivadores do Belo a encantar­nos com a graça e
a gentileza de que eram portadoras, cada grupo alçando ao sublime o talento que lhes enriquecia o 
ser, enquanto suntuosos efeitos de luz inundavam o cenário como se feéricos, singulares fogos de
artifício descessem dos confins do firmamento para irradiar em bênçãos de luzes sobre a cidade, que toda se engalanava de esbatidos multicores, nuanças delicadas e lindas, que se transmudavam
de momento a momento em raios que se entrechocavam, indescritivelmente, em artísticos jogos de
cores, entrecruzando­se, transfundindo­se em cintilações sempre novas e surpreendentes! E todo 
esse empolgante e intraduzível espetáculo de arte, que por si mesmo seria uma oblata ao Supremo Detentor da Beleza, verificado ao ar livre e não no recinto sacrossanto  dos Templos, fazia­se
acompanhar  de orquestrações maviosas onde os sons mais delicados, os acordes flébeis de
poderosos conjuntos de harpas e violinos, que eram como pássaros garganteando modulações
siderais, arrancavam de nossos olhos deslumbrados, de nossos corações enternecidos, haustos de
emoções generosas que vinham para tonificar  nossos Espíritos, alimentando nossas tendências
para o melhor, ao nosso ser ainda frágil descortinando horizontes jamais entrevistos para o plano 
intelectual!  Quantas vezes músicos célebres que viveram na Terra acompanharam as caravanas
esperantistas à nossa Colônia, colaborando com suas sublimes inspirações, agora muito mais ricas
e nobres, nessas fraternas festividades que o Amor ao próximo e o culto à Beleza promoviam! Mas
tudo isso era manifestado em um estado de superioridade e grandiosa moral que os humanos estão 
longe de conceber! 
Sucediam­se, porém, os concertos: cânticos orfeônicos atingiam expressões miríficas;
peças musicais perante as quais as mais arrebatadas melodias terrenas empalideceriam; certamens
poéticos em cenas de declamação cuja suntuosidade tocava o inimaginável, arrebatando­nos até ao 
êxtase!  E o idioma seleto de que se utilizava esse pugilo magnífico de artistas pertencentes a
falanges que viveram e progrediram sob a bandeira de todos os climas, de todas as Pátrias do 
globo terrestre, era o Esperanto, aquele que iria coroar a iniciação que fizéramos, reeducando­nos
aos conceitos da Moral, da Ciência e do Amor! 
Só se admitia, no entanto, a Arte Clássica. Em nossa Cidade Universitária jamais
presenciamos o regionalismo de qualquer espécie. E depois que as lágrimas banhavam nossas
faces, empolgadas nossas almas ante tanto esplendor e maravilhas, diziam nossas boas vigilantes, acompanhando­nos ao internato para o repouso noturno: — Não vos admireis, meus amigos! O
que vistes é apenas o início da Arte no além­túmulo... Trata­se da expressão mais simples do Belo, a única que vossas mentalidades poderão alcançar, por enquanto... Em esferas mais bem dotadas que a nossa existe mais, muito mais!... Cumpre, porém, à
alma pecadora refazer­se das quedas em que incorreu, virtualizando­se através da renúncia, do 
trabalho, do amor, a fim de merecer o gravitar para elas... O sentimento do dever leva­me a pensar seriamente na necessidade de volver aos páramos
terrestres para testemunhar o desejo de me afinar definitivamente com a Ciência da Verdade que
acabo de entrever durante meu  estágio nesta Colônia. Não mais deverei permanecer em Cidade
Esperança, a menos que pretenda agravar  minhas responsabilidades com um estado de
estacionamento incompatível com os códigos que acabo de estudar e aceitar. Incorreria em grave
falta dilatando por  mais tempo a reparação que a mim mesmo devo, bem como à lei do 
Sempiterno, por mim espezinhada desde muitos séculos. Dos antigos companheiros e amigos que
imigraram do Vale Sinistro e que do Hospital ingressaram na Cidade Universitária, sou eu o único 
que até hoje aqui permanece, desencorajado de experimentar as próprias forças nos embates
expiatórios das arenas terrestres. Belarmino de Queiroz e Souza, o nobre amigo cuja preciosa
afeição me era dos mais gratos lenitivos durante as difíceis pelejas espirituais a caminho da
reabilitação, há dez anos que partiu  para novas experimentações, tendo preferido renascer no 
Brasil, por maior facilidade lhe oferecer, ali, o amparo da protetora Doutrina que abraçou durante os preparatórios nas Academias. Debrucei­me, comovido e afetuoso, sobre seu  triste berço  de
órfão pobre, pois perdeu a mãe, tuberculosa, um ano depois do nascimento. Muitas vezes tenho 
sussurrado protestos de sempiterna ternura aos seus ouvidos infantis, durante as horas desoladas
em que se põe a meditar, pequenino e infeliz, nos espinhos que já lhe ferem o coração. E muito hei
chorado de compaixão e tristeza em contemplando sua infância angustiosa: —  o braço 
semiparalítico, herança inevitável do suicídio no século  XIX; mirrado e enfermo  filho de
tuberculosa, com idêntico futuro a aguardá­lo na maioridade! Desejei partir com ele, servir­lhe de
irmão, vivendo a seu lado a fim de ampará­lo, consolá­lo, a mim mesmo reanimando ao contacto 
de sua leal afeição. Impossível fazê­lo, porém! Seria missão de amor que não estaria ao alcance de
um réprobo como eu, carente dos mesmos socorros e atenções!  Na Terra, nossos destinos e
situações serão diversos. Somente mais tarde, após a vitória dos testemunhos bem suportados,
reencontrar­nos­emos, aqui mesmo, a fim de reiniciarmos a marcha para o Melhor. Doris Mary 
igualmente se apresentou em seu favor. Desejava segui­lo no círculo familiar, pois que o amava
ternamente, predispondo­se a sacrifícios por desejar suavizar­lhe as mesmas amarguras com os
desvelos de um sentimento vazado na fraternidade cristã. Não lhe foi, porém, concedida permissão 
para tanto, porquanto tal abnegação implicaria circulo de infortúnios sucessivos e Doris possui
méritos, tem direitos e compensações concedidas pela Lei, no panorama social terreno, por ter 
vindo de uma existência em que palmilhou áspera trilha de amarguras bem suportadas ao lado de
um esposo incompreensível e brutal, trilha que o suicídio de Joel infelicitou ainda mais. Agora,
seus guias não aconselharam novos sacrifícios pelo filho nos testemunhos que seria chamada a
fazer e tampouco por Belarmino, que idêntico desgosto causara à sua velha e dedicada mãe! Ela
velaria, antes, por ambos, qual sombra luminosa e protetora que do  Além projetasse, sobre o 
trajeto a realizarem, inspiração e consolo nas horas decisivas! 
Como vemos, não só Belarmino, mas também Joel descera às renovações reparadoras.
João d'Azevedo e Amadeu  Ferrari igualmente voltaram ao dever de renovar as experiências
fracassadas, e há oito anos já que os vi ingressar no Recolhimento para os devidos preparativos. Este último, presa de desgostos e inconsoláveis remorsos, nem mesmo terminou  o curso de
preparatórios que conviria a todos nós. Muniu­se de ardente coragem à luz dos ensinamentos do 
Divino Emissário  e partiu, para o Brasil ainda, solicitando a mercê de um envoltório corporal
negro e humílimo, onde positivasse pacientemente o duplo pesar que o afligia: — o suicídio de
ontem e a tirania de outrora, como senhor de escravatura que fora! E não sei, Deus meu, por que
me não encorajei ainda a lhes imitar o gesto nobre, quando até mesmo Roberto de Canalejas não 
mais faz parte do corpo de médicos aprendizes do Departamento Hospitalar, pois acaba de tomar 
novas vestes carnais em formosa incumbência nos Campos da Terceira Revelação, e quando 
Ritinha de Cássia, a linda e encantadora vigilante que tantas lágrimas enxugou  aos meus olhos
torturados de penitente, Ritinha, a quem me afeiçoara com a mais doce ternura fraternal possível
ao meu  coração, imitou  o gesto  de Roberto!  Nas pelejas planetárias não existirá a tarefa
matrimonial nas cogitações deste amigo admirável. Fiel ao antigo  sentimento pela consorte
adorada, preferiu  antes servir a causas mais vastas, desdobrando­se em atividades a prol da
coletividade. Rita, porém, caráter adamantino, coração evolvido para as altas aspirações, capaz, por isso mesmo, de positivar missões femininas de grande responsabilidade, pediu  e obteve
permissão de seguir no encalço de Joel, desposando­o após o testemunho que a este será
indispensável frente à repetição das experiências em que fracassou, surgindo em sua vida como 
radiosa aleluia depois que ele se reabilitar perante a própria consciência! Amavam­se! Bem cedo 
percebi­o! E, enquanto traço estas linhas, ponho­me a pensar sobre a excelsitude da bondade do 
Senhor dos Mundos e das Criaturas, que permite à alma humana tais compensações, depois do 
ressurgimento das trevas do pecado!...30
Rita será, na Terra, como foi no Espaço, a vigilante amorosa e gentil que, no círculo 
familiar terreno, se rodeará de almas ainda carentes de amparo, consolando­as, reanimando­as, aquecendo­as sob as doçuras dos seus afetos, ao  mesmo tempo  em que, através de virtuosos
exemplos, as impulsiona para os caminhos da Vitória! 
No vasto dormitório do Internato de Cidade Esperança, onde habito desde os alvores do 
ano de 1910, só existem "novatos". Às vezes profunda desolação vem acabrunhar minhalma, como 
alguém que, vivendo na Terra muitas décadas, se visse deserdado da presença dos amigos e
familiares mais queridos, contemplando as ruínas que a ausência dos seres amados, tragados pela
morte, cavaram em torno de sua velhice, onde o gelo das íntimas agonias se aquartela, tornando­o 
incompreensível e intolerável no conceito dos moços que agora lhe povoam os dias. Os leitos dos
meus velhos amigos são hoje ocupados por entidades outras que, conquanto também afinadas por 
idênticos princípios e ideais, não estão a mim tão ternamente estreitadas pelas cadeias forjadas no 
tempo e nos infortúnios em comum... Ali está a janela de balaústres bordados, ampla, dividida em
três arcos de fino lavor  artístico, lembrando construções hindus sublimadas por  uma classe
superior. Ao amanhecer, Belarmino se debruçava no seu  peitoril para saudar  a alvorada e
comungar com o Alto na patena augusta da Prece! Aqui, a mesa singela em que me parece ainda
ver debruçado o  vulto constrangido e triste de João  d'Azevedo exercitando a programação das
atividades convenientes ao seu caso, nos campos carnais. Acolá, dispostos pitorescamente sob os
cortinados olentes das galhadas do parque, os bancos onde eu  e meus velhos companheiros de
infortúnio nos recreávamos, falando das esperanças que acendiam energias novas em nosso imo! 
Contemplo esses pequenos nadas e as lágrimas me acorrem aos olhos. São  as saudades que
sussurram angústias no recesso de minh’alma, dizendo que devo imitá­los sem detença, à procura
de solver as dividas incômodas da consciência! Jamais, no entanto, me deixei ficar ocioso. Procuro 
serenar o coração entristecido, ao lado de meus caros conselheiros, dando­me ao afã de servir aos
mais sofredores do que eu. Reparto­me entre as tarefas do Hospital e variadas outras incumbências
ao meu alcance, tanto na crosta do planeta como no perímetro de nossa Colônia, únicos limites em
que poderei transitar  enquanto não apresentar à Grande Lei os testemunhos devidos! Mas nada
disso será capaz de arredar das minhas ansiosas preocupações o juízo que de mim mesmo faço, juízo depreciativo daquele que sabe que principia a incorrer em novas faltas, agravando 
voluntariamente as responsabilidades que já lhe pesam. Dir­se­ia que não  passo de um
inescrupuloso parasito, a ocupar locais que melhor caberiam a outrem! E o rubor me cobre as faces
sempre que, pelas alamedas pitorescas da Cidade, me entrecruzo com Aníbal de Silas, Epaminondas de Vigo e Souria­Omar, os quais há muito me dispensaram de suas aulas, até que, com a experiência do renascimento, possa eu dignamente provar os valores adquiridos. Sorriem­  me bondosamente, contemplam­me com interesse. Mas os olhares que me dirigem são como 
flechas de fogo  a perquirirem em minha consciência a razão por que me não animei ainda ao 
cumprimento do dever! 
Carlos de Canalejas e Ramiro de Guzman muito me têm aconselhado nestes últimos
tempos. Antes de partir para a reencarnação, fez Roberto que se estreitassem minhas relações de
amizade com seu antigo sogro e amigo, recomendando­lhe ainda que se não olvidasse de a mim
narrar, algum dia, a história dramática de Leila, cujo amor transportou às culminâncias da dor o 
coração de ambos. Tenho servido sob sua assistência freqüentemente, o que me forneceu  vasto 
campo de trabalhos no setor terreno, pois, como sabemos, é ele o chefe da Seção de Relações
Externas. Sob sua orientação tenho visitado os amigos de outrora, agora de volta ao cárcere carnal. Há cerca de dois meses regressei de um estágio  de doze semanas nas plagas brasileiras, onde
serviços de experiências, no campo da propaganda das verdades sublimes que hoje me edificam, absorveram minhas preocupações. Levou­me o bom mentor a visitar Mário Sobral, reencarnado 
em certa capital tumultuosa do Brasil. Não me contive e deixei­me prorromper em copioso pranto à beira do grabato em que vi
repousando o corpo mutilado do desgraçado amante e assassino da formosa Eulina. Sua habitação 
miserável, construída em frágeis tábuas de pinho e folhas de zinco arruinado pelo tempo, é a
expressão da mais sórdida miséria dos brasileiros jungidos aos fogos de expiações dolorosas, na
reconstrução sublime de si mesmos. Mas é também o único lar que convém à reencarnação de um
antigo boêmio vaidoso dos dotes físicos, que, pelos antros de vadiagem brilhante e pela infâmia
dos lupanares, desbaratou  a herança paterna honrada e dificultosamente adquirida nos labores
campestres! 
Andrajosamente vestido, pés descalços crestados pela continuação do contacto com as
pedras e poeiras das estradas em que transita; mutilado das mãos, cabelos ainda revoltos, despenteados, tal qual o víamos desde o Vale Sinistro, no Invisível; traços fisionômicos
semelhantes aos que conhecíamos no Além; enfermo e nervoso, atacado de estranha enfermidade
que lhe tortura a traquéia como os canais faríngeos, o que o leva freqüentemente a crises penosas, atraindo febre alta e tornando­o afônico; sem família, porque outrora, em Lisboa, ultrajou o círculo 
familiar em que havia nascido, honrado e amorável, que a Providência lhe permitira a fim de que
ao seu contacto virtuoso se munisse de boa­vontade para realizações honestas; pobre, miserável, mesmo faminto, porque não foi depositário fiel no pretérito, dos bens materiais que o Céu  lhe
confiara, antes dissipou­os, deles se valendo para a perversão dos costumes; analfabeto, uma vez
que, universitário em Coimbra na existência pregressa, não aproveitara para nenhuma finalidade
nobre a rica cultura intelectual com que a ciência das letras o dotara, antes deixou­se resvalar para a improdutividade, conturbando­se na bruteza dos costumes e incapacidades morais para a
edificação de si mesmo como dos semelhantes; o que eu tinha agora sob meu olhar apavorado já
não era aquele Mário  cujo verbo brilhante e farto vocabulário encantava os companheiros de
enfermaria, mas um infeliz mendicante, que estendia súplicas à caridade dos transeuntes! Era a
ruína social reduzida ao mais baixo e amarguroso nível que me fora possível contemplar, e, por 
isso mesmo, prorrompi em pranto compadecido e angustiado. Mas ao  meu  lado Ramiro de
Guzman sorria enternecido, tentando reconfortar­me com a luminosidade consoladora das sábias
apreciações emitidas:
"—  Exageras, Camilo!  Não contemplamos um repositório de ruínas neste casebre ou 
neste fardo corporal mutilado, mas trabalho de reerguimento de uma Alma pertencente à
Imortalidade, a quem os fogos de sinceros remorsos fustigaram, impelindo­a a conquistas
enobrecedoras! Profundamente arrependido do passado mau, como deves recordar, Mário traçou  — ele mesmo! — o mapa de expiações que aí vês, enquanto o suicídio por enforcamento forneceu 
a origem da enfermidade nervosa e da insuficiência vibratória dos aparelhos faríngeos, uma vez
que seu organismo perispiritual se viu grandemente atingido pelas repercussões dali advindas... o 
que vem demonstrar ser todo este lamentável presente obra do seu próprio passado e não punição 
provinda de um juiz austero ou inclemente que se desejaria vingar. Contemplas ruínas, dizes?... Pois bem, destes escombros ruinosos, cuja visão te amargura, despontará para teu  amigo Mário 
Sobral a alvorada de progressos novos, porquanto, aqui se refazendo, estará solvida a dívida
desonrosa que o atava às galés do remorso, reabilitando­o perante si mesmo e perante as leis que
infringiu... Aliás, julgas, porventura, vê­lo aqui abandonado, à mercê tão­somente da caridade das
criaturas humanas?... Enganas­te!... Pois não é, antes, pupilo da Legião dos Servos de Maria?... Não se encontra registrado no Hospital Maria de Nazaré? Deves recordar que tal encarnação é o 
tratamento conveniente a casos gravosos como o dele, sublime cirurgia que o levará bem cedo à
convalescença... Irmão Teócrito não estará, porventura, à testa dos seus passos?... Vigilantes e
enfermeiros do Hospital, como do Departamento a que pertenço, não o assistem carinhosamente, por ele velando  como por enfermo grave, diariamente transfundindo energias, coragem, esperanças, sempre novas e mais sólidas, na sublime preocupação de ajudá­lo a remover as
pesadas montanhas das iniqüidades levantadas em seu destino pelos atos por ele próprio cometidos
à revelia do Bem?... Freqüentemente, eu mesmo não o visito, como neste momento o faço, fiel às
incumbências que me dizem respeito, e não encaminho seu  Espírito, muitas vezes, aos nossos
postos de emergência do Astral, no intuito de reconfortá­lo, avivando energias fluídicas no seu 
envoltório físico­espiritual, a fim de que suporte a amarga sentença que se traçou sem demasiados
desfalecimentos?... Não sabes, ao demais, que se arrasta entre sorrisos de uma conformidade que
vem construindo vitória insofismável no ciclo expiatório inapelável que lhe cumpre vencer?... Sente­se ele mesmo feliz, pois, nas profundezas da consciência, existe a iluminá­lo a certeza
alvissareira de que assim, tal qual o vês, está cumprindo o sagrado dever de cidadão imortal, cujo 
destino será afinar­se com os ritmos harmoniosos da lei do Bem e da Justiça universais!" 
Calei­me, resignado e pensativo, pondo­me a meditar  nas resoluções urgentes que eu 
mesmo deveria tomar.
De Guzman  apôs as mãos translúcidas sobre a fronte escaldante do antigo pupilo de
Teócrito, transmitindo virtudes fluídicas que lhe beneficiassem a acabrunhadora dispnéia. Detive­  me em concentração respeitosa, suplicando à Governadora Amorosa de nossa Legião concedesse
alívio ao mísero comparsa de minhas antigas desventuras, ao passo que, terminada a operação 
generosa, virou­se novamente o nobre amigo, consolativo:
"— A Providência nos enseja caminhos de glórias, meu caro amigo, em lutas fecundas
entre lágrimas e oportunidades de redenção... E, no trajeto, concede aos penitentes arrependidos
compensações que freqüentemente não estarão à altura de apreciar, dados os impositivos criados
pelo estágio em um fardo carnal..." 
Virou­se para um ângulo sombrio do casebre, que eu  deixara de examinar, preocupado 
com o quadro apresentado pela presença de Mário reencarnado, e apontou para uma forma que, humilde e silenciosa, velava o doente, enquanto costurava remendos em fatos já rotos, e disse:
"—  Vês esta pobre mulher?... Não poderás sequer  avaliar o excelente trabalho de
redenção que, sob as vistas do Excelso Mestre, se opera nos refolhos de sua alma, tão arrependida
quanto a de Mário, entre os espinhos de pobreza extrema, de lutas tão árduas quanto dignamente
suportadas!..." 
Busquei orientar­me, interessado e comovido ante o  acento enternecido  do nobre
pensador que me acompanhava. Ao lado da porta de entrada, única existente no paupérrimo 
domicílio, procurando um pouco de claridade que a auxiliasse no trabalho humílimo em que se
entretinha, destaquei uma mulher de cor negra, pobremente vestida, porém, asseada, aparentando 
cerca de cinqüenta anos. De sua fisionomia serena transpareciam singeleza e humildade. Admirado, interpelei o caridoso mentor:
"— Não a conheço... De quem se trata?..." 
"—  Faze tu  mesmo um esforço, Camilo... Penetra as ondas vibratórias do seu 
pensamento, que progride no trabalho das recordações, e vê o que sucedeu há cerca de quarenta
anos, ou seja, na época em que retornou Mário ao círculo carnal terreno..." 
Obedeci, intrigado, enquanto a mulher negra se aproximava do enfermo, ministrando­lhe
certa medicamentação homeopata, carinhosamente levantando­lhe a cabeça para, em seguida,
retornar ao trabalho. Em derredor, o silêncio convidava à eclosão das recordações. Entardecia lá
fora e o Sol feérico do Brasil esbraseava o ocidente com seus raios ardentes de ouro festivo,
iluminando o firmamento com mil reflexos coralinos. Cá dentro a mulher pensava, pensava... Em
torno do seu  cérebro  as imagens se erguiam em agitações e seqüências caprichosas, enquanto, apavorado e comovido, eu lia e compreendia como num edificante livro aberto diante de meus
olhos: —  Mário renascera em um lupanar... Sua mãe, inconformada com a maternidade, observando, para cúmulo de desgraça, a mutilação deprimente, e vendo o filho sem forças para
soltar os álacres vagidos do recém­nascido, meio sufocado por contrações espasmódicas qual se
mãos férreas o desejassem prematuramente estrangular, encheu­se de horror e prorrompeu  em
excruciante pranto, repelindo o monstrengo que concebera. Tratava­se de infeliz pecadora, a quem
a maternidade seria empecilho à continuação da liberdade que se permitia.
Contrafeita, pois, confiou  o miserável rebento a uma pobre lavadeira que vivia pelas
imediações, honestamente curvada sobre as duras tarefas impostas pela pobreza, prometendo 
gratificá­la mensalmente pelos serviços prestados ao pequenito. Aquiesceu  a boa operária, não 
visando tão­só ao acréscimo do  rendimento para sua desprovida bolsa, mas, principalmente, obedecendo aos impulsos caritativos do bem formado coração que trazia, porquanto, adepta de um
farto manancial de luzes e esclarecimentos — a Terceira Revelação —, não obstante a condição 
obscura que ocupava no plano social, sabia que a adoção daquele entezinho que assim entrava na
vida terrena, rodeado  de tão sombrios informes do passado e tão desoladoras perspectivas no 
presente, seria certamente desígnio traçado pelo Alto! Recebeu­o, pois, em sua humilde choça, procurando amá­lo quanto possível, já que à sua porta, batia ao nascer. Tinha ainda uma filha, menina de dez anos, pensativa e trabalhadora, e que obedientemente cooperava com a mãe nas
lides difíceis de cada dia. Afeiçoou­se ao irmãozinho que o destino lançara em seus braços e, para
auxiliar  o esforço materno, criou  pacientemente o desgraçado enfermo, dedicando­se durante
quarenta anos à desvanecedora missão — como jamais o faria uma grande dama! Morrendo­lhe a
genitora havia mais de quinze anos e falhando bem cedo a promessa da gratificação pela mãe
irresponsável, feita no momento do repúdio ao filho  infeliz, ali estava ainda, fiel no posto de
abnegação, trabalhando para que o desventurado irmão tivesse de esmolar  pelas ruas o menos
possível!... Aproximei­me da mulher e, num gesto de agradecimento pelo muito que vinha
concedendo ao meu amigo querido, descansei a destra sobre aquela fronte negra que, para mim, naquele momento, era como se se aureolasse de adamantinos fulgores:
"—  Que Jesus a abençoe, minha irmã, pelo muito  que faz pelo pobre Mário, a quem
sempre conheci tão sofredor!" — murmurei, sentindo lágrimas doloridas invadirem meus pobres
olhos espirituais. D. Ramiro de Guzman, aproximando­se grave, como reverenciando a Lei Sublime cujo 
magnânimo esplendor cintilava naquele tugúrio propicio à redenção, sussurrou, surpreendendo­me
até ao assombro:
"— Talvez ainda não adivinhaste quem aí está, encoberta neste envoltório corporal de cor 
negra, desdobrando­se em atividades cristãs a serviço do próprio reerguimento espiritual?..." 
E porque eu o fitasse, interrogativo: “— Eulina!..." 
Tomei a resolução inadiável: — seguirei amanhã para o Departamento de Reencarnação, a caminho do Recolhimento, para tratar do esboço corporal físico­terreno, cuidando de pesquisas
para o ambiente mais propício ao  renascimento reparador. Consultei todas as autoridades da
Colônia afetas ao meu caso e foram unânimes em me reanimar para o indispensável e proveitoso 
certame. Desejei levantar, eu mesmo, o programa para minhas tarefas de reajustamento às leis
infringidas pelo suicídio, pois que possuo lucidez suficiente para tomar responsabilidade de tal
vulto. Hei de cegar aos quarenta anos, mas cegar irremediavelmente, como se as órbitas vazias de
Jacinto de Ornelas se transferissem para minha máscara fisionômica depois de três séculos de
expectativa do meu Espírito dolorosamente apavorado diante da imagem incorruptível da Justiça!
Consultei, todavia, pedindo inspiração  e auxílio, os mestres queridos —  Aníbal de Silas, Epaminondas de Vigo, Souria­Omar e Teócrito —, os quais carinhosamente atenderam minha
solicitação por me ajudarem a equilibrar as linhas gerais da programação com os dispositivos da
Lei. Todavia, só após minha internação no Recolhimento subirão os informes para o beneplácito 
do Templo. Afiançaram­me, aqueles amigos queridos, que se debruçarão sobre meus passos, guiando­me na senda do dever, inspirando­me nas horas decisivas quais tutelares incumbidos da
minha guarda enquanto durar meu estágio neste generoso Instituto. Disseram­me que a assistência
médica aquartelada no Departamento Hospitalar acompanhará a evolução do meu próximo futuro 
envoltório carnal desde o embrião, no sagrado escrínio genético, até os derradeiros instantes da
agonia e da separação do meu Espírito do fardo que arrastarei para recuperação do tempo perdido 
com o suicídio! Dar­se­á minha libertação dos liames físico­terrenos aos sessenta anos de idade,
tendo, portanto, vinte anos para olhar só para dentro de mim mesmo, a realizar trabalho fecundo e
glorioso de auto­educação por domar manifestações do orgulho que em meu ser não se extinguiu 
ainda. Freqüentemente assalta­me o receio de uma nova queda, do olvido dos deveres e tarefas a
cumprir uma vez submerso no oceano de uma reedição corporal, olvido tão comum ao Espírito que
ensaia a própria reabilitação. Mas meus instrutores advertiram­me de que levarei sólidos elementos
de vitória adquiridos no longo estágio reeducativo, e que por isso mesmo será bem pouco provável
que a minha vontade se corrompa ao ponto de me arrastar a maiores e mais graves
responsabilidades. Despedi­me de todos os amigos e companheiros, em peregrinação fraterna pelos
Departamentos da Colônia, a começar pela Vigilância, com Olivier de Guzman e Padre Anselmo. Todos foram unânimes em me prometerem assistência durante o exílio irremediável, através de
rogativas ao Senhor de Todas as Coisas. Sinto­me, prematuramente, saudoso deste suave reduto 
que por espaço tão longo de tempo me abrigou, e onde tantos e preciosos esclarecimentos adquiri
para o reinício de atividades nos meios sociais em que serei chamado a provar novos valores
morais. Há alguns dias verdadeira romaria de amigos acorre a este Internato, a fim de visitar­me. Chefes de seção, enfermeiros, vigilantes, e até psiquistas e instrutores abraçam­me, felicitando­me
pela resolução tomada e augurando dias gloriosos para o meu Espírito nos serviços de reabilitação. Apresentam­me ainda, cheios de bondade e estímulo, votos de vitória e aquisição de méritos. E por 
tudo me sinto agradecido, certo de que, nos testemunhos novos que me esperam às margens
pitorescas do velho e querido Tejo que tanto tenho amado e do qual ainda agora me não desejo 
separar, falange luminosa de entidades amigas estará presente a fim de me reanimar com sua
desvanecedora inspiração. E ontem me ofereceram um festim de despedida! Surpresa confortadora
esperava­me em meio dessa reunião onde a fraternidade e a beleza mais uma vez ditavam suas
intraduzíveis expressões: —  através dos nossos possantes aparelhamentos de visão a distância
pude contemplar, pela primeira vez, a formosa Mansão do Templo, na plenitude da sua
harmoniosa e intraduzível beleza ambiente! Assisti, assim, a uma assembléia de iniciados, ouvi­ 
lhes os discursos sublimes, inspirados nas mais altas expressões da Moral, da Filosofia, da Ciência, do Belo — da Verdade, enfim — que me fora possível suportar! No santuário onde se reuniam, lá
estavam ­  a mesa augusta da comunhão com o Alto e os doze varões responsáveis por toda a Colônia unidos em identidade de vistas e ideais para o solene momento da Prece!  E depois o 
panorama arrebatador do burgo que eu não poderei penetrar senão de volta da encarnação que me
espera, a sucessão de residências, os vastos horizontes floridos esbatidos por delicadas nuanças
azuladas a que os revérberos do  Astro Rei transfundem cintilações douradas... As lágrimas
inundaram­me as faces, enquanto, decalcando a augusta visão nos refolhos da consciência, como 
benfazejo estímulo para as lides ásperas do futuro, minhalma murmurava a si própria: — Coragem, peregrino do pecado! Volta ao ponto de partida e reconstrói o teu destino e
virtualiza o teu caráter aos embates remissores da Dor Educadora! Sofre e chora resignado, porque
tuas lágrimas serão o manancial bendito onde se irá dessedentar tua consciência sequiosa de paz! 
Deixa que teus pés sangrem entre os cardos e as arestas dos infortúnios das reparações terrenas;
que teu  coração se despedace nas forjas da adversidade; que tuas horas se envolvam no negro 
manto  das desilusões, calcadas de angústias e solidão! Mas tem paciência e sê humilde,
lembrando­te de que tudo isso  é passageiro, tende a se modificar com o teu  reajustamento às
sagradas leis que infringiste... e aprende, de uma vez para sempre, que és imortal e que não será
pelos desvios temerários do  suicídio  que a criatura humana encontrará o porto da verdadeira
felicidade...
—  FIM —

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⏰ Última atualização: Feb 25, 2018 ⏰

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