VII Os primeiros ensaios

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"Todas as vezes que ajudastes a um destes meus irmãos mais  pequeninos, foi a mim que o fizestes."  
JESUS CRISTO ­ o Novo Testamento.24

Dois dias se passaram após os acontecimentos há pouco narrados, durante os quais nos
entregamos a sérias ponderações sobre quanto víramos e soubéramos nas visitas aos
Departamentos Hospitalares. Compreendêramos as lições. Nenhuma ilusão seria mais possível reter depois de concluído o  estudo  daquela bíblia
espelhante e sábia que representava cada uma das seções visitadas! 
Estávamos angustiados! E no recinto plúmbeo do Pavilhão Indiano, rodeados de nostalgia
e solidão, vimos as lágrimas banharem as faces uns dos outros! 
Na manhã do terceiro dia foi ainda Roberto de Canalejas quem contribuiu  para
arredarmos o estado de depressão para o qual resvalávamos, convidando­nos a passear pelo parque
em sua companhia. Servindo­se da encantadora afabilidade que era o seu  característico, discreta e singela, advertiu enquanto caminhávamos:
"— O desânimo é sempre mau conselheiro, cujas sugestões devemos fustigar com todas
as nossas melhores forças! Reagi, meus amigos, voltando vossas vontades para a Força Suprema, de onde emanam as energias que alimentam o Universo... e logo sentireis que disposições
regeneradoras reerguerão vossas capacidades para o prosseguimento da jornada... Quando vos sentirdes pusilânimes e tristes diante do  inevitável, trabalhai!  Procurai na
oportunidade, na ação enobrecedora e honesta o restaurador para as faculdades em crise! Nunca
seremos tão insignificantes e destituídos de possibilidades, quer na Terra quando homens ou no 
Invisível como Espíritos desagregados da carne, que não nos permitamos servir ao nosso próximo, cooperando  para seu  alívio e bem­estar. Ao invés de vos aprisionardes neste Pavilhão, dando largueza de expansão a pensamentos cruciantes e improdutivos, que vos agravam os sofrimentos, vinde comigo, a visitar vossos irmãos que sofrem mais do que vós e se acham hospitalizados
ainda, ergastulados no drama de trevas que sobre vós também já se estendeu... Voltemos ao 
Hospital a fim de rever os amigos, os colegas, os enfermeiros que bondosamente por vós zelaram, consolando vossos corações esmorecidos pela dor, os médicos que vos auxiliaram a expulsar da
mente as impressões contumazes que vos amorteciam a coragem..." 
Aquiescemos. O dia todo, por ele acompanhados, visitamos novos enfermos, dirigimos
frases solidárias a pobres recém­chegados do Vale Sinistro, abraçamos Joel e demais dedicados
amigos que por nós se desvelaram por dias e noites de angustiada memória, apresentamos
respeitos e homenagens aos eminentes psiquistas que tantas vezes se abeiraram de nossos leitos
levando­nos caridosos refrigérios nas reconstituintes energias das suas virtudes hialinas!... E por 
tudo isso suave reconforto bordejou  nossas apreensões, ensinando­nos a buscar tréguas para as
próprias dores, aliviando as dores alheias, aquecendo­nos junto de corações virtuosos capazes de
nos compreenderem! 
À tarde, já de regresso ao albergue, um emissário de Teócrito comunicara­nos que, no dia
imediato, deveríamos atingir a sede da Vigilância, reunindo­nos a grande caravana que demandaria
a Terra. Teócrito não fizera parte da assistência para essa caravana. Todavia, sua autoridade fez­ 
se representar  nas pessoas de seus dignos discípulos Romeu  e Alceste, os quais zelariam por 
nossos interesses e necessidades enquanto nos encontrássemos em liberdade, não obstante
houvessem de fazê­lo ocultamente, a fim de não nos privar do mérito e da responsabilidade. Carlos
e Roberto de Canalejas, no entanto, Ramiro e Olivier de Guzman, Padre Anselmo e outros amigos
a quem nos habituáramos a querer, integravam o numeroso cortejo, incumbidos, por ordens
superiores, das instruções que se tornassem precisas, caso nosso procedimento durante a liberdade
arrastasse a necessidade de mais vultosos empreendimentos. E quando as primeiras paisagens do torrão natal se desenharam indecisamente, entre as
emanações pesadas da atmosfera, o pranto rolou­me dos recôncavos do ser, num sacrossanto 
hausto de saudade, respeito e alegria! 
Havia dezesseis anos que o fardo carnal, por mim recebido da Natureza­Mãe para, através
de seu  inestimável concurso, habilitar­me para o radioso reinado da Imortalidade, tombara em
convulsões sinistras, triturado nas garras tétricas do suicídio! 
Dezesseis anos de prisão, de lágrimas, de dores cruciantes e inenarráveis em sua
verdadeira expressão! 
Atordoado, já desambientado da minha própria terra natal, assaltou­me incoercível receio 
de perlustrar sozinho as tão conhecidas e saudosas ruas de Lisboa, do Porto, de Coimbra, que eu 
tanto amara! Senti­me constrangido e triste, verificando­me de posse da liberdade. Nossos amigos retiraram­se de nossa visão, refugiando­se em invisibilidade inatingível
pelas nossas capacidades, e deixaram­nos entregues a nós mesmos, não obstante não nos terem de
todo abandonado. Profundas modificações, de certo, o longo estágio de sofrimentos no Invisível
havia cavado em meu interior, porque me reconheci tímido e apavorado face a face, outra vez, com
aquela sociedade a quem eu  amara e desprezara a um mesmo tempo; que eu fustigara em iras
incontidas ao  lhe deparar as mazelas, para em outra vez exaltar em comovidas páginas
extravasadas do coração, ferido sempre por bem dramáticas razões! Lembrei­me de que adversas
etapas constituíram minha existência a que o desespero acabou por destruir, a qual, se não primou 
pelas virtudes, que não demonstrei possuir, ao menos se impôs pelo padrão de infortúnio que
arrastou! 
Despertada a subconsciência, tão carinhosamente embalada e adormecida pela terapêutica
do Instituto Maria de Nazaré, ante o retorno ao teatro do pretérito, o drama que vivi desenrolou­se
às minhas lembranças com o mesmo acre sabor de antanho, alvoroçando­me as entranhas anímicas
com as agruras e tribulações outrora suportadas! Lembrei­me dos que amei, dos que me amaram, ou, pelo menos, dos que tinham o dever de me amar, e tive medo de buscá­los! 
As desilusões sofridas por  Jerônimo Silveira encontravam­se ainda muito vivas em
minhas recordações para que imprudentemente me arrojasse a provocá­las para mim, visitando,
sem muito ponderar, o velho lar, os amigos, a parentela de quem eu apenas tivera fugidias notícias, por jamais dela receber demonstrações saudosas através de bons votos que me dirigissem, no 
fervor de uma prece! 
Vali­me, então, da afeição de Belarmino, a quem eu  conhecera nos dias de desgraça,
suplicando­lhe que me não abandonasse, antes marchássemos juntos, nas idas e vindas que
pretendêssemos... pois Mário lá se fora à cata de noticiário da esposa e dos filhos, dos quais jamais
soubera no Invisível, até aquela data! 
O antigo professor de línguas deixara­se bordejar por idênticas impressões. Conservava­ 
se mudo e compenetrado, enquanto eu dava elasticidade ao pensamento, externando­o por todos os
motivos.Voltei com ele ao antigo solar  que o vira nascer  e vicejar, onde desfrutara o convívio 
amoroso da família, que tanto o prezara, e por cujas salas atapetadas o vulto de sua inconsolável
mãe parecia ainda mover­se alucinadamente, desde o momento em que o vira extinguindo­se, com
os pulsos seccionados! Já não pertencia aos de Queiroz e Sousa a quinta formosa, nem lá se
encontrava a amorosa velhinha que ele, agora, os remorsos porejando dos escaninhos da alma, buscava com aflição, inconsolável por não lograr jamais noticias, quando todo o seu ser vibrava
em ânsias de saudades!... Vi o antigo professor de Dialética chorar diante da lareira, posto de joelhos no local justo 
onde outrora se conservava o balanço da velha senhora, rogando seu perdão pelo desgosto atroz
infligido ao seu terno coração de mãe; a suplicar, entre pranto aflitivo e comovedor, sua presença
saudosa, ainda que por alguns instantes, a fim de que se amenizasse em seu peito a dor feraz da
saudade que lhe estorcia a alma! 
Qual peregrino desolado procurou­a por toda a parte onde supôs provável encontrá­la. A
amorosa velhinha, porém, para quem vida, alegria e felicidade se resumiam nele, não era
encontrada em parte alguma! Até que idéia desconcertante lhe apontou a derradeira possibilidade:
dirigiu­se ao jazigo da família, onde repousavam as cinzas dos seus antepassados. Sua mãe decerto 
também lá estaria...
Com efeito! O nome adorado lá se encontrava, gravado na pedra tumular, ao lado do seu 
próprio nome... Belarmino ajoelhou­se então, à beira do próprio túmulo, e orou por sua mãe, desfeito em
lágrimas.Entardecia quando, silenciosos, descemos a encosta alfombrada do Campo Santo. Procurei, à medida das minhas possibilidades, levantar o ânimo do amigo querido; e, enquanto 
vagávamos pelas ruas, observei, esforçando­me por parecer confiante e consolativo:
"— Será fácil deduzir quanto ao destino de tua veneranda mãe, ó meu  amigo! Não se
achará, com certeza, enclausurada naquela gaiola de mármore e podridão, pulverizando­se com os
últimos elementos materiais que ali se encerram... uma vez que nem tu lá te encontras!... O senso 
indicará que, sendo nós ambos seres portadores de personalidade eterna, também ela o será... e
que, como nós, se encontrará em local apropriado à sua existência extra­corporal, mas nunca no 
poço tumular..." 
"— Sim!... Eu já o havia pensado, Camilo... Porém, onde estará ela?... Em que local do 
Infinito Invisível?... E por que será que nunca mais, nunca mais, sendo eu imortal, pude encontrar 
minha mãe querida?... Por que não a entrevi jamais, refletida nos possantes aparelhos de nossa
enfermaria, em visita telepática?... Vê­la­ei porventura algum dia?..." 
"— Perdão, Belarmino... Pareceu­me ouvir­te dizer que também a senhora tua respeitável
mãe compartilhava das crenças materialistas que professaste?... Como quererias, então, que vivesse a orar por ti, fazendo­se refletir na sensibilidade de
um medidor de vibrações espiritualizadas, para servir­me das explicações dos nossos caros amigos
da Colônia?... Indaguemos antes do seu  paradeiro ao Dr. de Canalejas ou  ao nosso Roberto... Quanto a mim não anteponho dúvidas à possibilidade de a reveres tu! Se tudo  quanto nos tem
envolvido, desde que penetramos o além­túmulo, impõe­se pela justeza da lógica, a mesma lógica
conduzir­te­á a reveres tua mãe, mais tarde ou mais cedo..." 
"— Sim, perguntemos ainda uma vez aos doutores de Canalejas... Quantas vezes já o fiz, esquivando­se ambos a respostas decisivas?! Mas... onde os encontraremos agora?... Não deixaram
endereços!..." 
"— Esperemos, então, até encontrá­los... Sejamos pacientes... Amigo de Queiroz e Sousa! 
Em dezesseis anos de desgraças surpreendentes, creio que aprendi rudimentos da sublime virtude
denominada Paciência!..." 
"—Todavia, Camilo amigo, preferia não ter voltado a Portugal... Sinto­me intranqüilo e
triste..." 
Não obstante, sentíamos fadiga e queríamos descansar.
Onde, porém, achar abrigo?!... O decoro, o respeito ao domicílio alheio inibia­nos buscar hospedagem em casas
estranhas... Quanto aos velhos amigos, não nos podendo perceber, tornavam­se ainda mais
respeitáveis para nós, por não desejarmos participar de sua intimidade como intrusos ou 
indiscretos.
Habituados à disciplina confortativa do Instituto, era premidos pela saudade do suave
aconchego que continuávamos a transitar pelas ruas da cidade. Incoercível tristeza anuviava­nos o 
coração, ao passo que o crepúsculo derramava nostalgia em derredor, avolumando as sombras e as
impressões que nos chocavam. Belarmino alvitrou  nossa hospedagem em uma igreja, cuja nave, repleta de fiéis, convidava francamente à intrusão. Repeli, no entanto, a sugestão, fiel à antiga incompatibilidade
com os representantes do clero. Numerosos locais foram, em conseqüência, lembrados, mas tanto 
os indicávamos como imediatamente eram rejeitados... De súbito, como se a fraternal solicitude de Teócrito nos observasse através dos espelhos
magnéticos, acompanhando nossos passos como fizera a Jerônimo, idéia salvadora iluminou­me a
mente e bradei, jubiloso:
Fernando!... Sim, Fernando de Lacerda! O protetor inesquecível, cujos caridosos pensamentos de amor 
e de paz, diluídos em cintilações de preces, tantas vezes me visitaram no desconsolo apavorante do 
tugúrio de trevas, onde minhalma expiava a ousadia de se haver antecedido à determinação da
Justa Lei! 
Sim, Fernando! O coração boníssimo, que continuava, incansável e piedoso como ele só,
a cativar­me com suas constantes visitas mentais, seus abraços amoráveis convertidos em
radiações benfazejas de novas preces para novas conquistas de dias melhores para o meu destino! 
Não ignorávamos o domicílio do velho amigo. Tampouco a repartição onde exercia seu 
honesto labor. Tampouco o local onde se reunia de preferência, para experimentações científicas e
culturais, a que, ao lado de atenciosos companheiros, emprestava os melhores esforços, por já o 
havermos visitado quando da primeira vez que lográramos descer à Terra. Para seu domicílio, pois, nos dirigimos, ali nos abrigando, discretos e humildes, ocupando cômodo acima do telhado, "água­ 
furtada" que se diria apropriado pelo Invisível para hóspedes de nossa categoria. Alguns dias de permanência ao lado de Fernando e seus cômpares foram suficientes para
me readaptarem aos acontecimentos terrenos, reambientando­me na vida social. Não foi, todavia,
sem sensíveis constrangimentos que o fiz, sinceramente saudoso do convívio sereno e leal da
sociedade invisível a que já me habituara. Largamente confidenciei­me com o precioso médium tão benquisto em nosso Instituto. No suave abrigo oferecido pelas "águas­furtadas" reuni idéias e deliberei realizar  um programa, com vistas à efetivação das recomendações de Teócrito. Deveria, antes de tudo, voltar a esclarecer 
aos meus antigos amigos, colegas, editores, e até aos adversários, que o suicídio não lograra
decepar­me a vida, tampouco  a inteligência e a ação. Escrevi, então, falando ao cérebro de
Fernando, em colóquios amistosos que muito me confortavam, e servindo­me de sua mão como de
uma luva que calçasse à minha própria mão, longas cartas a amigos de outrora, que a morte me
não fizera olvidar; noticiário sincero e verídico de minhas impressões, procurando identificar­me
no estilo literário que me conheciam. Não comportava já, porém, vaidades o meu gesto! Pretendia
antes preparar ambiente para mais amplas reportagens futuras. Meu intento era avisá­lo, antes de mais nada, de que eu continuava vivo, bem vivo e pensante, não obstante a tragédia inconcebível
que o túmulo ocultara aos débeis olhos humanos!  Meu  desejo  era revelar­me àquela mesma
sociedade que me conhecera, rejubilá­la com as alvíssaras de que, como eu, também ela era
imortal; preveni­la, enfim, conscienciosamente, dos perigos existentes atrás das sombrias ciladas
forjadas pelo monstro — Suicídio! 
Mas... apesar da boa­vontade de que me sentia possuído, da dedicação do generoso amigo 
que me emprestava inestimável concurso, passei pela decepção e a vergonha de ser repelido pela
maioria daqueles mesmos a quem desejava servir revelando­me individualidade pensante,
inteligência viva, independente e normal, não obstante a invisibilidade do estado em que me
achava. Sem o desejar, grandes desgostos atraí para o pobre Fernando, a quem antes eu quisera
respeitado e honrado em virtude do magnífico dom que trazia, tal o de transmitir  facilmente o 
pensamento das almas defuntas: e foi ele alvo de críticas demasiado ardentes e injustas, insultos
ingratos, remoques abusivos! 
Desapontei­me, contrariado. Não era possível à minha boa­vontade o defender o nobre
amigo, visto que me não desejavam ouvir. De nada valiam tantos e tão interessantes noticiários
que trazia eu das minhas bandas nevadas do Além a fim de surpreender antigos competidores na
literatura; tantos e tão impressionantes dramas e narrativas com que enriquecer outros editores que
necessariamente me reconheceriam através da linguagem que lhes fora habitual! Via­me forçado a
calar, porque bem poucos eram os que me aceitavam a volta! 
Entretanto, o convívio com Fernando compensava­me das derrotas nos outros setores, muito edificado me senti graças às palestras que comumente com ele empreendia, reservando­lhe
eu  a minha melhor afeição, um tono sempre crescente de gratidão pelas simpatias que a mim, como aos meus cômpares, infatigavelmente demonstrava. Por uma tarde de sol, um mês depois de nossa chegada a Portugal, quando os perfumes
amenos dos aloendros se misturavam ao sugestivo olor dos pomares fartos, espalhando vida e
encantamento pela atmosfera serena, voltei, sozinho e pensativo, num gesto abusivo e temerário, à
Quinta de S... Recordações doridas erguiam­se quais duendes obsessores a cada palmilhar pela estrada
alfombrada e tépida... e o Passado impunha­se a pouco e pouco, sacudindo de minhas lembranças
as cinzas do esquecimento, que os dúlcidos favores celestes haviam espargido sobre minhas dores, assim aviventando­as para novamente me cruciarem o coração! 
Afigurou­se­me desguarnecido o velho casarão. Um por um dos solitários
compartimentos foram por mim visitados sob o  cáustico  mental de recalcitrantes ansiedades. Sombras de odiosas amarguras incidiam sobre meu  raciocínio, compelindo­o para trás a cada
ressurgimento das lembranças que estabeleciam estranha retrospecção da vida que tão fértil me
fora em episódios adversos, decepcionantes. Panorama autêntico do que havia sido o meu viver, com lutas e responsabilidades imanentes em cada dia, desenvolveu­se milagrosamente em minha
consciência superexcitada pelo fenômeno da introspecção  voluntária, obrigando­me à
subserviência de outra vez sentir, sofrer e reviver integralmente o que para trás me pungira, calcando­me a alma! E suores de agonia porejavam das sutilezas do meu ser astral, denunciando à consciência a completa ausência de méritos que, naquele instante melindroso, me galardoassem
com honrosos beneplácitos!  Dir­se­ia que os episódios evocados pelas emoções abeberadas no 
ambiente em que outrora vivi, pensei, agi e impregnei de forças mentais deletérias se agigantavam
à minha hipersensibilidade momentânea, transmutando­se em fantasmas tirânicos que me
deprimiam, quando deixavam de acusar! 
O insuportável convívio da intimidade doméstica, que as vetustas paredes testemunharam;
as desarmonias e incompatibilidades constantes, que me tornavam a vida oceano conflagrado; o 
peso lúgubre de pensamentos viciados por insatisfação doentia, que a tara neurastênica arrastou à
completa desorganização nervosa; a desolação das trevas que se confirmavam, tapando­me a luz
dos olhos, que cegavam; a longa premeditação para o desfecho sinistro; o desespero supremo; a
queda final para o abismo, tudo se ergueu assombrosamente, das entranhas do meu  "eu", sob as
sugestões pesadas do ambiente malsinado que presenciou os últimos dias da minha existência de
homem! E ­ ó grandiosa faculdade, que tanto premia como pune a consciência, tais sejam as ações
desempenhadas que se hajam fotografado em suas suscetibilidades!  —  revi, sentindo­lhes os
efeitos, até mesmo as cenas derradeiras, isto é, os estertores macabros da morte aniquilando, antes
do justo prazo, aquele fardo que me fora confiado pela solicitude divina como sagrado depósito, para a recuperação honrosa de um passado ominoso, carregado de opróbrios! 
Desorientado, tomado de crise atordoante, perdi a memória do presente, embrenhado que
me deixei ficar pelos espinheiros do pretérito, como absorvido por infernal demência retrospectiva, e entrei a bramir, réprobo  que fora nas convulsões sinistras de antanho, a ulular  e gemer, a
blasfemar e chorar o pranto satânico daquele para quem se extinguiram a esperança de consolo, a
trégua para repousar e refletir!... E quem, porventura, ali ainda residisse, ou  pelos arredores
passasse então, e pudesse dilatar os dons psíquicos, percebendo a tragédia por mim rememorada, afirmaria que dezesseis anos depois de minha morte ali me pressentira ainda, entre gemidos e
atroamentos de incontidas dores! 
Quando voltei a mim, refeito do colapso maldito, Romeu  e Alceste, ternos e solícitos, ungiam minha fronte com os refrigerantes eflúvios de suas peregrinas potências magnéticas, os
quais me tonificavam a alma quais neblinas benfazejas sobre a planta ressequida e débil! 
O céu enluarado revelava que muitas horas eu assim passara, alucinado dentro do círculo 
ígneo do Passado, pois era já noite, as estrelas longínquas lucilavam, alindando o firmamento! 
Vi­me em repouso  sob o frescor dos arvoredos perfumosos, e os velhos ramados do 
vinhedo próximo disseram­me que me encontrava ainda na Quinta. Inaudito desgosto pungia­me o 
coração, enquanto as lágrimas deslizavam suavizando a opressão que me sufocava o seio. Roguei aos eminentes Guias que, por  mercê especial, me reconduzissem ao  Pavilhão 
Indiano, onde me consideraria seguro, a coberto de qualquer cilada da mente entrechocada pelos
passados despautérios. Portugal com suas recordações amarissimas, Lisboa, o velho Porto —  a
Terra enfim — tudo enoitava meu Espírito, predispondo­o à extração de sombras e sofrimentos
que eu  desejava, precisava esquecer!  Mas não fui atendido, a benefício de minha própria
reabilitação moral, asseverando­me os nobres mentores que algo eu  deveria realizar naqueles
mesmos ambientes, como testemunho das capacidades de renunciação e desprendimento adquiridas para incursões novas nos planos espirituais, os quais nem eu  nem tampouco meus
cômpares havíamos verdadeiramente atingido até então, não obstante a repugnância infligida pelas
atormentadoras recordações locais! 
Comovido até as lágrimas, emiti então ardente súplica, intimidado diante das pesadas
responsabilidades que me sobrecarregavam:
"— Nobres e queridos mentores, indicai­me então o que seja licito tentar a fim de mitigar 
as torturas morais que me intoxicam as energias, depauperando­me a vontade!  As lembranças
revivescidas, o ambiente, as desilusões, o olvido sentimental a que lançaram minha memória
aqueles em que mais confiei, são dissabores que me excruciam dolorosamente o coração,
superexcitando­me a sensibilidade a um grau  desolador!... Que eu saiba agir com acerto, algo 
praticar de meritório, bastante honroso para me permitir refrigério e consolo eficiente! Aconselhai­  me!..." 
Proferida que foi minha súplica, e enquanto as imagens formosas dos dois jovens se
adelgaçavam cada vez mais, rarefazendo­se sob os raios opalinos do crescente lunar que
romantizava a paisagem, ouvi que me respondiam com uma interrogação:
"— Quais foram as advertências de Roberto ao vosso grupo, na véspera da descida para
estas instruções?..." 
"—  Oh!... Ah!  Sim, lembro­me... Que procurássemos refrigerar as faculdades
convulsionadas pelo sofrimento... levando balsamizador auxílio a sofredores em mais críticas
situações... E nos reanimássemos ao  contacto dos bons e sinceros amigos, cujos corações,
iluminados pelas refulgências de lidimas virtudes, fossem fortes bastantes para aquecer­nos o frio 
do desânimo, indicando­nos os passos para roteiros prometedores..." 
"— Pois fazei isso... Roberto aconselhou como devia..." 
Reuni então todas as forças de que era capaz, impus serenidade aos sentidos abalados
pelas emoções, alcei energias mentais recordando as invocações ao Mestre Nazareno. e orei
também, fervoroso e humilde, a pedir socorro e proteção. A solidão em redor aterrava­me!  Contemplei o casario sinistro e arrepios de odiosas
emoções incentivaram em mim o desejo  de afastar­me, mas afastar­me para muito longe, onde
fosse possível esquecer a tragédia que, para mim, tudo aquilo recordava! Fustiguei os passos e
afastei­me... mas, ao transpor os umbrais malditos, compensadora surpresa aguardava­me,
resposta, certamente, à súplica feita ao Amigo Divino:
Ramiro de Guzman e Roberto de Canalejas ali estavam à minha espera! 
"— Louvado seja Deus!" — exclamei, num hausto de gratidão profunda. E confiante segui tão valiosa companhia, que me reconduziu piedosamente ao modesto 
domicílio terreno, retirando­se em seguida. Obedientes a impulsos de longas elucubrações, oriundos de antigos conselhos, advertências e exemplos dos nossos vigilantes e instrutores, organizamos uma como "associação 
de classe"  no intuito de estudarmos e realizarmos ações combativas às idéias de suicídio, às
inclinações mórbidas, detentoras de infernal predisposição que contaminava as diferentes classes
sociais, às quais, agora, poderíamos voltar, como entidades invisíveis que éramos. Eivada de duros percalços, todavia, se nos apresentou  a vultosa empresa... E não fora os eficientes socorros da
luminosa assistência que nos inspirava, certamente não lograríamos quaisquer resultados
satisfatórios. Quiséramos de início nos tornarmos vistos e compreensíveis pelos homens, acreditados
nos seus conceitos através de testemunhos, francos e minuciosos, que lhes forneceríamos, da
realidade do mundo em que vivíamos, fosse positivando nossa identidade ou  por varias outras
particularidades ao nosso alcance. Quiséramos com eles entreter relações amistosas e sérias, confabulações interessantes e elucidativas, intercâmbio permanente de noticiário, por nós
considerado da mais alta utilidade para todo o gênero humano, porquanto tendia a adverti­lo do 
perigo desconhecido que representava o suicídio para a sociedade terrena. Raros, porém, aqueles
que consentiram em aceitar nossas tão sinceras efusões, e, assim mesmo, quase todos estranhos
para nós, fora, mesmo, de Portugal! Comumente, no entanto, sucedia que, após grandes esforços e
fadigas no trabalho de criarmos oportunidades para o almejado momento; depois de consecutivos
dias de experiências exaustivas em torno de médiuns ansiosamente descobertos aqui e ali, porque
nossos versos ou  nossa prosa de além­túmulo se apresentassem algo desfigurados à falta da
puridade do estilo que nos fora habitual, como se não tivéssemos a vencer exaustivas dificuldades
apresentadas, não apenas por aqueles instrumentos como, principalmente, pela exigente e
impiedosa comitiva que geralmente os cerca, negavam­se a dar­nos crédito e repeliam­nos ríspida
e chocantemente, servindo­se para as críticas, com que nos recebiam, de zombarias e remoques
ofensivos, impróprios de corações educados, correndo conosco como a vagabundos e indesejáveis
do Astral, acoimando­nos de mistificadores e mal­intencionados!  Se tentávamos narrar as
surpreendentes peripécias deparadas pelo desvio a dentro do suicídio, ou  descrever a vida para
além fronteiras do túmulo, com todas as cores mais fortes do ineditismo, por entendermos dever de
solidariedade o ajudar os incautos a se precatarem, desviavam as atenções do plano espiritual sério 
e dignificante para se permitirem interrogar­nos sobre assuntos subalternos que só a eles próprios
diziam respeito e interessavam, e os quais ignorávamos completamente, vexando­nos a idéia de
solicitarmos auxílio de nossos nobres instrutores a fim de nos tornarmos agradáveis; preferiam
tratar de frivolidades e questões medíocres, pouco criteriosas muitas vezes, o que nos
decepcionava e entristecia, provocando freqüentemente nossas lágrimas, pois o tempo corria e
nada obtínhamos que registrasse algo de bom e meritório no severo livro da Consciência! 
Encontrávamo­nos, assim, em luta para a consecução desse desiderato, quando nos
assaltou  desejo ardente de nos transportarmos para o Brasil. Sabíamos ser o  país irmão campo 
vasto e fácil para os exercícios que trazíamos em mira, certamente muito menos preconceituoso do 
que o deparado em nossa Pátria. Repercutia ainda em nossas lembranças a formosa reunião a que
assistíramos certa noite, no interior de Minas Gerais, onde fôramos levados em falange por nossos
desvelados educadores do Instituto, e quiséramos, agora, experimentar falar com os brasileiros, a
ver se lograríamos algo de mais positivo. Como fazer, porém, para chegarmos até lá?!... Foram ainda aqueles incansáveis legionários que acudiram aos veementes brados de
socorro dirigidos por nossas mentes ansiosas, unidas em preces, à Caridade Sublime de que eram
dignos representantes. Encaminharam­nos ao local almejado transportando­nos facilmente sob sua
proteção, felicitando­nos com novas instruções em asilo seguro, sob a proteção do qual estaríamos
a coberto de surpresas desagradáveis. Tratava­se de benemérita instituição registrada no Mundo 
Espiritual como depositária de inspirações superiores, a servir  de padrão para as demais que se
quisessem expandir  em terras de Santa Cruz, dedicando­se aos estudos e práticas das doutrinas
secretas e aos feitos benemerentes próprios de veros iniciados cristãos.
Iniciamos, então, luta árdua e exaustiva. Todos os recursos, no entanto, de que podíamos dispor, tentamos a fim de aproveitarmos
médiuns brasileiros para o almo, sacrossanto projeto que tínhamos em mira!  Humildes, dóceis, afáveis, amorosos, sinceros no  desejo de servir, encontramos vários deles que se poderiam ter 
tornado cireneus de nossas aflições, suavizando nosso calvário de reparações e experiências. Tudo 
fizemos por utilizarmos suas faculdades para os trabalhos literários com que quiséramos
testemunhar a Deus nosso arrependimento por infringirmos Suas Leis. Mas, oh! A tortura do idioma! 
Por que os brasileiros, Deus do  Céu, descendentes nossos, nossa raça, mesmo nosso 
sangue, tanto se desviaram do nosso culto pela língua pátria?!... E por que ao menos os homens
não tratavam de se habilitar  num idioma tornado universal, que a nós, Espíritos, como  a eles, concedesse possibilidades de expansões brilhantes?!... O que, então, poderíamos produzir,
servindo­nos de médiuns como os há em terras do Brasil!... Lembrei­me, certa vez, das advertências de Roberto, prevenindo das dificuldades com
que esbarraria para me comunicar com os homens, e reconheci­as justas, verdadeiras! 
O desânimo invadia­me!  Profunda tristeza ameaçava renovar dissabores deprimentes, apoucando­me a alma, quando, uma noite em que nos achávamos reunidos, tratando tristemente do 
que tanto nos preocupava, em nosso abrigo da magna instituição brasileira, fomos surpreendidos
pela visita de Fernando, cuja vestidura carnal adormecera profundamente, em seu  domicílio, no 
velho  e amado Portugal, pois ia já alta a noite. Orara ele em nosso benefício ao recolher­se,
impressionado com nossas freqüentes aparições ao seu  peregrino dom mediúnico; e, certamente
impulsionado  por inspirações caritativas do plano etéreo, não tardou  a descobrir­nos a fim de
piedosamente nos servir ainda uma vez, prestativo como sempre. Estabeleceu­se então amistosa e
útil confabulação no silêncio propicio da magna agremiação. Convidou­nos ele a exercer com mais
freqüência o almo dever da oração, criando, através dele, meios de comunicação mais diretos com
nossos mentores, a fim de lhes recebermos com maior viveza a inspiração permitida no caso, pois
éramos como alunos que pusessem à prova ensinamentos já recebidos para se permitirem ensejos
novos no futuro. Reiterou oferecimentos para os intuitos que trazíamos, aflitos que nos reconheceu ante as
impossibilidades que se nos antolhavam. Concitou­nos a continuar dizendo algo ao mundo por seu 
intermédio, não nos dando por  vencidos ante as algaravias de adversários vezados ao hábito da
crítica insana, abandonando ao nosso dispor, como sempre, suas hialinas faculdades psíquicas, onde nos sentíamos refletir como num espelho! Do seu coração generoso soube extrair conselhos e
advertências, com o que nos mitigou a ansiedade do terror que nos oprimia à idéia de um fracasso nos penosos exames a que de direito nos víamos expostos. E acrescentou, comovido e sincero, desejoso de nos impelir à linha reta:
"—  Se em vez do  que vindes tentando improficuamente, procurásseis meios de vos
tornardes agentes da lídima Fraternidade, exercida com tanta eficiência pelo Divino Modelo do 
Amor, já vos encontraríeis vitoriosos, espalmando alegrias que longe estariam de vos manter  a
alma assim torva e encapelada. A Caridade, meus amigos —  permita­me que vo­lo recorde —, é a generosa redentora
daqueles que se desviaram da rota delineada pela Providência! Por isso mesmo o sábio Rabi da
Galiléia ofereceu­a como ensinamento supremo à Humanidade, que Ele sabia divorciada da Luz, por mais fácil e mais rápido caminho para a regeneração! 
Tempo já de pensardes com desprendimento na Divina Mensagem trazida por Jesus e de
saturardes os arcanos do ser com algumas gotas das suas essências imortais e incomparáveis! 
Reparando o rápido gesto que vos impeliu ao abismo, podereis praticá­la, a um mesmo 
tempo servindo à vossa e à causa alheia. Avultam nas camadas sociais terrenas, como nas invisíveis, problemas dolorosos a serem
solucionados, desvarios a serem moderados, infinitas modalidades de desgraças, desventuras
acérrimas a afligirem a Humanidade, requisitando concurso fraterno de cada coração generoso a
fim de serem ressarcidas, consoladas! 
Nos hospitais, nas prisões, nas residências humildes como na opulência dos palácios, por 
toda a parte encontram­se mentes enoitadas pela incompreensão e pelo desespero, corações
precipitados pelo ritmo violento  de provações e de problemas insolúveis neste século!  Em
qualquer recanto onde se haja ocultado a descrença, onde a paixão se instale e a desventura e o 
infortúnio se mesclem de revolta ou desânimo; onde a honra, a moral, o respeito próprio e alheio 
não forem consultados para a prática das ações, e onde, enfim, a vida se converteu em fonte de
animalidade e egoísmo, lavra a possibilidade de uma queda nos abismos de trevas onde vos
agitastes entre raivosas convulsões! 
Diligenciai por encontrar tais recantos: estão por aí, a cada passo!... Aconselhai o pecador 
a deter­se, em nome da vossa experiência!... e apontai­lhe, como  bálsamo para as amarguras, aquele mesmo que desdenhastes quando homem e hoje reconheceis como o único refrigério, a
única força capaz de soerguer a criatura da desgraça para enobrecê­la à mirífica luz da
conformidade nos prélios dignificantes de onde sairá vitoriosa, quaisquer que sejam as decepções
que a açoitem: o  Amor de Deus! A submissão ao Irrevogável!  Tornai­vos consoladores, exercitando agenciar a Beneficência, segredando sugestões animadoras e reconfortativas ao 
coração das mães aflitas, dos jovens desesperados pelas desilusões prematuras, das desgraçadas
mulheres atiradas ao  lodo, cujos infortúnios raramente encontram a compassividade alheia, as
quais sofrem insuladas entre os espinhos das próprias inconseqüências, desencorajadas de
reclamarem, para si também, a ternura paternal de Deus, a que, como as demais criaturas têm
sacrossantos direitos! São, todos estes, seres que estão a requisitar  alento protetor dos corações
sensíveis, bem­intencionados, quando mais não seja com a dádiva luminosa de uma prece! Pois
dai­lho, uma vez que também o recebestes de almas serviçais e ternas, quando vos encontráveis a bracejar entre bramidos de dor, nas trevas que vos surpreenderam após a tragédia em que vos
deixastes enredar! Contai­lhes o que vos sucedeu  e concitai­os a sofrerem todas as situações
deploráveis que os deprimem, com aquela paciência e aquele valor que vos faltaram, a fim de que
não venham a passar pelos transes dramáticos que vos endoideceram além das fronteiras da vida
objetiva! 
E quando, virtualmente, encontrardes médiuns cujas organizações vibratórias se
adaptarem às vossas, não vos preocupeis com os lauréis passados, que aureolaram o vosso nome
entre os humanos. Esta glória despenhou­se convosco nos pélagos do pretérito, que não soubestes
legitimamente honorificar!  Furtai­vos ao vaidoso prazer de identificar­vos ao fazerdes vossos
discursos ou  mensagens psicográficas através dos médiuns. Ainda que afirmando grandes
verdades, não seríeis tais como fostes, como até agora não o tendes sido! Vosso nome glorificou­se
de singular popularidade sobre a Terra, para que a Terra se conforme em vê­lo retornar à sua
sociedade filtrado pela mente humilde de médiuns obscuros!... Preferi, portanto, as manobras
santificantes da Caridade discreta e obscura, preferi!... E bem cedo reconhecereis, através das
trilhas que haveis de palmilhar, as florescências de muito doces alegrias..." 
Ouvimo­lo com muito agrado e interesse. Fernando, mesmo a falar  em corpo astral, enquanto a armadura carnal ressonava acolá, em Portugal, dir­se­ia inspirado por alguém de nossa
Colônia saudosa, interessado em nossos êxitos. Reconhecemos mesmo, por várias vezes, em seu 
fraseado vigoroso e terno a um mesmo tempo, as expressões dulçorosas de Teócrito, o acento 
paternal, singelo, amoroso, do  amigo distante que não nos esquecia... e as lágrimas rolaram de
nossos olhos, enquanto funda saudade nos transportava o coração... No dia imediato deliberamos visitar hospitais, enfermos em geral, deixando  para mais
adiante empreendimentos outros, relativos aos serviços de auxílios ao próximo, que nos fossem
sugeridos. Éramos ao todo trinta entidades, e entendemos dividir­nos em três grupos distintos, por 
imitarmos os métodos do nosso abrigo do mundo astral. Com surpresa notamos que, não só nos percebiam os pobres enfermos em seus leitos de
dores, como até naturalmente nos ouviam, graças à modorra em que os mantinha suspensos a
gravidade do mal que os afligia, a febre como a lassidão dos fluidos que os atavam ao tronco do 
fardo corporal. Tanto quanto se tornou possível, levamos a essas amarguradas almas enjauladas na
carne o lenitivo da nossa solidariedade, ora insuflando­lhes conformidade no presente e esperança
no futuro, ora procurando, por  todos os meios ao nosso alcance, minorar  as causas morais dos
muitos desgostos que percebíamos duplicando seus males. Belarmino, a quem a tuberculose impelira à deserção da vida objetiva, preferira dirigir­se
aos enfermos dessa categoria, a fim de segredar sugestões de paciência, esperança e bom ânimo 
aos que assim expungiam débitos embaraçosos de existências antigas ou  conseqüências
desastrosas de despautérios do próprio presente. Eu, que fora paupérrimo, que preferira desobrigar­ 
me do dever de arrastar a vida, até final, pelas ruinosas estradas da cegueira, dando­me à aventura
endiabrada de um suicídio, fui impelido, mau grado meu, pelo remorso, a procurar não só nos
hospitais aqueles que iam cegando a despeito de todos os recursos, mas também pelas ruas, pelas
estradas, pobres cegos e miseráveis, para lhes servir de conselheiro, murmurando aos seus pensamentos, como mo permitiam as dificuldades, o grande consolo da Moral Radiosa por mim
entrevista ao contacto dos eminentes amigos que me haviam assistido e confortado no  estágio 
hospitalar onde me asilaram os favores do Senhor  Supremo!  E muitas vezes compreendi que
obtinha êxitos, que corações tarjados pelo desânimo e pela desolação se reanimavam às minhas
sinceras e ardentes exortações telepáticas! João d'Azevedo, o desgraçado que se aviltara nas trevas
de inomináveis conseqüências espirituais, escravizando­se ao vício do jogo; que tudo sacrificara ao 
abominável domínio das cartas e da roleta: fortuna, saúde, dignidade, honra, e até a própria vida, como a paz espiritual, voltara, angustiado e oprimido, aos antros em que se prejudicara a fim de
sugerir advertências e conselhos prudentes a pobres dominados, como  ele o  fora, pelo letal
arrastamento, tudo tentando no intuito de afastar do abismo ao menos um só daqueles infelizes,
suplicando forças ao Alto, concurso dos mentores que ele sabia dedicados à ação de desviar do 
suicídio incautos que se deixam rodear de mil possibilidades desastrosas. Eram mais rudes ainda, porém, os testemunhos do desventurado Mário Sobral! 
Ulcerada pelos hábitos do passado, sua mentalidade arrastava­o para os lupanares, mau 
grado o sincero arrependimento por que se via possuído; exigia­lhe reparações dificultosas para
um Espírito, atividades heróicas que freqüentemente o levavam a violência de sofrimentos
indizíveis, provocando­lhe lágrimas escaldantes! Víamo­lo a querer demover, desesperadamente, a
juventude inconseqüente da contumácia nos maus princípios a que se ia escravizando, narrando a
uns e outros, através de discursos em locais inadequados, as próprias desventuras, no que não era
absolutamente acatado, porque, nos antros onde a perversão tem mantido o seu império letal, as
intuições de além­túmulo não se fazem sentidas, porquanto, as excitações dos sentidos
animalizados, viciados por tóxicos materiais como psíquicos, de repulsiva inferiorídade, tornam­se
barreiras que nenhuma entidade em suas condições será capaz de remover a fim de se fazer 
compreendida! 
Estendemos tais ensaios, após, às prisões, obtendo  êxito no sombrio silêncio das celas
onde se elaboravam remorsos, no trabalho  da meditação... E por fim invadíamos domicílios
particulares à cata de sofredores inclinados à possibilidade de suicídio, e que aceitassem nossas
advertências contrárias através de sugestões benévolas. Havia casos em que o único recurso que
nos ficava ao alcance era o sugerir a idéia da oração e da fé nos Poderes Supremos, induzindo 
aqueles a quem nos dirigíamos, geralmente mulheres, a mais amplo devotamento à crença que
possuíam. No entanto, sofríamos, porque o trabalho era demasiado rude, excessivamente vultoso 
para nossa fraqueza de penitentes cujo único mérito estava na sinceridade com que agíamos, na
boa­vontade para o trabalho reparador! 
Assim foi que viajamos pelo interior do Brasil procurando, quanto possível, prevenir 
contra a malfazeja tendência observada, tristemente, por nossos Guias, no caráter impulsivo dos
brasileiros, tendência que dava em resultado estatísticas inquietadoras nos casos de suicídios! 
Conhecemos, assim, as extensões desoladas do Nordeste inclemente, rendendo 
homenagens ao sertanejo heróico que, em lutas árduas e incessantes com a penúria da eterna
estiagem, não descria jamais nem do seu Deus nem do futuro, esperançado sempre no advento de dias melhores, de uma Pátria compensadora que, em verdade, só encontraria no seio da
Imortalidade! 
Nas caravanas altamente instrutivas a que nos levavam, grandes lições recebemos então, as quais mui profundamente calaram em nossos corações, iluminando nossas mentes com novas e
fecundas apreciações filosóficas. Representantes da direção espiritual das terras de Santa Cruz, como o grande, o boníssimo Bezerra de Menezes, e o mavioso poeta do Senhor — Bittencourt
Sampaio — lecionavam para nós outros, ao lado de nossos mentores, exemplos fecundos colhidos
na vida cotidiana de muitos brasileiros, sobre os quais choramos de pena e arrependimento, pois
tivemos ocasião de examinar  com eles modalidades de desgraças e sofrimentos comparados aos
quais aqueles que nos haviam levado ao  desespero não se apresentariam senão como truanices
próprias de boêmios piegas... No entanto, nordestinos, amazônicos e mesmo nativos do centro 
incivilizado do  país tudo suportavam resignadamente, até mesmo a indiferença de seus
compatriotas mais felizes, com o pensamento vigoroso daquele que sabe crer, que sabe esperar! 
Entrementes, víamos com desgosto que Mário Sobral distanciava­se a pouco e pouco das
possibilidades de outro futuro imediato que não aquele por ele mesmo escolhido, único, aliás, para
que se sentia impulsionado: o retorno imediato à encarnação, para resgates pesados, em meio 
familiar  afinado com seu  estado mental!  Mário desatendia freqüentemente ao chamamento do 
dever para as reuniões e caravanas elucidativas presididas pelos assistentes; faltava às expedições
piedosas de visitação aos sofredores, olvidando deveres sagrados que conviria cumprisse a bem da
reabilitação própria! 
Dir­se­ia que, ao contacto da sociedade terrena, se deixava brutalizar pelas antigas
atrações mundanas, esquecido dos veementes protestos de obediência durante a retenção no 
Departamento Hospitalar. Sentia­se arrastado para os locais degradantes que fizeram suas
preferências de outrora; e, a pretexto de tentar converter transviados e inconscientes à moderação 
dos costumes, comprometia­se grandemente diante dos Guias observadores, afinando­se com o 
passado a tal ponto que, em torno dele, pressentíamos a possibilidade de um renascimento nas
baixas esferas do vício! Já várias vezes fora advertido piedosamente, por Alceste e Romeu, que
procuravam convencê­lo dos perigos daquela predileção para exercer atividades reparadoras.
Infelizmente, porém, a paixão por Eulina, que o  desgraçara na Terra e perturbara no 
Invisível, soldava­o ao presunçoso desejo de, em sua memória, procurar reerguer do lodaçal dos
vícios, prematuramente, outras tantas criaturas decaídas do pedestal do Dever! 
Nosso estágio na Terra era um como exame para ascendência a novos cursos. Tínhamos
liberdade de ação, conquanto não estivéssemos ao desamparo e fosse muito relativa à liberdade
com que contávamos. Nós outros vínhamos obtendo aprovação nos exames. Mário, porém, incidia nas causas passíveis de reprovação.

Memórias de um SuicidaOnde histórias criam vida. Descubra agora