Voltamos à Terra muitas vezes, permanecendo em suas sociedades, com pequenos
intervalos, desde os primórdios do ano de 1906. Múltiplos deveres ali nos chamavam. Era o campo
vasto de nossas experimentações mais eficientes, porquanto, tendo de reviver ainda muitas vezes
em suas arenas, tornavase de grande utilidade o exercitarmos entre nossos irmãos de Humanidade
os conhecimentos gradativamente adquiridos nos serviços da Espiritualidade. Assim foi que, sob
os cuidados de Aníbal de Silas, mas tendo por assistente prático a experiência secular de Souria Omar, dilatamos as lides de beneficência iniciada sob a direção de Teócrito, multiplicando
esforços para servir a corações sofredores sob as doces inspirações das lições messiânicas, quer os
deparássemos ainda grilhetados nos planos da matéria, quer em lutas permanentes no Invisível. Servimos nos postos de emergência da Colônia a que pertencíamos, como no Hospital Maria de
Nazaré e suas filiais; integramos caravanas de socorros a infelizes suicidas perdidos nas solidões
do Invisível inferior como nos abismos terrenos, acossados por falanges obsessoras; seguimos no
rastro de nossos mestres da Vigilância, aprendendo com eles a caça a chefes temíveis de falanges
mistificadoras, perseguidores de míseros mortais, aos quais induziam muitas vezes ao suicídio;
visitávamos freqüentemente reuniões organizadas por discípulos de Allan Kardec, com eles
colaborando tanto quanto eles próprios permitiam; acudimos a imperativos de muitos sofredores
alheios às idéias espiríticas, mas verdadeiramente carecedores de socorro; devassamos prisões e
hospitais; descobríamos desolados sertões brasileiros e africanos, cogitando de fortalecer o ânimo
e prover socorro material a desgraçados prisioneiros de um mau passado espiritual, agora às voltas
com testemunhos recuperadores, em envoltórios carnais desfigurados pela lepra, amesquinhados
pela demência ou assinalados pela mutilação; e nos atrevíamos até pelos domicílios dos grandes da
Terra, onde, também, possibilidades de dores intensas e de graves ocasiões para o pecado do
suicídio enxameavam, não obstante as factícias glórias de que se cercavam! E por toda parte onde
existissem lágrimas a enxugar, corações exaustos a reanimar, almas vacilantes e desfalecidas pelos
infortúnios a aconselhar, Aníbal levavanos a fim de nos guiar aos ensinamentos do Mestre
Modelar, com os quais aprenderíamos a exercer, por nossa vez, o apostolado sublime da
Fraternidade!
Ostensivas através da colaboração mediúnica organizada para fins superiores, ocultas e
obscuras através de ações diversas, impossíveis de serem narradas na íntegra ao leitor, nossas
atividades multiplicaramse durante muitos anos nos diferentes setores da Caridade; e, se mais de
uma vez indóceis aflições nos surpreenderam ao contacto das angústias alheias, no entanto, mais
vezes ainda obtivemos doces consolações ao sentirmos haver nossa boavontade contribuído para
que uma e outra lágrima fosse enxuta, para que um e outro desgraçado acalentasse as próprias
ânsias às sugestões santas da Esperança, um e outro coração se aquecesse ao lume sagrado do
Amor e da Fé que igualmente aprendíamos a conceituar!
A cada lição do Evangelho do Senhor, esplanada pelo jovem catedrático, a cada exemplo
apreciado do Mestre Inesquecível, seguiamse testemunhos nossos, na prática entre os humanos e
os desventurados sofredores, assim como análises através de temas que deveríamos desenvolver e
apresentar a uma junta examinadora, a qual verificaria nosso aproveitamento e compreensão da
matéria. Freqüentemente, pois, produzíamos peças vazadas em temas elevados e inspirados no
Evangelho, na Moral como na Ciência, romances, poemas, noticiários, etc., etc. Uma vez
aprovados, estes trabalhos poderiam ser por nós ditados ou revelados aos homens, porquanto
instrutivos e educativos, convenientes, por isso mesmo, à sua regeneração; e o faríamos através da
operosidade mediúnica, subordinados a uma filosofia, ou servindonos de sugestões e inspirações a
qualquer mentalidade séria capaz de captarnos as idéias em torno de assuntos moralizadores ou
instrutivos. E quando reprovados repetiríamos a experiência até concordar plenamente o tema com
a Verdade que esposávamos e também com as expressões da Arte, de que não poderíamos
prescindir.
Os dias consagrados a tais exames eram festivos para todo o Burgo da Esperança. Legítimos certames de uma Arte Sagrada — a do Bem —, o encanto que de tais reuniões se
destacava ultrapassava todas as concepções de beleza que antes poderíamos ter! Esforçavamse as
vigilantes na decoração dos ambientes, na qual entravam jogos e efeitos de luzes transcendentes
indescritíveis em linguagem humana, enquanto luminares de nossa Colônia, como Teócrito, Ramiro de Guzman e Aníbal de Silas se revelavam artistas portadores de dons superiores, quer na
literatura como na música e oratória descritiva, isto é, na exposição mental, através de imagens, das produções próprias. De outras esferas vizinhas desciam caravanas fraternas a emprestarem
brilho artístico e confortativo às nossas experimentações. Nomes que na Terra se pronunciam com
respeito e admiração acorriam bondosamente a reanimarnos para o progresso, ativando em nossos
corações humílimos o desejo de prosseguir nas pelejas promissoras. Não faltaram mesmo em tais
assembléias o estimulo genial de vultos como Victor Hugo e Frédéric Chopin —, este último
considerado suicida na Pátria Espiritual, dado o descaso com que se ativera relativamente à própria
saúde corporal; ambos, como muitos outros, cujos nomes surpreenderiam igualmente o leitor,
exprimiam a magia dos seus pensamentos, dilatados pelas aquisições de longo período na
Espiritualidade, através de criações intraduzíveis para as apreciações humanas do momento!
Tivemos, assim, ocasião de ouvir o grande compositor que viveu na Terra mais de uma
experiência carnal, sempre consagrando à Arte ou às BelasLetras as suas melhores energias
mentais, traduzir sua música em imagens e narrações, numa variedade atordoadora de temas, enquanto que o gênio de Hugo mostrava em lições inapreciáveis de beleza e instrução a realidade
mental de suas criações literárias! O poder criador desta mentalidade, a quem a Terra ainda não
esqueceu e que a ela voltará ainda a serviço da Verdade, servindoa sob prismas surpreendentes, verdadeira missão artística a serviço d’Aquele que é a Suprema Beleza, deslumbrava nossa
sensibilidade até às lágrimas, atraindonos para a adoração ao Ser Divino porventura com idêntico
fervor, idêntica atração com que a faziam Aníbal de Silas e Epaminondas de Vigo valendose do
Evangelho da Redenção e da Ciência. Era o pensamento do grande Hugo vivificado pela ação da
realidade, concretizado de forma a podermos conhecer devidamente as nuanças primorosas das
suas vibrações emotivas transubstanciadas em assuntos encantadores da epopéia do Espírito
através de migrações terrenas e estágios no Invisível, o que equivale dizer que também ele
colaborava na obra de nossa reeducação. Surpreendeunos então a notícia, ali ventilada, de que o gênio de Victor Hugo se
confirmava na Terra desde muitos séculos, partindo da Grécia para a Itália e a França, sempre
deixando após si um rastro luminoso de cultura superior e de Arte. Seu Espírito, pois, em várias
idades diferentes tem sido venerado por muitas gerações, cabendolhe positivamente a glória de
que se cerca em planos intelectuais. Quanto ao outro, Chopin, alma insatisfeita, que somente agora
compreendeu que com o humilde carpinteiro de Nazaré encontrará o segredo dos sublimes ideais
que a saciarão, em miríficas expansões de música arrebatadora, transportada da magia dos sons
para o deslumbramento da expressão real, deunos o dramático poema das suas migrações terrenas, uma delas anterior mesmo ao advento do Grande Emissário, mas já a serviço da Arte, cultivando
as BelasLetras como poeta inesquecível, que viveu em pleno império da força, na Roma dos
Césares!
Quanto a nós outros, os ensaios que deveríamos levar a efeito seriam igualmente
traduzindo nossas criações mentais em imagens e cenas, como faziam nossos mentores com suas
lições e os visitantes com sua gentileza. Para tal desiderato havia o concurso de técnicos
incumbidos do melindroso serviço, equipe de eminentes cientistas, senhores do segredo da
captação do pensamento para os aparelhamentos transcendentes a que nos temos referido. Alguns
médiuns da confiança de nosso Instituto eram atraídos a essas reuniões, sob a tutela de seus
Guardiães, e aí entreviam dificultosamente o que para nós outros se revelava com todo o
esplendor! Seria para eles um como estímulo ao trabalho mediúnico a que se comprometeram ao
reencarnar, instrução inerente ao programa da reeducação conveniente ao seu progresso de
intérpretes do Mundo Invisível e meio menos dificultoso de preparálos para desempenhos que
viviam em nossas cogitações de aprendizes. Então, empolgavanos santo entusiasmo por julgarmos
fácil tarefa o inteirar os homens das novidades de que nos íamos apossando, certos de que seriam
imediatamente aceitos nossos esforços para bem informar. Não contávamos, porém, com o empeço
desconcertante que é o pouco desejo existente no coração dos médiuns de sinceramente se
ativarem em torno dos ideais cristãos, que eles julgam defender quando permanecem incapazes
para uma só renúncia, avessos aos altos estudos a que será obrigado todo aquele que se julgar
iniciado, amornados no desamor à redenção de si próprios e de seus semelhantes, aos quais têm o
dever sagrado de defender da ignorância relativa às coisas espirituais, uma vez dotados, como são, de faculdades para tanto apropriadas; e quando, desarmonizados consigo próprios e as esferas
iluminadas, traduzem efeitos mentais, conceitos pessoais, convencidos de que interpretam o
pensamento dos Espíritos, quando a verdade muitas vezes manda que se afirme que nada fizeram a
fim de merecer o alto mandato, nem mesmo a moralização da própria mente! E é com a mais
profunda tristeza que assinalamos nestas páginas, escritas com o nosso mais ardente desejo de
servir, o desgosto de quantos se interessam pelo bem da Humanidade, em Alémtúmulo, ao
observar a falta de vigilância mantida pelos médiuns em geral, seus parcos desejos de se
desprenderem dos atrativos como das ociosidades imanentes ao plano material, esquivandose ao
dever urgente de se despojarem de muitas atitudes nocivas ao mandato sublime da mediunidade, das quais a voz dulcíssima do Bom Pastor ainda não conseguiu desprendêlos! Valemonos, pois, destas divagações, para ressaltar o fato de que eles mesmos, os médiuns, infelizmente dificultam a
ação dos Espíritos instrutores do planeta, porquanto muitos aparelhos mediúnicos excelentes em
suas disposições físicopsíquicas resvalam para o ostracismo e a improdutividade de coisas sérias, enquanto em torno se acumula o serviço do Senhor por falta de bons obreiros do plano terreno e a
Humanidade braceja nas trevas, em pleno século das luzes, prosseguindo desorientada à falta do
pão espiritual, faminta da luz do Conhecimento, sedenta daquela Água Viva que lhe desalteraria a
alma desconsolada e entristecida pelo acúmulo de desgraças!
Dois acontecimentos de alta monta vieram modificar soberanamente certos pormenores
de uma situação que se afigurava indecisa e indefinível, conquanto um espaço de dois anos
distanciasse a realização de um para outro. Fora por um daqueles dias festivos franqueados às visitações. Na véspera, preveniramnos de que os internos receberiam visitas dos seus "mortos"
queridos, isto é, membros da família, entes caros já desencarnados. Alheados, porém, do
movimento, supusemolo apenas afeto aos mais antigos do que nós no aprendizado do Instituto, e, por isso, limitamonos a esperar que algum dia tocaria também a nossa vez de rever os nossos. Bondosas e caritativas, como toda mulher que tem a educação moral inspirada no ideal
divino, as damas vigilantes dispuseram os parques para a grande recepção que se verificaria no dia
imediato, utilizando toda a habilidade de que eram capazes; e, com arte e talento, criaram recantos
dulcíssimos para nossa sensibilidade, ambientes íntimos encantadores por nos falarem às
recordações mais queridas da infância como da juventude, quando as desesperanças da existência
ainda não nos haviam dado a sorver o cálice fatal das amarguras. E, criandoos, a nós outros os
ofereciam como agradáveis surpresas, a fim de recebermos nossa parentela e amigos, à proporção
que chegavam. Criados ao ar livre, isto é, disseminados pelos parques e jardins, de que a cidade
era pródiga; à beira dos lagos serenos, sobre as encostas das colinas graciosas que pareciam lucilar,
suavemente irisadas sob o reflexo indefinível de revérberos multicores, tais recantos não eram
perduráveis, existindo temporariamente, apenas enquanto durassem nossas necessidades de
compreensão e consolo. Muitos deles traduziam o lar paterno, aquele recinto sacrossanto em que
se passara nossa infância e onde os primeiros anseios da vida, as primeiras esperanças haviam
florescido, e o qual tão saudoso e ardentemente recordado e por aquele que apenas trevas e
desespero deparou ao se transportar para o Além. Outros lembrariam cenários edificados sob as doçuras da afeição conjugal: um recanto de sala, uma varanda florida, ao passo que mais alguns
mostravam certa paisagem mais grata da terra natal: uma ponte bucólica, um trecho sugestivo de
praia, uma alameda conhecida, por onde muitas vezes palmilhamos pelo braço protetor de nossas
mães... E foi, pois, no próprio cenário que figurava a casa onde nasci, que tive a inefável
satisfação de rever minha mãe querida, á qual ainda na infância eu vira morrer e sepultar, de lhe
beijar as mãos como outrora, ao passo que me atirava, soluçando, aos braços protetores de meu
velho pai, aliviando o coração de uma saudade que jamais se esfumara do meu coração, torturado
sempre pela incompreensão e mil razões adversas!
Revi minha esposa, a quem a morte arrebatara de meu destino em pleno sonho de um
matrimônio venturoso, e a qual eu desde muito poderia ter reencontrado no Invisível, não fora a
rebeldia do meu gesto nefasto!
De todos eles recebi carinhosas advertências, conselhos preciosos, testemunhos de afeto
perene, reparando que nenhum me pedia contas do desbarato em que as paixões e as desditas me
haviam transformado a vida! E recebios como se estivéssemos em nosso antigo lar terreno, os
mesmos móveis, a mesma decoração interna, a mesma disposição do ambiente que eu tão bem
conhecera... porque Ritinha de Cássia e Doris Mary tudo haviam preparado para que se
perpetuassem em meu coração as impressões sacrossantas dos veros laços de família! Ambas
asseveraram mais tarde que nós mesmos, sem o percebermos, fornecíamos elementos para que
tudo fosse realizado assim, pois que, nossos mestres, que, em sendo instrutores e educadores, eram
também lídimos agentes da Caridade, examinando nossos pensamentos e impressões mentais mais
caras, descobriam o que de melhor nos calaria no ânimo e lhes transmitiam através de mapas e
visões equivalentes, a fim de que a reprodução fosse a mais consoladora possível, porquanto
necessitaríamos de toda a serenidade, do maior estado de placidez mental possível ao nosso caso, para que muito aproveitássemos da aprendizagem a fazer! Para maior surpresa, nossos entes caros
acrescentaram que nada podiam fazer em nosso benefício devido à situação melindrosa que
criáramos com o suicídio, situação equivalente à do sentenciado terrestre, a quem as leis vigentes
do país impõem método de vida à parte dos demais cidadãos. Muitas lágrimas derramei então, escondido meu rosto envergonhado no seio compassivo de minha mãe, cujos conselhos salutares
reanimaram minhas forças, reavivando em meu ser a esperança de dias menos acres para a
consciência!
E sob os cortinados olentes dos arvoredos, reunidos todos sob os dosséis floridos que
lembravam os pomares e os quintais da velha casa em que vivi, embalado pela amorosa proteção
de meus inesquecíveis pais terrenos, demoravame muitas vezes em doces assembléias com muitos
membros de minha família que, como eu, eram falecidos! Por sua vez, meus companheiros de
infortúnio tinham direitos idênticos, não havendo ali favores especiais nem predileções, senão
rigorosa justiça vazada nas leis de atração e afinidade. E, finalmente, Belarmino de Queiroz e Sousa pôde encontrar sua mãe, a quem amara com
toda as forças do seu coração, recebendo sua visita inesperada naquela mesma tarde. A este, no
entanto, participara a senhora de Queiroz e Sousa que dor profunda e inconsolável a atingira com a surpresa de vêlo sucumbir ao suicídio, afetandoselhe a saúde irremediavelmente, sucumbindo
ela também, meio ano depois, sem se resignar jamais à desventura de perdêlo tão tragicamente!
Que as mais angustiosas decepções colheramna depois do trespasse, pois que, julgando encontrar
o supremo esquecimento no seio da Natureza, se deparava viva após a morte e ralada de desgostos, visto não possuir quaisquer capacidades mentais e espirituais que a pudessem recomendar às
regiões felizes ou consoladoras do Invisível. Que em vão o procurara pelas sombrias regiões por
onde transitara acossada por funestas confusões, debatendose entre os surpreendentes efeitos do
orgulho e do egoísmo que lhe assinalaram a personalidade e o arrependimento por haver renegado
as dúlcidas efusões do amor a Deus pelo domínio exclusivo da Ciência Materialista, pois que lhe
asseverava a consciência caberlhe grande dose de responsabilidade pelo desastre do filho, uma
vez que fora ela, mãe descrente dos ideais divinos, mãe imprevidente e orgulhosa cujas aspirações
não gravitavam além dos gozos e das paixões mundanas, que lhe modelara o caráter, dandolhe a
beber do mesmo vírus mental que a ambos arrastara a tão deploráveis quedas morais! Mas, chegada finalmente à razão, graças aos imperativos da dor educadora, trabalhara, lutara, sofrera
resignadamente no Espaço durante vários anos, suplicara, sinceramente convertida à verdade
existente na idéia de Deus e suas Leis, e, assim, levado em conta seu ardente desejo de emenda e
progresso, recebera concessão para rever o filho, dádiva misericordiosa do Ser Supremo, agora
reconhecido com respeito e compunção!
E Doris Mary e Rita de Cássia à mãe e ao filho forneceram o blandicioso conforto de um
gratissimo e saudoso ambiente: a velha biblioteca da mansão dos de Queiroz e Sousa; a lareira
crepitando alegremente; a cadeira de balanço da velha senhora;apequena poltrona de Belarmino
junto ao regaço de sua mãe, como ao tempo da infância... O segundo acontecimento que, a par do primeiro, conquanto vindo dois anos mais tarde, marcou roteiro decisivo para meu Espírito, foi a ciência que tive de mim mesmo, rebuscando no
grande compêndio de minhalma as lembranças do pretérito, as quais há muito jaziam
covardemente adormecidas devido à mávontade da consciência em passála em revista integral, meticulosa. Assim foi que, alguns dias depois da primeira aula de Ciências ministrada por
Epaminondas de Vigo, tocou a minha vez de extrair dos arcanos profundos do ser a memória das
encarnações passadas do meu Espírito em lutas pela conquista do progresso, memória que meu
orgulho repudiava, confessandose apavorado com as perspectivas que sentia palpitando em
derredor. Epaminondas, porém, incisivo, autoritário, não concedeu moratória no momento exato a
mim destinado. Senteime, pois, à cadeira que se nos afigurava o venerável tribunal da Suprema
Justiça, naqueles momentos terríveis em que enfrentávamos o lúcido instrutor. Silêncio absoluto
circundava o recinto, como sempre. Apenas as vibrações mentais de Epaminondas, traduzidas em
vocabulário escorreito, enchiam a atmosfera respeitável onde sacrossantos mistérios da Ciência
Celeste se desvendavam para nos iluminar o Espírito ensombrado de ignorância. Não ignoravam
os circunstantes a espécie de indivíduo por mim acabada de exibir em Portugal, às voltas com um
avezado orgulho que me corrompera o caráter, porque tão ruim bagagem moral me rondava ainda
os passos, fazendome corte acintosa, não obstante a humílima condição a que me via reduzido. O
que, porém, talvez nem todos soubessem, porque se tratava de fato que o mesmo orgulho raramente me permitia esclarecer, era que eu fora paupérrimo de fortuna, lutando sempre
asperamente contra a adversidade de uma pobreza desorientadora, a qual não só não me dava
quartel como até desafiava quaisquer recursos, por meus raciocínios aventados, no intuito de
suavizála; e que, para fugir à calamidade da cegueira que sobre meus olhos, sem forças de
resistência, estendia denso véu de sombras, reduzindome à indigência mais desapiedada que, para
meu conceito, o mundo poderia abrigar, fora que me precipitara na satânica aventura cujas
dolorosas conseqüências me condenavam às circunstâncias que todos conheciam. Delicadamente os adjuntos prepararamme, tal como conviria ao réu que, frente a frente
com o tribunal da Consciência, vaise examinar, julgando a si próprio sem as atenuantes
acomodatícias dos conceitos e subterfúgios humanos, porque o que ele vai ver é o que ele próprio
deixou registrado nos arquivos vibratórios de sua afina através de cada uma das ações que andou
praticando durante o existir de Espírito, encarnado ou não encarnado. Rodearamme os mestres, desferindo sobre as potencialidades do meu ser inferiorizado
poderosos recursos fluídicos, no intuito caridoso de auxiliar. Era como se fossem médicos que me
operassem a alma, pondo a descoberto sua anatomia para que eu mesmo a examinasse, descobrindo a origem dos males ferrenhos que me perseguiam, sem mais acusar a Providência!
Intuições de angústia auguravam desesperos em meu seio. Eu me teria certamente
banhado em suores gelados, se fora ainda carnal o meu envoltório. Todavia, a sensação penosa do
pavor acovardoume e eu quis resistir, prevendo a vergonhosa situação que me esperava frente aos
circunstantes, e, derramando pranto insopitável, pedi súplice, de molde a ser ouvido apenas por
Epaminondas:
"— Senhor, por piedade! Compadeceivos de mim!"
"— Não vaciles! — respondeu naquele tom imperioso que lhe era peculiar, enquanto suas
palavras ressoavam pelo anfiteatro, ouvidas por todos — A fim de operarmos a renovação interior
que levará nossas almas à redenção precisaremos apoiarnos na mais viva coragem! Sem decisão,
sem heroísmo, sem valor não conseguiremos progredir, não marcharemos para a glória! Lembrate
de que os pusilânimes são punidos com a própria inferioridade em que se deixam permanecer, com
a degradação de que se cercam! Lembrate de que é a tua reabilitação que se impõe todas as vezes
que a dor se acerca de ti, sempre que o sofrimento faz vibrar doridamente as fibras de teu ser! Sê
forte, pois, porque o Sumo Criador premia as almas valorosas com a satisfação da Vitória!"
Conformeime ao influxo daquela mentalidade vigorosa, invocando intimamente o auxílio
maternal de Maria de Nazaré, a quem eu aprendera a venerar desde que ingressara no caridoso
Instituto, recordandome de que sob seus amorosos cuidados era que nos asiláramos. Então, harmonizando minhas próprias vontades com as dos tutelares que me dirigiam, não
sei positivamente descrever o que se desenrolou em meu ser! Vi Epaminondas e a equipe de seus
auxiliares acercaremse de mim e me envolverem em estranhos jactos de luz. Invencível delíquio
tonteoume o cérebro como se das potências sagradas do meu "eu" repercussões excepcionais se
levantassem, erguendo dos repositórios da alma, para se reanimarem em minha presença, toda a
longa série de vidas planetárias que eu tivera no uso da responsabilidade e do livrearbítrio!
Necessariamente, as demoras no Invisível entre uma e outra reencarnação acompanharam os dramas imensos passados na Terra, inseparáveis que são tais estágios das conseqüências
acarretadas pelos atos praticados no setor terreno. Tive a impressão extraordinária e magnífica de
me achar diante do meu próprio "eu" — ou do meu duplo —, se assim me posso expressar, tal
como à frente de um espelho passasse a assistir ao que em minha própria memória se ia sucedendo
em revivescência espantosa! A palavra irresistível do instrutor repercutiu, qual clarinada
dominadora, pelo interior do meu Espírito apaziguado pela vontade de obedecer, e invadiu todos
os escaninhos de minha Consciência, qual a irrupção de vagas que saltassem diques e se
projetassem num impulso incoercível, inundando região indefensa:
"— Eu to ordeno, Alma criada para a glória da eleição no Seio Divino: Volta ao ponto de
partida e estuda no livro que trazes dentro de ti mesma as lições que as experiências
proporcionam! E contigo mesma aprende o cumprimento do Dever e o respeito à Lei d’Aquele que
te criou! Traça, depois, tu mesma, os programas de resgates e edificação que te convêm, a fim de
que a ti mesma devas a glória que edificares para alçares vôos redentores até o Seio Eterno de
onde partiste!..."
Lentamente, sentime envolver por singular entorpecimento, como se tudo ao meu redor
rodopiasse vertiginosamente... Sombras espessas, quais nuvens ameaçadoras, circundavamme a
fronte... Meu pensamento afastouse do anfiteatro, de Cidade Esperança, da Colônia Correcional...
Já não distinguia Epaminondas, sequer o conhecia, e nem me recordava de meus companheiros de
infortúnio... Todavia, eu não adormecera! Continuava lúcido e raciocinava, refletia, pensava, agia, o que indica que me encontrava na posse absoluta de mim mesmo... embora retrocedesse na escala
das recordações acumuladas durante os séculos!... Perdi, pois, a lembrança do presente e
mergulhei a Consciência no Passado... Então, sentime vivendo no ano trinta e três da era cristã! Eu, porém, não recordava,
simplesmente: — eu vivia essa época, estava nela como realmente estive!
A velha cidade santa dos judeus — Jerusalém — vivia horas febricitantes nessa manhã
ensolarada e quente. Encontreime possuído de alegria satânica, indo e vindo pelas ruas
regurgitantes de forasteiros, promovendo arruaças, soprando intrigas, derramando boatos
inquietadores, incentivando desordens, pois estávamos no grande dia do Calvário e sabiase que
um certo revolucionário, por nome Jesus de Nazaré, fora condenado à morte na cruz pelas
autoridades de César, com mais dois outros réus. Corri ao Pretório, sabendo que dali sairia para o
patíbulo o sentenciado de quem tanto os judeus maldiziam. Eu era miserável, pobre e mau. Devia
favores a muitos judeus de Jerusalém. Comia sobejos de suas mesas. Vestiame dos trapos que me
davam. Diante do Pretório, portanto, ovacionei, frenético, a figura hirsuta e torpe de Barrabás, ao
passo que, à suprema tentativa do Procônsul para livrar o carpinteiro nazareno, pedi a execução
deste em estertores de demônio enfurecido, pois apraziame assistir a tragédias, embebedarme no
sangue alheio, contemplar a desgraça ferindo indefesos e inocentes, aos quais desprezava, considerandoos pusilânimes... E presenciar aquele delicado jovem, tão belo quanto modesto, galgando pacientemente a encosta pedregosa sob a ardência inclemente do Sol, madeiro pesado
aos ombros, atingido pelos açoites dos rudes soldados de Roma contrariados ante o dever de se exporem a subida tão árdua em pleno calor do meiodia, era espetáculo que me saberia bem à
maldade do caráter e a que, de qualquer forma, não poderia deixar de assistir!... Contudo, revendome nesse passado, a mesma Consciência, que guardara este
acontecimento, entrou a repudiálo, acusandose violentamente. Como que suores de pavor e
agonia empastaramme a fronte alucinada pelo remorso e bradei enlouquecido, sentindo que meu
grito ecoava por todos os recôncavos do meu Espírito:
"— Oh! Jesus Nazareno! Meu Salvador e meu Mestre! Não fui eu, Senhor! Eu estava
louco! Eu estava louco! Não me reconheço mais como inimigo Teu! Perdão! Perdão! Jesus!..."
Pranto rescaldante incendiou minhalma e recalcitrei, afastando a lembrança amargosa do
pretérito. Mas, vigilante, bradou em seguida o catedrático ilustre, zeloso do progresso do seu
pupilo:
"— Avante, ó Alma, criação divina! Prossegue sem esmorecimentos, que da leitura que
ora fazes em ti mesma será preciso que saias convertida ao serviço desse Mestre que ontem
apedrejaste!"
Eu não me poderia furtar ao impulso vibratório que me arrojava na sondagem desse
passado remoto, porque ali estavam, com suas vontades conjugadas piedosamente em meu favor, Epaminondas e seus auxiliares; e prossegui, então, na recapitulação deprimente. Eisme à frente do Pretório, em atitude hostil. Não houve insulto que minha palavra felina
deixasse de verberar contra o Nazareno. Feroz na minha pertinácia, acompanheio na jornada
dolorosa gritando apupos e chalaças soezes; e confesso que só não o agredi a pedradas ou mesmo à
força do meu braço assassino, por ser severo o policiamento em torno dele. É que eu me sentia
inferior e mesquinho em toda parte onde me levavam as aventuras. Nutria inveja e ódio a tudo o
que soubesse ou considerasse superior a mim! Feio, hirsuto, ignóbil, mutilado, pois faltavame um
braço, degenerado, ambicioso, de meu coração destilava o vírus da maldade. Eu maldizia e
perseguia tudo, tudo o que reconhecesse belo e nobre, cônscio da minha impossibilidade de
alcançálo!
Integrando o cortejo extenso, entrei a desrespeitar com difamações vis e sarcasmos
infames a sua Mãe sofredora e humilde, anjo condutor de ternuras inenarráveis para os homens
degredados nos sofrimentos terrenos, já então, a mesma Maria, piedosa e consoladora, que agora
me albergava maternalmente, com solicitudes celestes! E depois, em subseqüências sinistras e
aterradoras, eisme a continuar o abominável papel de algoz denunciando cristãos ao Sinédrio, perseguindo, espionando, flagelando quanto podia por minha conta própria; apedrejando Estevão, misturandome à turba sanhuda do poviléu ignaro; atraiçoando os "santos do Senhor" pelo simples
prazer de praticar o mal, pois não me assistiam nem mesmo os zelos que impeliam a raça hebraica
à suposição de que defendia um patrimônio nacional quando tentava exterminar os cristãos: eu não
era filho de Israel! Viera de longe, incrédulo e aventureiro, da Gália distante, foragido de minha
tribo, onde fora condenado à morte pelo duplo crime de traição à Pátria e homicídio, tendo
aportado na Judéia casualmente, nos últimos meses do apostolado do Salvador!
Forame, pois, concedida a oportunidade máxima de regeneração e eu a rejeitara,
insurgindome contra a "Luz que brilhou no meio das trevas"...
Seguira, não obstante, o curso do tempo arrastandome a lutas constantes. Reencarnações
se sucederam através dos séculos... Eu pertencia às trevas... e durante o intervalo de uma existência
a outra, apraziame permanecer nas inferiores camadas da animalidade!
Convites reiterados para os trabalhos de regeneração recebia eu em quaisquer planos a
que me impelisse a seqüência do existir, fosse na condição de homem ou na de Espírito despido
das vestes carnais, porquanto também nas regiões astrais inferiores ecoam as doçuras do
Evangelho e a figura sublime do Crucificado é apontada como o modelo generoso a imitarse! Mas
faziame surdo, enceguecido pela mávontade dos instintos, tal como sucede a tantos outros... Posso até asseverar que nem mesmo chegava a perceber com a devida clareza a diferença existente
entre a encarnação e a estada no Invisível, pois era o meu modo de ser sempre o mesmo: a
animalidade! Hoje sei que a lei imanente do Progresso, qual ímã sábio e irresistível, me impelia
para novas possibilidades em corpos carnais, sob orientação de devotados obreiros do Senhor,
fazendome renascer como homem a fim de que os choques da expiação e as lutas incessantes
inerentes às condições da vida na Terra, os sofrimentos inevitáveis, oriundos do estado de
imperfeição tanto do planeta como da sua Humanidade, me desenvolvessem lentamente as
potências da alma embrutecida pela inferioridade. Na época a que me reporto, no entanto, nada
disso percebia, e tanto a existência humana como o interregno no alémtúmulo se me afiguravam
uma e a mesma coisa!
Mas através dos séculos experimentei também grandes infortúnios. Criminoso impenitente, atendome às práticas nefastas do mal, sofria, como é natural, o
reverso de minhas próprias ações, cujos efeitos em meu próprio estado se refletiam. Subia, por
vezes, a alturas famosas da escala social terrena, fato esse que não implica a posse de virtudes, porque eram ilimitadas as ambições que me orientavam! Tais ambições, porém, vis e degradantes,
levavamme a quedas morais retumbantes, chafurdandome cada vez mais no pântano dos
deméritos, e para minha Consciência criando responsabilidades atordoadoras!
Todavia, minhas renovações carnais sempre se realizaram entre povos cristãos. Tudo
indica, na vida laboriosa e disciplinada do Invisível, que os Espíritos são registrados em falanges
ou colônias, e sob seus auspícios é que se educam e evolvem, sem se desagregarem de sua tutela
senão já quando completado o ciclo evolutivo normal, isto é, uma vez adquiridos cabedais que lhes
permitam transmutações operosas e úteis ao bem próprio e alheio. O certo é que nunca me
desloquei das Gálias ou da Ibéria, até o momento presente. A idéia da regeneração começou a se insinuar em minhas cogitações à força de percebêla
sussurrada aos meus ouvidos através da fieira do tempo, quer me encontrasse na Terra sob formas
humanas ou mergulhado nas penumbras espirituais próprias dos seres da minha inferior categoria. Aceiteia calculada e interesseiramente, entrando a procurar recursos para solucionar as pesadas
adversidades que me perseguiam o destino, através dos séculos, nessa doutrina cristã que, segundo
afirmavam, tantos benefícios concedia àquele que à sua tutela se confiasse. O que eu não podia
compreender, porém, absorto no meu mundo íntimo inferior, era o alto alcance moral e filosófico
de tais conselhos ou convites, repetidos sempre em torno de mim em quaisquer locais terrenos ou
astrais a que a vida me levasse... e por isso esperava da Grande Doutrina apenas vantagens pessoais, poderes misteriosos ou supersticiosos, que me levassem a conquistar a satisfação de mil
caprichos e paixões... Não obstante, em ouvindo referências àquele Mestre Nazareno cujas virtudes eram
modelo para a regeneração da Humanidade, súbito malestar alucinavame, tal se incômodas
repercussões vibrassem em meu íntimo, enquanto corrente hostil se estabelecia em minha
consciência, que parecia temer investigações em torno do melindroso assunto. Era portanto
concludente que se minha inteligência e meus conhecimentos intelectuais se robusteciam ao
embate das lutas pela existência e dos infortúnios sob o impulso poderoso do esforço próprio, como até das ambições, o coração jazia inativo e enregelado, a alma embrutecida para as generosas
manifestações do Bem, da Moral e da Justiça!
A primeira metade do século XVII surpreendeume em confusões deploráveis, na
obscuridade de um cárcere terreno envolvido em trevas, não obstante minha qualidade de habitante
do mundo invisível. Que odiosa série de feitos criminosos, porém, ocasionara tão amarga repressão para a
dignidade de um Espírito liberto das cadeias da carne?... Que abomináveis razões haveria eu dado
à lei de atração e afinidades para que meu estado mental e consciencial apenas se afinasse com as
trevas de uma masmorra de prisão terrena, infecta e martirizante?... Convém que te inteires do que fiz por aquele tempo, leitor...
VOCÊ ESTÁ LENDO
Memórias de um Suicida
SpiritualCom orientação do Espírito Léon Denis, o autor espiritual Camilo Castelo Branco, sob o pseudônimo Camilo Cândido Botelho, descreve à médium Yvonne A. Pereira sua dolorosa experiência após a desencarnação pelo suicídio. O livro visa mostrar a miseric...