Em geral aqueles que se arrojam ao suicídio, para sempre esperam livrarse de dissabores
julgados insuportáveis, de sofrimentos e problemas considerados insolúveis pela tibiez da vontade
deseducada, que se acovarda em presença, muitas vezes, da vergonha do descrédito ou da desonra, dos remorsos deprimentes postos a enxovalharem a consciência, conseqüências de ações
praticadas à revelia das leis do Bem e da Justiça. Também eu assim pensei, muito apesar da auréola de idealista que minha vaidade
acreditava glorificandome a fronte. Enganeime, porém; e lutas infinitamente mais vivas e mais ríspidas esperavamme a
dentro do túmulo a fim de me chicotearem a alma de descrente e revel, com merecida justiça. As primeiras horas que se seguiram ao gesto brutal de que usei, para comigo mesmo, passaramse sem que verdadeiramente eu pudesse dar acordo de mim. Meu Espírito, rudemente
violentado, como que desmaiara, sofrendo ignóbil colapso. Os sentidos, as faculdades que
traduzem o "eu" racional, paralisaramse como se indescritível cataclismo houvesse desbaratado o
mundo, prevalecendo, porém, acima dos destroços, a sensação forte do aniquilamento que sobre
meu ser acabara de cair. Fora como se aquele estampido maldito, que até hoje ecoa sinistramente
em minhas vibrações mentais –, sempre que, descerrando os véus da memória, como neste
instante, revivo o passado execrável – tivesse dispersado uma a uma as moléculas que em meu ser
constituíssem a Vida!
A linguagem humana ainda não precisou inventar vocábulos bastante justos e
compreensíveis para definir as impressões absolutamente inconcebíveis, que passam a contaminar
o "eu" de um suicida logo às primeiras horas que se seguem ao desastre, as quais sobem e se
avolumam, envolvemse em complexos e se radicam e cristalizam num crescendo que traduz
estado vibratório e mental que o homem não pode compreender, porque está fora da sua
possibilidade de criatura que, mercê de Deus, se conservou aquém dessa anormalidade. Para
entendêla e medir com precisão a intensidade dessa dramática surpresa, só outro Espírito cujas
faculdades se houvessem queimado nas efervescências da mesma dor!
Nessas primeiras horas, que por si mesmas constituiriam a configuração do abismo em
que se precipitou, se não representassem apenas o prelúdio da diabólica sinfonia que será
constrangido a interpretar pelas disposições lógicas das leis naturais que violou, o suicida, semi-inconsciente, adormentado, desacordado sem que, para maior suplício, se lhe obscureça de todo a
percepção dos sentidos, sentese dolorosamente contundido, nulo, dispersado em seus milhões de
filamentos psíquicos violentamente atingidos pelo malvado acontecimento. Paradoxos turbilhonam
em volta dele, afligindolhe a tenuidade das percepções com martirizantes girândolas de sensações
confusas. Perdese no vácuo... Ignorase... Não obstante aterrase, acovardase, sente a profundidade apavorante do erro contra o
qual colidiu, deprimese na aniquiladora certeza de que ultrapassou os limites das ações que lhe
eram permitidas praticar, desnorteiase entrevendo que avançou demasiadamente, para além da
demarcação traçada pela Razão! É o traumatismo psíquico, o choque nefasto que o dilacerou com
suas tenazes inevitáveis, e o qual, para ser minorado, dele exigirá um roteiro de urzes e lágrimas, decênios de rijos testemunhos até que se reconduza às vias naturais do progresso, interrompidas
pelo ato arbitrário e contraproducente. Pouco a pouco, senti ressuscitando das sombras confusas em que mergulhei meu pobre
Espírito, após a queda do corpo físico, o atributo máximo que a Paternidade Divina impôs sobre
aqueles que, no decorrer dos milênios, deverão refletir Sua imagem e semelhança; – a
Consciência! A Memória! O divino dom de pensar!
Sentime enregelar de frio. Tiritava! Impressão incômoda, de que vestes de gelo se me
apegavam ao corpo, provocoume inavaliável malestar. Faltavame, ao demais, o ar para o livre
mecanismo dos pulmões, o que me levou a crer que, uma vez que eu me desejara furtar à vida, era
a morte que se aproximava com seu cortejo de sintomas dilacerantes. Odores fétidos e nauseabundos, todavia, revoltavamme brutalmente o olfato. Dor aguda, violenta, enlouquecedora, arremeteuse instantaneamente sobre meu corpo por inteiro,
localizandose particularmente no cérebro e iniciandose no aparelho auditivo. Presa de convulsões
indescritíveis de dor física, levei a destra ao ouvido direito: – o sangue corria do orifício causado
pelo projétil da arma de fogo de que me servira para o suicídio e manchoume as mãos, as vestes, o
corpo... Eu nada enxergava, porém. Convém recordar que meu suicídio derivouse da revolta por
me encontrar cego, expiação que considerei superior às minhas forças. Injusta punição da natureza
aos meus olhos necessitados de ver, para que me fosse dado obter, pelo trabalho, a subsistência
honrada e ativa. Sentiame, pois, ainda cego; e, para cúmulo do meu estado de desorientação, encontrava me ferido. Tão somente ferido e não morto! Porque a vida continuava em mim como antes do
suicídio!
Passei a reunir idéias, mau grado meu. Revi minha vida em retrospecto, até à infância, e
sem mesmo omitir o drama do último ato, programação extra sob minha inteira responsabilidade. Sentindome vivo, averigüei, conseqüentemente, que o ferimento que em mim mesmo fizera,
tentando matarme, fora insuficiente, aumentando assim os já tão grandes sofrimentos que desde
longo tempo me vinham perseguindo a existência. Supusme preso a um leito de hospital ou em minha própria casa. Mas a impossibilidade
de reconhecer o local, pois nada via; os incômodos que me afligiam, a solidão que me rodeava, entraram a me angustiar profundamente, enquanto lúgubres pressentimentos me avisavam de que
acontecimentos irremediáveis se haviam confirmado. Bradei por meus familiares, por amigos que eu conhecia afeiçoados bastante para me
acompanharem em momentos críticos. O mais surpreendente silêncio continuou enervandome.
Indaguei malhumorado por enfermeiros, por médicos que possivelmente me atenderiam, dado que
me não encontrasse em minha residência e sim retido em algum hospital; por serviçais, criados,
fosse quem fosse, que me obsequiar pudessem, abrindo as janelas do aposento onde me supunha
recolhido, a fim de que correntes de ar purificado me reconfortassem os pulmões; que me
favorecessem coberturas quentes, acendessem a lareira para amenizar a gelidez que me entorpecia
os membros, providenciando bálsamo às dores que me supliciavam o organismo, e alimento, e
água, porque eu tinha fome e tinha sede!
Com espanto, em vez das respostas amistosas por que tanto suspirava, e que minha
audição distinguiu, passadas algumas horas, foi um vozerio ensurdecedor, que, indeciso e
longínquo a princípio, como a destacarse de um pesadelo, definiuse gradativamente até positivar
se em pormenores concludentes. Era um coro sinistro, de muitas vozes confundidas em atropelos, desnorteadas, como aconteceria numa assembléia de loucos. No entanto, estas vozes não falavam entre si, não conversavam. Blasfemavam, queixavamse de múltiplas desventuras, lamentavamse, reclamavam, uivavam, gritavam
enfurecidas, gemiam, estertoravam, choravam desoladoramente, derramando pranto hediondo, pelo tono de desesperação com que se particularizava; suplicavam, raivosas, socorro e compaixão!
Aterrado senti que estranhos empuxões, como arrepios irresistíveis, transmitiamme
influenciações abomináveis, provindas desse todo que se revelava através da audição, estabelecendo corrente similar entre meu ser superexcitado e aqueles cujo vozerio eu distinguia. Esse coro, isócrono, rigorosamente observado e medido em seus intervalos, infundiume tão
grande terror que, reunindo todas as forças de que poderia o meu Espírito dispor em tão molesta
situação, movimenteime no intuito de afastarme de onde me encontrava para local em que não
mais o ouvisse. Tateando nas trevas tentei caminhar. Mas dirseia que raízes vigorosas plantavamme
naquele lugar úmido e gelado em que me deparava. Não podia despegarme!
Sim! Eram cadeias pesadas que me escravizavam, raízes cheias de seiva, que me atinham
grilhetado naquele extraordinário leito por mim desconhecido, impossibilitandome o desejado
afastamento. Aliás, como fugir se estava ferido, desfazendome em hemorragias internas, manchadas as vestes de sangue, e cego, positivamente cego?! Como apresentarme a público em
tão repugnante estado?... A covardia – a mesma hidra que me atraíra para o abismo em que agora me
convulsionava – alongou ainda mais seus tentáculos insaciáveis e colheume irremediavelmente!
Esquecime de que era homem, ainda uma segunda vez! E que cumpria lutar para tentar vitória,
fosse a que preço fosse de sofrimento! Reduzime por isso à miséria do vencido! E, considerando
insolúvel a situação, entregueime às lágrimas e chorei angustiosamente, ignorando o que tentar
para meu socorro. Mas, enquanto me desfazia em prantos, o coro de loucos, sempre o mesmo, trágico, funéreo, regular como o pêndulo de um relógio, acompanhavame com singular similitude, atraindome como se imanado de irresistíveis afinidades...
Insisti no desejo de me furtar à terrível audição. Após esforços desesperados, levanteime. Meu corpo enregelado, os músculos retesados
por entorpecimento geral, dificultavamme sobremodo o intento. Todavia, levanteime. Ao fazêlo, porém, cheiro penetrante de sangue e vísceras putrefatos reacendeu em torno, repugnandome até
as náuseas. Partia do local exato em que eu estivera dormindo. Não compreendia como poderia
cheirar tão desagradavelmente o leito onde me achava. Para mim seria o mesmo que me acolhia
todas as noites! E, no entanto, que de odores fétidos me surpreendiam agora!
Atribui o fato ao ferimento que fizera na intenção de matarme, a fim de explicarme de
algum modo a estranha aflição, ao sangue que corria, manchandome as vestes. Realmente! Eu me
encontrava empastado de peçonha, como um lodo asqueroso que dessorasse de meu próprio corpo, empapando incomodativamente a indumentária que usava, pois, com surpresa, surpreendime
trajando cerimoniosamente, não obstante retido num leito de dor. Mas, ao mesmo tempo em que
assim me apresentava satisfações, confundiame na interrogação de como poderia assim ser, visto
não ser cabível que um simples ferimento, mesmo a quantidade de sangue espargido, pudesse
tresandar a tanta podridão, sem que meus amigos e enfermeiros deixassem de providenciar a
devida higienização.
Inquieto, tateei na escuridão com o intuito de encontrar a porta de saída que me era
habitual, já que todos me abandonavam em hora tão critica. Tropecei, porém, em dado momento, num montão de destroços e, instintivamente, curveime para o chão, a examinar o que assim me
interceptava os passos. Então, repentinamente, a loucura irremediável apoderouse de minhas
faculdades e entrei a gritar e uivar qual demônio enfurecido, respondendo na mesma dramática
tonalidade à macabra sinfonia cujo coro de vozes não cessava de perseguir minha audição, em
intermitências de angustiante expectativa. O montão de escombros era nada menos do que a terra de uma cova recentemente
fechada!
Não sei como, estando cego, pude entrever, em meio as sombras que me rodeavam, o que
existia em torno!
Eu me encontrava num cemitério! Os túmulos, com suas tristes cruzes em mármore
branco ou madeira negra, ladeando imagens sugestivas de anjos pensativos, alinhavamse na
imobilidade majestosa do drama em que figuravam. A confusão cresceu: – Por que me encontraria ali?
Como viera, pois nenhuma lembrança me acorria?... E o que viera fazer sozinho, ferido, dolorido, extenuado?... Era verdade que "tentara" o suicídio, mas... Sussurro macabro, qual sugestão irremovível da Consciência esclarecendo a memória
aturdida pelo ineditismo presenciado, percutiu estrondosamente pelos recôncavos alarmados do
meu ser:
"Não quiseste o suicídio?... Pois aí o tens..."
Mas, como assim?... Como poderia ser... se eu não morrera?!... Acaso não me sentia ali
vivo?... Por que então sozinho, imerso na solidão tétrica da morada dos mortos?!... Os fatos irremediáveis, porém, impõemse aos homens como aos Espíritos com majestosa
naturalidade. Não concluíra ainda minhas ingênuas e dramáticas interrogações, e vejome, a mim
próprio! Como à frente de um espelho, morto, estirado num ataúde, em franco estado de
decomposição, morto dentro de uma sepultura, justamente aquela sobre a qual acabava de
tropeçar!
Fugi espavorido, desejoso de ocultarme de mim mesmo, obsidiado pelo mais tenebroso
horror, enquanto gargalhadas estrondosas, de indivíduos que eu não lograva enxergar, explodiam
atrás de mim e o coro nefasto perseguia meus ouvidos torturados, para onde quer que me
refugiasse. Como louco que realmente me tornara, eu corria, corria, enquanto aos meus olhos
cegos se desenhava a hediondez satânica do meu próprio cadáver apodrecendo no túmulo, empastado de lama gordurosa, coberto de asquerosas lesmas que, vorazes, lutavam por saciar em
suas pústulas a fome inextinguível que traziam, transformandoo no mais repugnante e infernal
monturo que me fora dado conhecer!
Quis furtarme à presença de mim mesmo, procurando incidir no ato que me desgraçara,
isto é – reproduzi a cena patética do meu suicídio mentalmente, como se por uma segunda vez
buscasse morrer a fim de desaparecer na região do que, na minha ignorância dos fatos de além morte, eu supunha o eterno esquecimento! Mas nada havia capaz de aplacar a malvada visão! Ela
era, antes, verdadeira! Imagem perfeita da realidade que sobre o meu físico espiritual se refletia, e
por isso me acompanhava para onde quer que eu fosse, perseguia minhas retinas sem luz, invadia
minhas faculdades anímicas imersas em choques e se impunha à minha cegueira de Espírito caído
em pecado, supliciandome sem remissão!
Na fuga precipitada que empreendi, ia entrando em todas as portas que encontrava
abertas, a fim de ocultarme em alguma parte. Mas de qualquer domicílio a que me abrigasse, na
insensatez da loucura que me enredava, era enxotado a pedradas sem poder distinguir quem, com
tanto desrespeito, assim me tratava. Vagava pelas ruas tateando aqui, tropeçando além, na mesma
cidade onde meu nome era endeusado como o de um gênio – sempre aflito e perseguido. A
respeito dos acontecimentos que com minha pessoa se relacionavam, ouvi comentários destilados
em críticas mordazes e irreverentes, ou repassados de pesar sincero pelo meu trespasse, que
lamentavam. Torneia minha casa. Surpreendente desordem estabelecerase em meus aposentos, atingindo objetos de meu uso pessoal, meus livros, manuscritos e apontamentos, os quais já não
eram por mim encontrados no local costumeiro, o que muito me enfureceu. Dirseia que se
dispersara tudo! Encontreime estranho em minha própria casa! Procurei amigos, parentes a quem
me afeiçoara. A indiferença que lhes surpreendi em torno da minha desgraça chocoume dolorosamente, agravando meu estado de excitação. Dirigime então a consultórios médicos. Tentei fixarme em
hospitais, pois que sofria, sentia febre e loucura, supremo malestar torturava meu ser,
reduzindo-me a desolador estado de humilhação e amargura. Mas, a toda parte que me dirigia, sentiame
insocorrido, negavamme atenções, despreocupados e indiferentes todos ante minha situação. Em
vão objurgatórias azedas saíam de meus lábios acompanhadas da apresentação, por mim próprio
feita, do meu estado e das qualidades pessoais que meu incorrigível orgulho reputava irresistíveis: – pareciam alheios às minhas insistentes algaravias, ninguém me concedendo sequer o favor de um
olhar!
Aflito, insofrido, alucinado, absorvido meu ser pelas ondas de agoirantes amarguras, em
parte alguma encontrava possibilidade de estabilizarme a fim de lograr conforto e alívio! Faltava me alguma coisa irremediável, sentiame incompleto! Eu perdera algo que me deixava assim, entonteado, e essa "coisa" que eu perdera, parte de mim mesmo, atraíame para o local em que se
encontrava, com as irresistíveis forças de um ímã, chamavame imperiosa, irremediavelmente! E
era tal a atração que sobre mim exercia, tal o vácuo que em mim produzira esse irreparável
acontecimento, tão profunda a afinidade, verdadeiramente vital, que a essa "coisa" me unia – que, não sendo possível, de forma alguma, fixarme em nenhum local para que me voltasse, tornei ao
sitio tenebroso de onde viera: – o cemitério!
Essa "coisa", cuja falta assim me enlouquecia, era o meu próprio corpo – o meu cadáver! – apodrecendo na escuridão de um túmulo! 3
Debruceime, soluçante e inconsolável, sobre a sepultura que me guardava os míseros
despojos corporais, e estorcime em apavorantes convulsões de dor e de raiva, rebolcandome em
crises de furor diabólico, compreendendo que me suicidara, que estava sepultado, mas que, não
obstante, continuava vivo e sofrendo, mais, muito mais do que sofria antes, superlativamente, monstruosamente mais do que antes do gesto covarde e impensado!
Cerca de dois meses vaguei desnorteado e tonto, em atribulado estado de incompreensão. Ligado ao fardo carnal que apodrecia, viviam em mim todas as imperiosas necessidades do físico
humano, amargura que, aliada aos demais incômodos, me levava a constantes desesperações. Revoltas, blasfêmias, crises de furor acometiamme como se o próprio inferno soprasse sobre mim
suas nefastas inspirações, assim coroando as vibrações maléficas que me circulavam de trevas. Via
fantasmas perambulando pelas ruas do campo santo, não obstante minha cegueira, chorosos e
aflitos, e, por vezes, terrores inconcebíveis sacudiamme o sistema vibratório a tal ponto que me
3 Certa vez, há cerca de vinte anos, um dos meus dedicados educadores espirituais – Charles – levoume a um cemitério
público do Rio de Janeiro, a fim de visitarmos um suicida que rondava os próprios despojos em putrefação. Escusado será
esclarecer que tal visita foi realizada em corpo astral. O perispírito do referido suicida, hediondo qual demônio, infundiu me pavor e repugnância. Apresentavase completamente desfigurado e irreconhecível, coberto de cicatrizes, tantas cicatrizes quantos haviam sido os pedaços a que ficara reduzido seu envoltório carnal, pois o desgraçado jogarase sob as
rodas de um trem de ferro, ficando despedaçado. Não há descrição possível para o estado de sofrimento desse Espírito!
Estava enlouquecido, atordoado, por vezes furioso, sem se poder acalmar para raciocinar, insensível a toda e qualquer vibração que não fosse a sua imensa desgraça! Tentamos falarlhe: – não nos ouvia! E Charles, tristemente, com acento
indefinível de ternura, falou: – "Aqui, só a prece terá virtude capaz de se impor! Será o único bálsamo que poderemos destilar em seu favor, santo bastante para, após certo período de tempo, poder aliviálo... – E essas cicatrizes? – perguntei,
impressionada. – "Só desaparecerão – tornou Charles – depois da expiação do erro, da reparação em existências amargas, que requererão lágrimas ininterruptas, o que não levará menos de um século, talvez muito mais... Que Deus se amerceie dele, porque, até lá..." Durante muitos anos orei por esse infeliz irmão em minhas preces diárias. (Nota da médium) reduziam a singular estado de desmaio, como se, sem forças para continuar vibrando, minhas
potências anímicas desfalecessem!
Desesperado em face do extraordinário problema, entregavame cada vez mais ao desejo
de desaparecer, de fugir de mim mesmo a fim de não mais interrogarme sem lograr lucidez para
responder, incapaz de raciocinar que, em verdade, o corpo físicomaterial, modelado do limo
putrescível da Terra, fora realmente aniquilado pelo suicídio; e que o que agora eu sentia
confundirse com ele, porque solidamente a ele unido por leis naturais de afinidade que o suicídio
absolutamente não destrói, era o físicoespiritual, indestrutível e imortal, organização viva,
semimaterial, fadada a elevados destinos, a porvir glorioso no seio do progresso infindável,
relicário onde se arquivam, qual o cofre que encerrasse valores, nossos sentimentos e atos, nossas
realizações e pensamentos, envoltório que é da centelha sublime que rege o homem, isto é, a
Alma, eterna e imortal como Aquele que de Si Mesmo a criou!
Certa vez em que ia e vinha, tateando pelas ruas, irreconhecível a amigos e admiradores, pobre cego humilhado no alémtúmulo graças à desonra de um suicídio; mendigo na sociedade
espiritual, faminto na miséria de Luz em que me debatia; angustiado fantasma vagabundo, sem lar,
sem abrigo no mundo imenso, no mundo infinito dos Espíritos; exposto a perigos deploráveis, que
também os há entre desencarnados; perseguido por entidades perversas, bandoleiros da
erraticidade, que gostam de surpreender, com ciladas odiosas, criaturas nas condições amargurosas
em que me via, para escravizálas e com elas engrossar as fileiras obsessoras que desbaratam as
sociedades terrenas e arruínam os homens levandoos às tentações mais torpes, através de
influenciações letais – ao dobrar de uma esquina deparei com certa multidão, cerca de duzentas
individualidades de ambos os sexos. Era noite. Pelo menos eu assim o supunha, pois, como
sempre, as trevas envolviamme, e eu, tudo o que venho narrando, percebia mais ou menos bem
dentro da escuridão, como se enxergasse mais pela percepção dos sentidos do que mesmo pela
visão. Aliás, eu me considerava cego, mas não me explicando até então como, destituído do
inestimável sentido, possuía, não obstante, capacidade para tantas torpezas enxergar, ao passo que
não a possuía sequer para reconhecer a luz do Sol e o azul do firmamento!
Essa multidão, entretanto, era a mesma que vinha concertando o coro sinistro que me
aterrava, tendoa eu reconhecido porque, no momento em que nos encontramos, entrou a uivar
desesperadamente, atirando aos céus blasfêmias diante das quais as minhas seriam meros gracejos!
Tentei recuar, fugir, ocultarme dela, apavorado por me tornar dela conhecido. Porém, porque marchasse em sentido contrário ao que eu seguia, depressa me envolveu, misturandome ao
seu todo para absorverme completamente em suas ondas!
Fui levado de roldão, empurrado, arrastado mau grado meu; e tal era a aglomeração que
me perdi totalmente em suas dobras. Apenas me inteirava de um fato, porque isso mesmo ouvia
rosnarem ao redor, e era que estávamos todos guardados por soldados, os quais nos conduziam. A
multidão acabava de ser aprisionada! A cada momento juntavase, a ela outro e outro vagabundo, como acontecera comigo, e que do mesmo modo não mais poderiam sair. Dirseia que esquadrão
completo de milicianos montados conduzianos à prisão. Ouviamse as patadas dos cavalos sobre
o lajedo das ruas e lanças afiadas luziam na escuridão, impondo temor.
Protestei contra a violência de que me reconhecia alvo. Em altas vozes bradei que não era
criminoso e deime a conhecer, enumerando meus títulos e qualidades. Mas os cavaleiros, se me ouviam, não se dignavam responder. Silenciosos, mudos, eretos, marchavam em suas montadas fechandonos em círculo intransponível! À frente o comandante, abrindo caminho dentro das trevas, empunhava um bastão no alto do qual flutuava pequena
flâmula, onde adivinhávamos uma inscrição. Porém eram tão acentuadas as sombras que não
poderíamos lêla, ainda que o desespero que nos vergastava permitisse pausa para manifestarmos
tal desejo.A caminhada foi longa. Frio cortante enregelavanos. Misturei minhas lágrimas e meus brados de dor e desespero ao coro horripilante e
participei da atroz sinfonia de blasfêmias e lamentações. Pressentíamos que bem seguros
estávamos, que jamais poderíamos escapar! Tocados vagarosamente, sem que um único
monossílabo lográssemos arrancar aos nossos condutores, começamos, finalmente, a caminhar
penosamente por um vale profundo, onde nos vimos obrigados a enfileirarnos de dois a dois, enquanto faziam idêntica manobra os nossos vigilantes. Cavernas surgiram de um lado e outro das ruas que se diriam antes estreitas gargantas
entre montanhas abruptas e sombrias, e todas numeradas. Tratavase, certamente, de uma estranha
"povoação", uma "cidade" em que as habitações seriam cavernas, dada a miséria de seus
habitantes, os quais não possuiriam cabedais suficientes para tornálas agradáveis e facilmente
habitáveis. O que era certo, porém, é que tudo ali estava por fazer e que seria bem aquela a
habitação exata da Desgraça! Não se distinguiria terreno, senão pedras, lamaçais ou pântanos,
sombras, aguaceiros... Sob os ardores da febre excitante da minha desgraça, cheguei a pensar que,
se tal região não fosse um pequeno recôncavo da Lua, existiriam por lá, certamente, locais muito
semelhantes...
Internavamnos cada vez mais naquele abismo... Seguíamos, seguíamos... E, finalmente, no centro de grande praça encharcada qual um
pântano, os cavaleiros fizeram alto. Com eles estacou a multidão. Em meio do silêncio que repentinamente se estabeleceu, viuse que a soldadesca voltava
sobre os próprios passos a fim de retirarse. Com efeito! Um a um vimos que se afastavam todos nas curvas tortuosas das vielas
lamacentas, abandonandonos ali. Confusos e atemorizados seguimos ao seu encalço, ansiosos por nos afastarmos também. Mas foi em vão!
As ruelas, as cavernas e os pântanos se sucediam, baralhandose num labirinto em que
nos perdíamos, pois, para onde nos dirigíssemos, depararíamos sempre o mesmo cenário e a
mesma topografia. Inconcebível terror apossouse da estranha malta. Por minha vez, não poderia
sequer pensar ou refletir, procurando solução para o momento. Sentiame como que envolvido nos
tentáculos de horrível pesadelo, e, quanto maiores esforços tentava para racionalmente explicarme
o que se passava, menos compreendia os acontecimentos e mais apoucado me confessava no
assombro esmagador!
Meus companheiros eram hediondos, como hediondos também se mostravam os demais
desgraçados que nesse vale maldito encontráramos, os quais nos receberam entre lágrimas e
estertores idênticos aos nossos. Feios, deixando ver fisionomias alarmadas pelo horror; esquálidos, desfigurados pela
intensidade dos sofrimentos; desalinhados, inconcebivelmente trágicos, seriam irreconhecíveis por
aqueles mesmos que os amassem, aos quais repugnariam! Pusme a bradar desesperadamente, acometido de odiosa fobia do Pavor. O homem normal, sem que haja caído nas garras da
demência, não será capaz de avaliar o que entrei a padecer desde que me capacitei de que o que via
não era um sonho, um pesadelo motivado pela deplorável loucura da embriaguez! Não! Eu não era
um alcoólatra para assim me surpreender nas garras de tão perverso delírio! Não era tampouco o
sonho, o pesadelo, a criar em minha mente, prostituída pela devassidão dos costumes, o que aos
meus olhos alarmados por infernal surpresa se apresentava como a mais pungente realidade que os
infernos pudessem inventar – a realidade maldita, assombrosa, feroz! – criada por uma falange de
réprobos do suicídio aprisionada no meio ambiente cabível ao seu crítico e melindroso estado, como cautela e caridade para como gênero humano, que não suportaria, sem grandes confusões e
desgraças, a intromissão de tais infelizes em sua vida cotidiana! 4
Sim! Imaginai uma assembléia numerosa de criaturas disformes – homens e mulheres – caracterizada pela alucinação de cada uma, correspondente a casos íntimos, trajando, todos, vestes
como que empastadas do lodo das sepulturas, com feições alteradas e doloridas estampando os
estigmas de sofrimentos cruciantes! Imaginai uma localidade, uma povoação envolvida em densos
véus de penumbra, gélida e asfixiante, onde se aglomerassem habitantes de alémtúmulo abatidos
pelo suicídio, ostentando, cada um, o ferrete infame do gênero de morte escolhido no intento de
ludibriar a Lei Divina – que lhes concedera a vida corporal terrena como precioso ensejo de
progresso, inavaliável instrumento para a remissão de faltas gravosas do pretérito!
Pois era assim a multidão de criaturas que meus olhos assombrados deparavam nas trevas
que lhes eram favoráveis ao terrível gênero de percepção, esquecido, na insânia do orgulho que a
mim era próprio, que também eu pertencia a tão repugnante todo, que era igualmente um feio
alucinado, um pastoso ferreteado!
Eu via por aqui, por ali, estes traduzindo, de quando em quando, em cacoetes nervosos, as
ânsias do enforcamento, esforçandose, com gestos instintivos, altamente emocionantes, por
livrarem o pescoço, intumescido e violado, dos farrapos de cordas ou de panos que se refletiam nas
repercussões perispirituais, em vista das desarmoniosas vibrações mentais que permaneciam
torturandoos!
Aqueles, indo e vindo como loucos, em correrias espantosas, bradando por socorro em
gritos estentóricos, julgandose, de momento a momento, envolvidos em chamas, apavorandose
com o fogo que lhes devorava o corpo físico e que, desde então, ardia sem tréguas nas
4 Efetivamente, no alémtúmulo, as vibrações mentais longamente viciadas do alcoólatra, do sensual, do cocainômano, etc., etc., poderão criar e manter visões e ambientes nefastos, pervertidos. Se, além do mais, trazem os desequilíbrios de um
suicídio, a situação poderá atingir proporções Inconcebíveis. sensibilidades semimateriais do perispírito! Estes últimos, porém, eu notava serem, geralmente, mulheres.Eis que apareciam outros ainda: o peito ou o ouvido, ou a garganta banhados em sangue, oh! Sangue inalterável, permanente, que nada conseguia verdadeiramente fazer desaparecer das
sutilezas do físicoespiritual senão a reencarnação expiatória e reparadora! Tais infelizes, além das
múltiplas modalidades de penúrias por que se viam atacados, deixavamse estar preocupados
sempre, a tentarem estancar aquele sangue jorrante, ora com as mãos, ora com as vestes ou outra
qualquer coisa que supunham ao alcance, sem no entanto jamais o conseguirem, pois tratavase de
um deplorável estado mental, que os incomodava e impressionava até ao desespero! A presença
destes desgraçados impressionava até à loucura, dada a inconcebível dramaticidade dos gestos
isócronos, inalteráveis, a que, mau grado próprio, se viam forçados! E ainda estoutros sufocando
se na bárbara asfixia do afogamento, bracejando em ânsias furiosas à procura de algo que os
pudesse socorrer, tal como sucedera à hora extrema e que suas mentes registraram, ingerindo água
em gorgolejos ininterruptos, exaustivos, prolongando indefinidamente cenas de agonia selvagem, as quais olhos humanos seriam incapazes de presenciar sem se tingirem de demência!
Porém havia mais ainda!... E o leitor perdoe à minha memória estas minudências talvez
desinteressantes para o seu bomgosto literário, mas úteis, certamente, como advertência ao seu
possível caráter impetuoso, chamado a viver as inconveniências de um século em que o "morbus"
terrível do suicídio se tornou mal endêmico. Não pretendemos, aliás, apresentar obra literária para deleitar gosto e temperamento
artísticos. Cumprimos um dever sagrado, tãosomente, procurando falar aos que sofrem, dizendo a
verdade sobre o abismo que, com malvadas seduções, há perdido muita alma descrente em meio
dos desgostos comuns à vida de cada um!
Entretanto, bem próximo ao local em que me encurralara procurando refugiarme da
récua sinistra, destacavase, por fealdade impressionante, meia dúzia de desgraçados que haviam
procurado o "olvido eterno", atirandose sob as rodas de um trem de ferro. Trazendo os perispíritos
desfigurados, dirseiam a armadura de monstruosa aberração, as vestes em farrapos esvoaçantes, cobertos de cicatrizes sanguinolentas, retalhadas, confusas, num emaranhado de golpes e sobre
golpes, tal se fotografada fora, naquela placa sensível e sutil, isto é, o perispírito, a deplorável
condição a que o suicídio lhes reduzira o envoltório carnal – esse templo, ó meu Deus, que o
Divino Mestre recomenda como veículo precioso e eficiente para nos auxiliar na caminhada em
busca das gloriosas conquistas espirituais! Enlouquecidos por sofrimentos superlativos, possuídos
da suprema aflição que atingir possa a alma originada da centelha divina, representando aos olhos
pávidos do observador o que o Invisível inferior mantém de mais trágico, mais emocionante e
horrível, esses desgraçados uivavam em lamentações tão dramáticas e impressionantes que
imediatamente contagiavam com suas influenciações dolorosas quem quer que se encontrasse
indefenso em seu caminho, o qual entraria a coparticipar da loucura inconsolável de que se
acompanhavam... pois o terrível gênero de suicídio, dos mais deploráveis que temos a registrar em
nossas páginas, abalaralhes tão violenta e profundamente a organização nervosa e sensibilidades
gerais do corpo astral, congêneres daquela que traumatizara a todas, entorpecendo, graças à brutalidade usada, até mesmo os valores da inteligência, que, por isso mesmo, jazia incapaz de
orientarse, dispersa e confusa em meio do caos que se formara ao redor de si!
A mente edifica e produz. O pensamento – já bastantes vezes declararam – é criador, e, portanto, fabrica, corporifica, retém imagens por si mesmo engendradas, realiza, segura o que
passou e, com poderosas garras, conservao presente até quando desejar!
Cada um de nós, no Vale Sinistro, vibrando violentamente e retendo com as forças
mentais o momento atroz em que nos suicidamos, criávamos os cenários e respectivas cenas que
vivêramos em nossos derradeiros momentos de homens terrestres. Tais cenas, refletidas ao redor
de cada um, levavam a confusão à localidade, espalhavam tragédia e inferno por toda a parte,
seviciando de aflições superlativas os desgraçados prisioneiros. Assim era que se deparavam, aqui
e ali, forcas erguidas, baloiçando o corpo do próprio suicida, que evocava a hora em que se
precipitara na morte voluntária. Veículos variados, assim como comboios fumegantes e rápidos, colhiam e trituravam, sob
suas rodas, míseros tresloucados que buscaram matar o próprio corpo por esse meio execrável, os
quais, agora, com a mente "impregnada" do momento sinistro, retratavam sem cessar o episódio, pondo à visão dos companheiros afins suas hediondas recordações.5 Rios caudalosos e mesmo
trechos alongados de oceano surgiam repentinamente no meio daquelas vielas sombrias: – era
meia dúzia de réprobos que passava enlouquecida, deixando à mostra cenas de afogamento, por
arrastarem na mente conflagrada a trágica lembrança de quando se atiraram às suas águas!... Homens e mulheres transitavam desesperados: uns ensangüentados, outros estorcendose no
suplício das dores pelo envenenamento, e, o que era pior, deixando à mostra o reflexo das
entranhas carnais corroídas pelo tóxico ingerido, enquanto outros mais, incendiados, a gritarem por
socorro em correrias insensatas, traziam pânico ainda maior entre os companheiros de desgraça, os
quais receavam queimarse ao seu contacto, todos possuídos de loucura coletiva! E coroando a
profundeza e intensidade desses inimagináveis martírios – as penas morais: os remorsos, as
saudades dos seres amados, dos quais se não tinham notícias, os mesmos dissabores que haviam
dado causa ao desespero e que persistiam em afligir!... E as penas físicomateriais: – a fome, o
frio, a sede, exigências fisiológicas em geral, torturantes, irritantes, desesperadoras! A fadiga, a
insônia depressora, a fraqueza, o delíquio! Necessidades imperiosas, desconforto de toda espécie,
insolúveis, a desafiarem possibilidades de suavização – oh! A visão insidiosa e inelutável do
cadáver apodrecendo, seus fétidos asquerosos, a repercussão, na mente excitada, dos vermes a
consumirem o lodo carnal, fazendo que o desgraçado mártir se supusesse igualmente atacado de
podridão!
Coisa singular! Essa escória trazia, pendente de si, fragmentos de cordão luminoso,
fosforescente, o qual, despedaçado, como arrebentado violentamente, desprendiase em estilhas
qual um cabo compacto de fios elétricos arrebentados, a desprenderem fluidos que deveriam
5 Em várias sessões práticas a que tivemos ocasião de assistir em organizações espíritas do Estado de Minas Gerais, os videntes eram concordes em afirmar que não percebiam apenas o Espírito atribulado do suicida a comunicarse, mas
também a cena do próprio suicídio, desvendandose às suas faculdades mediúnicas o momento supremo da trágica ocorrência. (Nota da médium) permanecer organizados para determinado fim. Ora, esse pormenor, aparentemente insignificante,
tinha, ao contrário, importância capital, pois era justamente nele que se estabelecia a
desorganização do estado de suicida. Hoje sabemos que esse cordão fluídicomagnético, que liga a
alma ao envoltório carnal e lhe comunica a vida, somente deverá estar em condições apropriadas
para deste separarse por ocasião da morte natural, o que então se fará naturalmente, sem choques,
sem violência. Com o suicídio, porém, uma vez partido e não desligado, rudemente arrancado, despedaçado quando ainda em toda a sua pujança fluídica e magnética, produzirá grande parte dos
desequilíbrios, senão todos que vimos anotando, uma vez que, na constituição vital para a
existência que deveria ser, muitas vezes, longa, a reserva de forças magnéticas não se haviam
extinguido ainda, o que leva o suicida a sentirse um "mortovivo" na mais expressiva significação
do termo. Mas, na ocasião em que pela primeira vez o notáramos, desconhecíamos o fato natural, afigurandosenos um motivo a mais para confusões e terrores. Tão deplorável estado de coisas, para a compreensão do qual o homem não possui
vocabulário nem imagens adequadas, prolongase até que as reservas de forças vitais e magnéticas
se esgotem, o que varia segundo o grau de vitalidade de cada um. O próprio caráter individual
influi na prolongação do melindroso estado, quando o padecente for mais ou menos afeito às
atrações dos sentidos materiais, grosseiros e inferiores. É pois um complexo que se estabelece, que
só o tempo, com extensa cauda de sofrimentos, conseguirá corrigir.
Um dia, profundo alquebramento sucedeu em meu ser a prolongada excitação. Fraqueza
insólita conservoume aquietado, como desfalecido. Eu e muitos outros cômpares de minha
falange estávamos extenuados, incapazes de resistirmos por mais tempo a tão desesperadora
situação. Urgência de repouso fazianos desmaiar freqüentemente, obrigandonos ao recolhimento
em nossas desconfortáveis cavernas. Não se tinham passado, porém, sequer vinte e quatro horas desde que o novo estado nos
surpreendera, quando mais uma vez fomos alarmados pelo significativo rumor daquele mesmo
"comboio" que já em outras ocasiões havia aparecido em nosso Vale. Eu compartilhava o mesmo antro residencial de quatro outros indivíduos, como eu
portugueses, e, no decorrer do longo martírio em comum, tornáramonos inseparáveis, à força de
sofrermos juntos no mesmo tugúrio de dor. Dentre todos, porém, um sobremaneira me irritava, predispondome à discussão, com o usar, apesar da situação precária, o monóculo inseparável, o
fraque bem talhado e respectiva bengala de castão de ouro, conjunto que, para o meu conceito
neurastênico e impertinente, o tornava pedante e antipático, num local onde se vivia torturado com
odores fétidos e podridão e em que nossa indumentária dirseia empastada de estranhas
substâncias gordurosas, reflexos mentais da podridão elaborada em torno do envoltório carnal. Eu,
porém, esqueciame de que continuava a usar o "pincenez" com seu fio de torçal, a sobrecasaca
dos dias cerimoniosos, os bigodes fartos penteados... Confesso que, então, apesar da longa
convivência, lhes não conhecia os nomes, No Vale Sinistro a desgraça é ardente demais para que
se preocupe o calceta com a identidade alheia... O conhecido rumor aproximavase cada vez mais...
Saímos de um salto para a rua... Vielas e praças encheramse de réprobos como das
passadas vezes, ao mesmo tempo em que os mesmos angustiosos brados de socorro ecoavam pelas
quebradas sombrias, no intuito de despertarem a atenção dos que vinham para a costumeira
vistoria...Até que, dentro da atmosfera densa e penumbrosa, surgiram os carros brancos, rompendo
as trevas com poderosos holofotes. Estacionou o trem caravaneiro na praça lamacenta. Desceu um pelotão de lanceiros. Em seguida, damas e cavalheiros, que pareciam
enfermeiros, e mais o chefe da expedição, o qual, como anteriormente esclarecemos, se
particularizava por usar turbante e túnica hindus. Silenciosos e discretos iniciaram o reconhecimento daqueles que seriam socorridos. A
mesma voz austera que se diria, como das vezes anteriores, vibrar no ar, fez, pacientemente, a
chamada dos que deveriam ser recolhidos, os quais, ouvindo os próprios nomes, se apresentavam
por si mesmos. Outros, porém, por não se apresentarem a tempo, impunham aos socorristas a necessidade
de procurálos. Mas a estranha voz indicava o lugar exato em que estariam os míseros, dizendo
simplesmente: “– Abrigo número tal... Rua número tal...” Ou, conforme a circunstância: “– Dementado... Inconsciente... Não se encontra no abrigo... Vagando em tal rua... Não
atenderá pelo nome... Reconhecível por esta ou aquela particularidade...” Dirseia que alguém, de muito longe, assestava poderosos telescópios até nossas
desgraçadas moradas, para assim informar detalhadamente do momento decorrente a expedição
laboriosa... Os obreiros da Fraternidade consultavam um mapa, iam rapidamente ao local indicado e
traziam os mencionados, alguns carregados em seus braços generosos, outros em padiolas... De súbito ressoou na atmosfera dramática daquele inferno onde tanto padeci, repercutindo
estrondosamente pelos mais profundos recôncavos do meu ser, o meu nome, chamado para a
libertação! Em seguida, ouviramse os dos quatro companheiros que comigo se achavam presentes
na praça. Foi então que lhes conheci os nomes e eles o meu.
Disse a voz longínqua, como servindose de desconhecido e poderoso altofalante: “– Abrigo número 36 da rua número 48 – Atenção!... Abrigo número 36 – Ingressar no
comboio de socorro – Atenção!... – Camilo Cândido Botelho – Belarmino de Queiroz e Souza –
Jerônimo de Araújo Silveira – João d'Azevedo – Mário Sobral – Ingressarem no comboio...”
6
Foi entre lágrimas de emoção indefinível que galguei os pequenos degraus da plataforma
que um enfermeiro indicava, atencioso e paciente, enquanto os policiais fechavam cerco em torno
de mim e de meus quatro companheiros, evitando que os desgraçados que ainda ficavam subissem
6 Perdoarmeá o leitor o não transcrever na integra os nomes destas personagens, tal como foram revelados pelo autor destas páginas. (Nota da médium) conosco ou nos arrastassem no seu turbilhão, criando a confusão e retardando por isso mesmo o
regresso da expedição. Entrei. Eram carros amplos, cômodos, confortáveis, cujas poltronas individuais como que
estofadas com arminho branco apresentavam o espaldar voltado para os respiradores, que dirse
iam os óculos das modernas aeronaves terrenas. Ao centro quatro poltronas em feitio idêntico, onde se acomodaram enfermeiros, tudo indicando que ali permaneciam a fim de guardarnos. Nas portas de entrada liase a legenda entrevista antes, na flâmula empunhada pelo
comandante do pelotão de guardas:
Legião dos Servos de Maria
Dentro em pouco a tarefa dos abnegados legionário estava cumprida. Ouviuse no interior
o tilintar abafado de uma campainha, seguido de movimento rápido de suspensão de pontes de
acesso e embarque dos obreiros. Pelo menos foi essa a série de imagens mentais que concebi... O estranho comboio oscilou sem que nenhuma sensação de galeio e o mais leve balanço
impressionassem nossa sensibilidade. Não contivemos as lágrimas, porém, em ouvindo o
ensurdecedor coro de blasfêmias, a grita desesperada e selvagem dos desgraçados que ficavam, por
não suficientemente desmaterializados ainda para atingirem camadas invisíveis menos compactas. Eram senhoras que nos acompanhavam, por nós velando durante a viagem. Falaramnos
com doçura, convidandonos ao repouso, afirmandonos solidariedade. Acomodaramnos cuidadosamente nas almofadas das poltronas, quais desveladas, bondosas irmãs de Caridade... Afastavase o veículo... A pouco e pouco a cerração de cinzas se ia dissipando aos nossos
olhos torturados, durante tantos anos, pela mais cruciante das cegueiras: – a da consciência
culpada!
Apressavase a marcha... O nevoeiro de sombras ficava para trás como pesadelo maldito
que se extinguisse ao despertar de um sono penoso... Agora as estradas eram amplas e retas, a se
perderem de vista... A atmosfera faziase branca como neve... Ventos fertilizantes sopravam, alegrando o ar... Deus Misericordioso!... Havíamos deixado o Vale Sinistro!... Lá ficara ele, perdido nas trevas do abominável!... Lá ficara, incrustado nos abismos invisíveis criados pelo pecado dos homens, a fustigar a
alma daquele que se esqueceu do seu Deus e Criador!
Comovido e pávido, pude, então, elevar o pensamento à Fonte Imortal do Bem Eterno, para humildemente agradecer a grande mercê que recebia!
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Memórias de um Suicida
SpiritualCom orientação do Espírito Léon Denis, o autor espiritual Camilo Castelo Branco, sob o pseudônimo Camilo Cândido Botelho, descreve à médium Yvonne A. Pereira sua dolorosa experiência após a desencarnação pelo suicídio. O livro visa mostrar a miseric...