Anna ou Kalestra

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Continuei tirando agulhas, pinças, seringas e várias outras coisas das caixas, tirei as que estavam vazias e coloquei do lado fora junto com outras sacolas de lixo, enquanto estava voltando, passei pela menina loira e ela me mandou um olhar tão furioso que poderia ter matado qualquer pessoa, sorri e continuei andando. Quando entrei Guilherme estava olhando para aquela cadeira estranha.

- Está montada, só faltam outras três.

- E onde elas estão?

- No armazém – Andei até o canto e sentei apoiando as costas na estante – Está tudo bem?

Ele se aproxima sentando ao meu lado.

- Sim, só estou cansada, suja e principalmente, com fome.

Ele sorri, anda até uma bolsa e tira duas maças, volta a sentar do meu lado, só que dessa vez mais perto, seu braço fica apoiando no meu, ele me entrega uma delas e me olha sorrindo

- Se você tivesse dito isso antes, eu teria lhe dado uma.

- Obrigada – Dei uma mordida e sorri, a maça é doce, bem vermelha, diferente das que eu comi na cabana, as vezes eu tinha que morder com cuidado, para não acabar comendo uma parte estragada – Está um delicia. Para que serve essas cadeiras?

- Você não sabe?

Ele me olha como se eu fosse um alienígena, como se fosse obrigatório eu saber para que serve toda aquela parafernália.

- Não faço a menor ideia.

- É uma cadeira de dentista, você senta e ele mexe na sua boca. – Alterno o olhar entre ele e a cadeira.

- Por que alguém iria querer mexer na minha boca? Que coisa nojenta.

Ele ri, dessa vez é um daqueles sorrisos que mostra todos os seus dentes perfeitamente alinhados.

- Você nunca teve uma dor de dente? – Nego com a cabeça – Você é uma menina estranha, todo mundo conhece essa cadeira.

- Eu não.

- Onde você cresceu? Tipo na cidade, fazenda, cinco séculos atrás?

- Na floresta.

- E você não foi para a escola?

- Não, me ensinaram em casa – Eu resolvi não mentir, apenas ocultar algumas coisas, o coveiro não queria me ensinar a ler, mas havia um rapaz, ele era muito jovem e gostava de mim, ele lia todas as noites antes de eu dormir e então me ensinou a ler, eu já sabia um pouco, mas ele também me ensinou a escrever, fazer contas e um pouco de ciências, o coveiro nunca disse nada a respeito, por mais que ele odiasse a ideia, mas quando eu fiz doze anos, ele tentou me ajudar a fugir, quando me pegaram, eles chicotearam o rapaz, como um aviso, para ninguém nunca mais me ajuda e foi o que aconteceu, nunca mais vi ele, o coveiro ainda me dava livros, como um sinal de boa fé, mas não me ensinou nada.

- Eu entendo.

- Vamos voltar ao trabalho?

Levanto e ele também, reviro algumas caixas, tentando colocar alguma espécie de ordem perto da cadeira.

- Vou até o galpão pegar a outra cadeira. Tudo bem você ficar um pouco sozinha?

- Sem problemas.

Ele saiu e fiquei mexendo no armário, colocando alguns remédios no lugar, um com o nome mais estranho que o outro, entrei em uma pequena sala, que é anexa ao consultório, ouvi um barulho na porta, Guilherme voltou muito rápido, provavelmente foi correndo, sai para ajudar ele a entrar com a cadeira, mas era outro homem, moreno alto, cabelos pretos e uma barba no mesmo tom, seus olhos castanhos escuros estavam focados em mim.

- Posso ajudar?

- Você é a Anna?

- Sim – Forcei meus olhos um pouco e pude ver a sua áurea preta, estava escorrendo por seus braços, aquela gosma repugnante, eles me encontraram, arregalei os olhos e fiquei paralisada, antes que eu pudesse ter qualquer tipo de reação, ele tirou uma arma do bolso, atirou em mim uma espécie de fios que descarregaram uma onda de choque, fazendo cada musculo do meu corpo tremer, cai no chão e tudo ficou escuro.

******

Voltei a correr na floresta, mas era dia e por todos os lados que olhava só via arvores, continuem correndo, sai em um campo aberto, gritei por socorro, mas não ouvi resposta, então a encontrei, meu outro eu, meu reflexo, com a mesma roupa e aquele lampião vermelho.

- Eu disse para tomar cuidado.

- Me ajuda.

- Você tem que acordar e lutar.

Ela estava furiosa.

- Quem é você?

- Eu sou você, eu sou Kalestra.

Assustei, recuei alguns passos e ela veio para perto, em um simples pisca de olhos, ela estava ali, na minha frente, sua testa colada na minha.

- Eu sou a Anna – Gritei e ela me pegou pelos braços, deixando o lampião cair.

- Não, seu nome é Kalestra. Você consegue se lembrar, seu pai fez isso com você, nosso pai.

- Me deixa em paz – Gritei e tentei me libertar, mas ela era muito mais forte que eu.

- Eles nunca vão deixar você em paz, então lute, você é Kalestra.

Ela me soltou e eu cai em um abismo branco, gritei e lutei, tentando segurar em algo que me fizesse parar de cair.

****

Sentei na cama, estava em um quarto branco bem pequeno, Guilherme, Gabriel e Luiza estavam me olhando assustados, a áurea de Gabriel e Luiza eram vermelhas, como a de todos os casais apaixonados, mas foi a de Guilherme que me chamou atenção, é branca com as beiradas douradas, nunca havia visto nada assim antes. Mexi um pouco na cama, mas eles recuaram assustados.

- Anna, o que está acontecendo com você? – Luiza apontou para alguma coisa acima da minha cabeça.

- O que? – Olhei para cima e aquela luz colorida e brilhante que antes só consegui fazer se concentrar em minhas mãos, agora estava acima da minha cabeça.

- Esta por todo lugar Anna. – Luiza faz um sinal mostrando todo meu corpo.

Olho para os meus braços e pernas, elas estão mesmo em todo lugar, por todo o meu corpo, levanto da cama e eles recuam até ficarem prensados em uma parede.

- Eu não vou machucar vocês.

- Isso só pode ser radiação – Guilherme recua, ele está com um olho roxo e o lábio inferior cortado – Nós vamos te ajudar Anna.

- Isso não é radiação, é outra coisa.

Fecho os olhos e me concentro, isso nunca aconteceu, então não faço a menor ideia de como posso reverter, seguro o colar com o dragão, começo a puxar tudo para dentro, sinto meu peito ficar cheio e pesado, está difícil de respirar, caio de joelhos no chão, parece que tem milhões de toneladas jogando meu corpo para baixo, Luiza corre na minha direção, levanto a mão e ela para.

- Sumiu Anna, deixa eu te ajudar – Guilherme me pega no colo e carrega até a cama – O que foi isso Anna?

- Eu contei para eles amiga, desculpa. Um homem veio atrás de você, ele colocou uma faca o seu peito, o Guilherme chegou na hora e te salvou, mas quando você começou a curar sozinha e rápido demais, eu não tive mais como esconder.

- Quem mais sabe?

- Só nos três.

Guilherme segura a minha mão, olho para a minha camisa e ela está rasgada, com várias marcas de sangue.

- Eu não sei o que está acontecendo, mas tem algo errado, muito errado.

- Não importa o que seja, nós vamos ajudar você.

Ele sorri, sinto um leve arrepio na espinha.

- Anna, controla, está voltando – Luiza fala recuando, dessa vez a luz ilumina todo o quarto.

AnnaOnde histórias criam vida. Descubra agora