30/07/2010
— Bom dia, Mônica. - Cumprimentou o psicólogo que estava atrás de sua mesa, organizando alguns papeis.
— Bom dia, doutor Omer. - Mônica sentou-se na cadeira que ficava em frente à mesa do doutor Omer, e pôs sua bolsa em seu colo.
Doutor Omer foi a recomendação de Brenda para as terapias regulares de Mônica. Omer era filho de turcos que vieram para o Brasil um pouco antes dele nascer. Ainda que seja de família tradicional muçulmana, o psicólogo era ateu e acreditava que tudo que o fim da vida era o fim de tudo, e para aproveitar melhor o longo tempo curto que é a vida, ele resolveu se especializar em psicologia para entender e ajudar as pessoas a passarem os problemas dessa passagem única na terra.
— Então, hoje faz uma semana que nos vimos... me conte, como foi sua semana? - Omer pegou uma folha em branco e tomou em mãos sua caneta metálica e esperou Mônica começar a falar para que pudesse escrever ali as palavras da paciente.
Mônica respirou fundo antes de começar a falar.
— Me sinto péssima, doutor. Eu recebo muito apoio da minha melhor amiga, Vitória, da Brenda, enfim, de muitas pessoas. Mas, é como se aquilo fosse superficial, sabe? Nenhuma delas está sofrendo com a ausência da Cléo, nenhuma delas perde a noite de sono por causa de um pesadelo, por causa da incerteza... - Mônica fitou o rosto do psicólogo, que possuia traços verdadeiramente turcos: Olhos castanhos, nariz grande e curvado, cabelos lisos com fios grossos. - Algo me diz que minha filha ainda está viva, e que estão me escondendo alguma coisa, mas há também alguma coisa que me diz que a Cléo já morreu há tempos, e que eu deveria esquecer isso. - Mônica deixava algumas lágrimas rolarem por seu rosto negro e fungou para não começar a chorar. Queria parar de chorar o tempo todo.
— Você já chegou a pensar que a Cléo, a própria Cléo poderia sair de casa e simplesmente ir morar com alguém que ela conheceu na internet, ou coisa do tipo?
— Olha... já pensei, mas é uma hipóteses distante, doutor Omer. Apesar da Cléo ter me escondido algumas coisas, que eu infelizmente descobri depois, ela não ia ficar muito tempo longe sem dar notícias, nem pra mim, nem pro melhor amigo dela.
— Melhor amigo? Quem seria esse melhor amigo da Cléo?
— Vicente é o nome dele. Ele é irmão da Vitória, minha melhor amiga. A família dele está me dando muita força, sabe? Eles eram muito amigos, e eu percebo que a falta dela também afeta ele.
Omer franziu o cenho e apoiou o cotovelo na mesa, fazendo uma ponte com as mãos para que pudesse colocar seu queixo em cima.
— Você não acha que o Vicente pode saber sim sobre alguma coisa, mas não contar nada pra você? - Mônica ficou alguns segundos sem responder nada, e pensou bem antes de começar a falar.
— Eu percebo que a falta dela afeta a ele também, mas isso não significa que eu não ache que ele também pode vir a ter alguma coisa com isso.
— por que?
— Intuição. Eu não sei, mas alguma coisa me diz que ele tem sim alguma coisa a ver com isso, apesar de ser sempre prestativo, mas ele é o mais sereno de todos nós. Pro nível de amizade que eles tinham, era no mínimo esperável que ele fosse se entristecer, ou qualquer coisa do tipo, mas ele não.
— Espera, você está se contradizendo então, Mônica. Você disse que o Vicente se afetou com o desaparecimento da sua filha, mas ao mesmo tempo você está dizendo que não, que ele não se afetou?
— Como eu vou explicar? A indiferença dele em relação ao desaparecimento da Cléo seria a forma de afetação, afinal, eles sempre foram muito juntos, apesar da diferença de idade dos dois. Ele fez 28 anos e ela vai fazer 17.
— Acho que entendi seu ponto de vista.
João Vicente fritava batatas de saco para o almoço. Desde o dia do hospital, um pedido feito por seu filho fez toda sua rotina mudar abruptamente. Vicente sugeriu que Cléo fosse para casa de seu pai, para que ele pudesse não perdê-la de vista. João, que já estava sóbrio, relutou, disse que não ia levar ninguém que não fosse de sua responsabilidade para sua casa, afinal, a menina estava desaparecida há bastante tempo, e o melhor a se fazer naquele momento era levá-la de volta para casa. Então Vicente exaltou-se, disse que se Cléo não pudesse ficar lá, João que nunca mais cogitasse em falar com ele novamente. Vicente era a única pessoa que João possuía vínculos, perder qualquer contato com o filho abriria brecha para uma ilha de solidão eminente que ele sempre temeu em toda sua vida, e já que era assim a dança imposta, ele iria ajudar seu filho para não perdê-lo.
João jogou as batatas fatiadas no óleo quente, e correu pra longe da panela, para que nenhum respingo caísse nele. Assim que as batatas terminaram de serem fritas, ele pegou a espumadeira e retirou todas do óleo quente, pondo-as dentro de um prato forrado com papel toalha. O homem abriu seu armário e pegou uma bandeja, colocando uma vasilha de cerâmica pequena com arroz, uma com feijão, talheres, um prato com bife e em cima do bife, as batatas fritas.
Saiu da cozinha e foi para o segundo andar, no terraço, onde era o antigo quarto de Vicente, mas ao prostar-se em frente a porta, atrapalhou-se, já que a chave para abrir o quarto estava no bolso de trás, e como ele estava segurando a bandeja, não teria como pegar. Bufou e colocou a bandeja no chão, e pegou a chave no bolso de trás, depois recuperou com a mão direita a bandeja e abriu porta com a esquerda.
— Trouxe seu almoço. - Comentou João, adentrando o antigo quarto de seu filho.
Cléo estava deitada na antiga cama de casal de Vicente, e assistia televisão, já que não tinha o que fazer. Infelizmente, havia sido capturada mais uma vez, mas agora, Cléo estava saturada de fugir, resolveu ir com Vicente por livre e espontânea vontade.
João foi até a menina e colocou a bandeja em cima da cama, e sentou-se ao lado, para esperar Cléo almoçar.
— Fiz seu prato favorito, segundo o Vicente. Acertei?
— Era... - Cléo fitava o bife inteiro, o que fez João perceber que ela não podia mais cortar aquele bife devido a perda dos movimentos de sua mão esquerda.
— Ah é, o bife. - João pegou a faca e o garfo e começou a fatiar a carne, para que a menina pudesse ter mais facilidade ao comer.
Cléo não sorria mais, não se alegrava mais, não se satisfazia mais. Pegou o garfo da mão de Vicente e misturou o arroz e o feijão com a batata e o bife e começou a comer, em silêncio.
Exausta de fugir de Vicente, quando este abordou-a exigindo que fosse embora com ele, Cléo decidiu aceitar, pois no fundo, no fundo, alguma coisa dizia a ela que cedendo ele poderia ficar com ela por um tempo e depois libertá-la. Dessa vez não havia solidão também, já que João estava sempre indo lá conversar, ainda que ela quase nunca respondesse nada, era muito melhor do que da última vez que ficou definitivamente solitária. Entretanto, ela continuava sendo trancada, e toda vez que João saía, ela voltava ficar presa ali dentro do quarto, que possuía um banheiro.
—O que você estava assistindo? - Perguntou João, olhando para a televisão.
— Desenho. Que dia é hoje, joão? - Foi a vez de Cléo perguntar.
— Hoje é sexta, dia 31 de julho. - Cléo mastigou sua comida com a boca fechada, em silêncio, enquanto observava João Vicente. Vicente já havia falado sobre o pai milhares de vezes, mas João era um homem bom de coração, mas temia a solidão e a perda de qualquer contato com o filho.
— João, você ligou pra Vitória, não ligou?
— Sim. - Cléo havia acordado com João receber notícias de sua mãe sempre que possível. - Ela disse que sua mãe começou a fazer terapia. - Cléo engoliu a comida em sua boca, e deixou uma lágrima solitária rolar por seu rosto.
— Será que ela está tentando me esquecer?
— Claro que não, Cléo! Nenhum pai e nenhuma mãe esquece os filhos assim.
— Isso é mentira! Meu pai nunca quis saber de mim, você acha que eu por acaso represento alguma coisa pra ele? - Cléo deu um riso irônico - Você conseguiu dormir essa semana sabendo que graças ao seu filho existem duas pessoas que estão sofrendo o diabo?
João Vicente respirou fundo e balançou a cabeça negativamente.
— Cléo... não dá pra você entender, só quando você tiver um filho você vai entender como é.
— Como é... Você é uma pessoa boa, João, não deveria estar ajudando uma insanidade do seu filho.
— É que eu tenho muito medo de ficar sozinho, do meu filho me deixar... - João começou a chorar. Cléo olhou compadecida para aquele homem infeliz. Não era velho, mas tinha uma péssima autoestima, a ponto de não conseguir se impor e ser feito de fantoche pelo filho.
— Eu prometo que se você me deixar sair, me deixar voltar eu te visito regularmente, te ligo, mantenho contato com você pra não te deixar sozinho, mas por favor, me deixa sair daqui!
— Meu filho pode ir preso se descobrirem que ele quem te prendeu aqui...
— Eu prometo que não delato ele pra polícia. Por favor, João... - João ficou de pé, pegou a bandeja que estava sob as pernas de Cléo e saiu, deixando a garota lá, sozinha, trancada.
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Estocolmo
RandomUm amor obsessivo e uma vítima. Às vezes, a mente promove situações irreais, onde nem sempre o que queremos é o que teremos. Mas, para Vicente, manter Cléo em cárcere durante anos, fazendo-a perder parte da vida dentro de um local onde apenas ele ti...