Há uma escuridão convidativa no salão vazio que me atrai. Dou um passo à frente, desinibida de qualquer medo. Um passo após o outro sem hesitar. Sinto uma corrente eletrizante percorrer minhas veias quando avisto seu contorno alto e sobremaneira forte. Ao invés de recuar assustada, eu avanço. Quanto mais perto tento chegar, mais distante ele parece estar. De repente, ele desiste de fugir, vira-se e vem ao meu encontro. Meu corpo vibra com a expectativa da aproximação. Quando estamos finalmente a alguns centímetros de distância, ouço-o dizer... "Você não devia estar aqui", mas antes que eu faça qualquer movimento para me retirar do recinto, ele me agarra pela cintura, mantendo-me unida ao seu corpo e me beija. Me beija indecorosamente nos lábios...Eu acordo atordoada e ofegante. Estou louca. Definitivamente louca, embora ainda não diagnosticada por um médico. Essa é a única razão justificável para ter sonhado com o cavalariço. Afinal, eu somente vi o homem por um breve momento. Apenas sei o seu nome e ocupação, o que, por si só, deveria bastar para impedir qualquer devaneio meu. Entretanto, fui traída pela minha própria mente que nos aproximou em sonho. "Se não pode ser real, permita-se, ao menos, na imaginação..." Um tremor atinge toda a extensão da minha coluna ao pensar no perigo de nutrir tais pensamentos. Ele é totalmente proibido para mim. E eu sou igualmente inalcançável para ele.
Levanto-me decidida a enterrar na cama meus sonhos com o cavalariço e a reprimir essa sensação de arrebato que sinto em saber que posso encontrá-lo pela propriedade. Vou até o quarto de vestir para me trocar e começar o dia. É isso que eu preciso: atarefar-me. A ociosidade jamais me encantou e ainda mais agora que desfruto meus últimos dias de uma parca liberdade antes de ser propriedade de um marido. Mais do que nunca preciso aproveitar o tempo que me resta. Visto-me com a minha melhor roupa de montaria e desço as escadas determinada a simplesmente desfrutar de minha manhã.
_Vai sair para cavalgar? - Encontro meu pai ao passar pelo saguão em direção à porta principal.
_Bem, milorde, minha vestimenta não deixa margem para dúvidas. – Respondo sem me dar ao trabalho de cumprimentá-lo. Eu o odeio. E odeio, principalmente, não conseguir deixar de amá-lo. – A não ser que o senhor também tenha resolvido me privar dessa pequena alegria e se esqueceu de me comunicar.
_Sugiro que reavalie o tom de voz que usa para se dirigir a mim. – Diz o Conde, com um tom de voz ligeiramente enfadonho e ao mesmo tempo mordaz. – O fato de não convivermos habitualmente deve ter lhe dado a enganosa ideia de que tolerarei suas impertinências.
_Não ouso alimentar nenhuma ideia ao seu respeito milorde, visto que não somos mais que meros desconhecidos um para o outro. – Retruco, disposta a enfrentá-lo. – É uma brincadeira cruel do destino que também somos pai e filha.
O Conde, para meu desalento, não parece minimamente atingido por meus insultos. E sim o contrário, é como se ele alimentasse um prazer sádico ao ver os que estão à sua volta ruírem em descontrole, enquanto permanecesse impassível igual uma rocha.
Sua única reação é conceder-me uma risada amarga e dispensar-me com um sacudir de mão. Saio rumo à porta, mas não sem antes ouvi-lo dizer:
_Não fique perambulando pela propriedade o dia todo. Hoje iremos ao baile do duque de Grafton e quero você descansada.
_Como queira. - dou de ombros, ciente que o gesto pouco gracioso o desagrada.
Enquanto caminho em direção ao estábulo esforço-me para admirar a paisagem ou para pensar na história do último livro que li, mas todos meus intentos de tentar me acalmar estão fracassando. Já não bastasse, após anos sem me conceder-me uma visita, ou, ao menos, uma carta, o conde de súbito arrastar-me até Londres para me casar. Ainda necessito controlar as emoções que começaram a surgir desde o dia anterior. Eu senti algo quando o vi, meu corpo reagiu quando nos tocamos. É a primeira vez em vinte e três anos de existência que vivencio esse sentimento. Isso me atemoriza. Durante vinte três anos eu aprendi do pior modo que a nossa sociedade é dividida, e, que não é permitido cruzar tais limites. A aristocracia e o resto. É assim que meu pai define. O meu problema é que eu sempre enxerguei apenas pessoas.
Logo que eu adentro o estábulo o avisto. Ele está penteando a crina de Hércules, o puro sangue preferido do conde. Henrique emprega tanta atenção à simples tarefa que me parece que o cavalariço tem grande apreço pelo animal. Ele sequer nota minha chegada. Tento ignorar minha pulsação acelerada e me concentro no motivo que me levou ali.
_Bom dia, Timothy. - cumprimento o ajudante de cavalariço que está limpando uma das baias. – Que bom revê-lo. Como vai Mary e as crianças?
Henrique continua não me notando. Ou, se tomou conhecimento de minha presença, não me considera merecedora de um simples olhar seu. Eu não me importo. Não estou aqui para impressioná-lo e sim para cavalgar. E não estou decepcionada. Essa leve dor no meu coração certamente é porque andei bem depressa para chegar aqui.
_Bom dia, milady. – Timothy faz uma reverência desajeitada – Estão todos bem. O meu rapaz já é quase um homem, às vezes ele trabalha aqui na propriedade fazendo alguns reparos. Mas em que podemos servi-la, milady?
_Eu pretendo cavalgar. Por favor, sele Aurora para mim.
_Ela não está no estábulo. – A voz de Henrique é baixa e grave. Ele lentamente se vira e faz uma reverência discreta em minha direção quando nossos olhares se cruzam. – A égua foi levada para se banhar perto do rio, milady.
_Bom dia, senhor Hutler. - ele parece surpreso por eu saber o seu nome. – Ela irá demorar a ser trazida de volta?
_Acredito que até a égua secar totalmente demorará um pouco. Mas, eu posso selar outro cavalo para a senhorita.
_Eu agradeço sua oferta, entretanto, terei que recusar. Aurora e eu já estamos acostumadas uma a outra.
_Há vários cavalos mansos e bem adestrados no estábulo, se essa for sua preocupação, milady.
_Minha recusa não é fundada no medo de montar outro cavalo, mas, sim porque eu gosto de passar esse tempo na companhia de Aurora – Assim que termino de falar distingo em seu rosto um riso sendo contido. - Eu lhe disse algo engraçado, senhor Hutler?
_De forma alguma, milady. Peço perdão se de alguma forma lhe ofendi. – Ele desvia o olhar e volta a pentear Hércules. Posso notar seu medo de que uma simples expressão no seu rosto seja motivo para aborrecer a filha do patrão.
Eu caminho até ele ansiando estender a conversa e paro apenas quando ciente que somente Henrique poderá ouvir meu sussurro.
_Olhe para mim. – Peço. Contudo, creio que ele interpretou como uma ordem, pois posso perceber uma irritação reprimida. – Você seria bondoso comigo e me contaria por que achou engraçado o que eu disse? - tento novamente. – Infelizmente a curiosidade é um defeito que eu cultivo.
Nós nos entreolhamos em silêncio pelo que parece um século antes dele responder.
_Eu apenas achei engraçado o modo como milady se referiu ao animal – Henrique explica por fim – Parecia que estava falando de uma amiga e não de uma égua.
_Para mim, Aurora é as duas coisas. – Digo com sinceridade.
Ele sorri timidamente com a minha resposta. Acabo sorrindo de volta. O seu sorriso atiça ondas de calor pelo meu corpo inteiro e não posso deixar de me perguntar se toda vez será assim. Se meu corpo sempre reagirá de forma intensa a este homem. Nosso momento é interrompido por Hércules que se põe a relinchar, requerendo novamente a atenção do cavalariço. Encontro-me sem saber o que dizer para competir com o equino pela atenção de Henrique.
_Não vou mais incomodá-lo, senhor Hutler. – Torço para que ele me contradiga, mas o vejo assentir em silêncio. - Tenha um bom dia de trabalho.
Giro em direção à porta sentindo um misto de felicidade e tristeza. Não compreendo por que eu fiquei tão contente quando ele sorriu – ainda que brevemente – e por que estou com saudade dele antes mesmo de sair do estábulo.
_Milady – Ele me chama, renovando minha empolgação. Entretanto, essa logo se dissolve quando vejo seu semblante austero. – No futuro, não há necessidade que venha pessoalmente até o estábulo. Basta informar a algum criado da casa e será providenciado que a égua seja levada até a lateral da propriedade.
_Entendo. – Respondo com desânimo, interpretando o recado oculto em sua fala. - A partir de hoje só virei aqui se indispensável.
Eu o incomodo. Desagradei-o vindo até aqui. Quero sair correndo e deixar as lágrimas que se formaram em meus olhos se desprenderem, mas me recuso. Eu já não sou mais uma menininha indefesa que teme a rejeição. Mantenho a cabeça erguida e a postura impecável.
_Nos vemos depois, Timothy. – Tento sorrir – Mande lembranças minhas a sua família.
_ Claro, milady.
Eu saio dali e caminho pelo longo percurso de volta à propriedade desapontada comigo mesma por ser tão suscetível a encantos masculinos. "Que tolice!" Já sobrevivi a coisas piores do que a indiferença de um homem. Na verdade, o senhor Hutler acaba de me prestar uma gentileza colocando-me no meu lugar. Não que eu não preferisse que ele tivesse ficado ao menos um pouco animado em me ver... Só que nada bom pode sair dessa minha recém-descoberta reação física por homens incrivelmente belos.
Reduzo meus passos para observar como o dia está bonito. O sol está quente e acolhedor no céu, raramente é assim. Não foi possível cavalgar, mas ainda posso caminhar e aproveitar o tempo agradável. Certamente isso me ajudará a esquecer o que se passou.
_Milady. – Ouço a última pessoa com quem eu gostaria de falar.
_Sim, senhor Hutler.
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[COMPLETO] A dama e o cavalariço
Historical FictionUma paixão proibida transformada em um amor que não pôde ser impedido. Quando Lady Isadora Pwenlly chegou a Londres para a temporada de 1826 estava resignada com o que o futuro lhe oferecia: um casamento por conveniência. O que a dama não previa é q...