Correndo contra o tempo

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Quando eu era pequena, ouvia minha avó falar sobre saudades: saudades da época em que era jovem, saudades de amigos... São tantas as saudades das quais ela me falava que não sou capaz de recordar exatamente todas. O ponto em questão é que eu não entendia a saudade. Não de verdade. O mais perto que eu tinha chegado de sentir saudade era o tempo das férias em que eu ficava longe das minhas colegas de escola por algum tempo. Hoje, sei o que é sentir saudades de verdade.
Aqui, nesse país estranho, longe dos meus pais, dos meus irmãos e de toda minha família, descobri que a saudade é quando você deixa um pedaço de você em algum lugar e a cada segundo sente falta desse pedaço vazio em você. Mas, eu não podia continuar lá. Não aguentaria mais um dia ver meus irmãos sem ter o que comer, um lugar decente para ficar, uma escola para estudar, pois a guerra devastou o pouco que tínhamos. A responsabilidade de mudar isso sempre foi minha afinal, sou a irmã mais velha e meus pais precisavam ficar e cuidar dos menores. Eu tive que partir.
Eu sinto saudades o tempo inteiro. Até o sol deste lugar não é tão quente quanto o da minha terra.
Meia-noite e eu ainda estou aqui organizando 150 pastas em ordem alfabética.  Além de mim e o meu chefe, não há mais ninguém na empresa. Letra S, falta pouco. O sono e o cansaço estão me desconcentrando.

-Kristine!!

Largo uma das pastas S no chão em frente a estante. Me levanto, um pouco cambaleando e sigo em direção ao grito do meu chefe. Entro em sua sala e ele diz:

-Kristine, quando eu te chamar você deveria se preocupar em vir mais rápido não acha? Eu tenho coisas muito mais importantes a fazer do que esperar você!

Engulo sua hostilidade pois, esse emprego informal é minha única forma de ajudar minha família. Apenas digo:

-Me desculpe, eu estava na sala no final do corredor então...

Ele me interrompe:

-Não tenho tempo e nem interesse em suas explicações. Te chamei aqui porque você tem mais pastas para organizar.

Ele aponta em direção a uma pilha que deve ter em torno de 40 pastas, e o pior, letras diferentes. Ele continua dizendo:

-Quero que organize elas também em ordem alfabética junto com as outras. Não demore muito, você tem sido muito devagar. Em alguns minutos, termino o que estou fazendo e quando eu terminar, vamos fechar tudo e ir embora mas, eu quero a estante arrumada perfeitamente de A até Z. Fui claro?

Me forço para não dar um longo suspiro de frustração, pego as novas pastas e retomo ao trabalho.
Depois de um pouco mais de meia hora, eu termino o trabalho. Fechamos a empresa e saímos do prédio. Meu chefe Ricardo Meyer, entra no seu carro que deve custar mais do que o dinheiro que eu já tive em toda minha vida. Eu pego minha bolsa que já está rasgando a alça e saio andando pela calçada em direção ao que posso chamar de casa. Ricardo passa com o carro ao meu lado, abaixa os vidros e juro que vejo um sorriso sínico despontando dos seus lábios. Ele decreta:

-Esteja aqui às 5:00 da manhã. Quero a sala de reuniões completamente limpa pois, terei uma reunião de suma importância para realizar. Então, sem atrasos porque a sala tem que estar limpa a tempo!

Assenti com a cabeça e continuei rumando em direção a minha nova casa. Sei que terei poucas horas para dormir considerando que já é madrugada e terei que voltar às 5:00 horas. Ao chegar, abro a porta com delicadeza evitando barulhos para não acordar Rosalinda mas, assim que abro a porta a vejo sentada no sofá. Digo:

-Rosalinda, achei que estivesse dormindo. Por quê ainda está acordada?

Ela levanta os óculos de grau e repousa na cabeça entre seus cabelos grisalhos. Com um suspiro, ela diz:

-Eu não consegui dormir. Hoje, foi uma daquelas noites em que as lembranças do meu filho se tornam vivas demais e fica difícil suportar sua morte.

Me sento ao lado dela no sofá e abraço-a. Ela se lamenta:

-Eu odeio as guerras, elas nos tiram tudo. Mesmo a guerra não sendo aqui, recrutaram o meu filho e o tiraram de mim. Agora ele está morto!! E toda essa desgraça por causa de uma guerra estúpida em busca de poder!

Rosalinda me olha nos olhos, segura as minhas mãos e assegura:

-Eu sei que você também está nessa situação. Você está longe da sua família porque a guerra está assolando seu país. Eu sinto muito mas, eu farei de tudo que puder para te ajudar Kristine! Eu não sairei do seu lado até que você possa voltar para sua família.

Eu Digo:

-Você já fez demais por mim. Eu não tenho como te agradecer! Um quarto só para mim?! Eu nunca tive isso! Muito obrigada, eu vou te recompensar assim que puder.

Ela sorri e diz:

-Sua companhia já é uma recompensa para essa velha aqui que antes estava solitária.

Beijo sua testa e digo:

-Nem parece que faz apenas 15 dias que você me acolheu aqui. Só tenho a agradecer mas, agora preciso descansar pois, em algumas horas tenho que voltar ao trabalho.

Ela franze o rosto e reclama:

-Ah minha filha, não aguento mais te ver nesse trabalho escravo. Fico preocupada com você andando por essas ruas perigosas tão tarde assim. Oro a Deus para proteger você! Espero que em breve, você pare de trabalhar para esse homem sem coração.

Eu respondo:

-Eu não tenho documento nenhum, não posso trabalhar em lugar nenhum. Tenho que agradecer por ele ter me dado esse emprego mesmo não sendo formal e nessas circunstâncias, é a única forma de mandar algum dinheiro para minha família.

Depois do boa noite, vou até meu quarto. É a primeira vez que tenho um cômodo só para mim mas, sinto falta de dividir aquele espaço pequeno com meus irmãos. Ao invés de ir dormir, abro minha gaveta vazia, afinal não tenho muitas coisas e não tinha como atravessar a fronteira trazendo tanta coisa, apenas caneta e folhas de papel em branco: minha única forma de comunicação com minha família. Começo a escrever:

Meus amados pais,

Eu sinto saudades de todos vocês o tempo inteiro, até de suas vozes carinhosas e das vozes agitadas dos meus irmãos. Por isso, estou planejando, assim que conseguir juntar dinheiro, comprar um celular e mandar para vocês. Assim, poderemos nos falar melhor e talvez a saudade amenize.
A Rosalinda é uma provisão de Deus na minha vida. Sem ter que pagar um lugar para ficar, sobrará mais dinheiro para mandar para vocês.
Como já contei, continuo trabalhando na empresa de móveis. O país é muito bonito e tem muitas oportunidades para quem vive aqui. Imagino como seria a nossa vida se morássemos aqui em Viana e não neste país de guerras.
Digam para a Maya, para o Calebe e para o Matias que eu os amo muito e que sinto a falta deles.
Espero que estejam seguros no abrigo. Me mandem notícias, se puderem!
Em breve, voltarei.

Com amor e saudades,

Kristine

Ao terminar a carta vejo que já são 3:00 da manhã. Me resta pouco descanso mas, valerá a pena pois, amanhã recebo meu pagamento.
Cada esforço é válido para cuidar das pessoas que eu mais amo.

Permanecer ou partirOnde histórias criam vida. Descubra agora