Mantenha o foco

99 11 5
                                    

Talvez um dia, quando tudo isso acabar, eu possa começar a estudar e ter uma vida diferente. Talvez eu fosse uma boa médica mas, uma faculdade de medicina custaria bem caro. No abrigo em Belta, meu país de origem, não tínhamos acesso à tantos remédios então, quando alguém adoecia, eu procurava ervas e folhas naturais, fazia chás e cremes para que o doente melhorasse. Guardávamos os poucos antibióticos que tínhamos para casos mais graves.
É impossível evitar a preocupação com minha família. Tudo lá é tão escasso. Espero que eles estejam bem e anseio por alguma carta deles. Espero que eles possam estar a salvo da violência, da fome e da doença tão constantes em Belta.
Queria que meus irmãos pudessem voltar a estudar. Maya daria uma ótima professora, ela sempre teve facilidade em aprender as poucas coisas que eu consegui lhe ensinar. Diferente dela, eu tive a oportunidade de frequentar a escola. Ela só tem 8 anos e só foi para a escola por alguns dia quando tinha 5 anos. A guerra fechou as portas da escola.
Espero que minha família não esteja sufocada pela ansiedade que é viver no abrigo. O medo constante de ataques, de não ter alimento suficiente e, até mesmo, não ter mais abrigo.
Ao terminar de limpar um dos corredores do quarto andar do prédio, vou usar o banheiro e lavar minhas mãos para ir ao refeitório. A melhor parte desse trabalho escravo é a hora do almoço, a comida que eles dão é deliciosa.
Entro em uma das cabines quando ouço vozes conversando:

-Você viu? Ela não pode nem mesmo usar o crachá! Isso faz muito mal para imagem da empresa! Não sei por qual motivo o Ricardo contratou ela!

-Pela aparência dela, ela não pode ser daqui e se não usa crachá deve ser por alguma ilegalidade. Brincadeira né, agora temos que trabalhar com essa mulher fora da lei!

-Será que ela cometeu algum crime?

-Eu não sei mas, a partir de agora vou tomar mais cuidado com meus pertences.

Quando me dou conta de que elas estão falando sobre mim sem nem mesmo conhecer minha história, abro furiosamente a porta da cabine e disparo dizendo:

-Olá senhoras, na verdade eu não cometi nenhum crime mas, se querem questionar a decisão do chefe de vocês, me digam seus nomes que eu mesmo apresento a queixa e aí, poderemos descobrir se é uma funcionária aplicada ou as funcionárias queixosas que fazem mal para imagem da empresa.

As duas moças, que são secretárias, me olham com assombro. Eu digo:

-Ok então, parece que não é isso que vocês querem. Obrigada por me avisarem!

Me dirijo até a porta de saída do banheiro, seguro-a porém, antes de sair, digo minhas palavras finais:

-E sou eu quem guarda os casacos e a bolsa de todas vocês no armário faz semanas. Eu nunca peguei e nem pegaria nada de vocês.

Com isso, fecho a porta e vou em direção ao refeitório.

🌻🌻🌻🌻🌻🌻🌻🌻🌻🌻🌻🌻🌻🌻🌻🌻🌻🌻🌻🌻🌻🌻🌻🌻🌻🌻🌻🌻🌻🌻

Fim do trabalho, tudo terminado e meu chefe me chama até sua sala. Eu entro e ele me cumprimenta:

-Olá Kristine! Aqui está seu pagamento! -Ele estende a mão e me entrega um envelope pardo -Você tem sido muito útil aqui na empresa.

Agradeço-o e sei que este é o mais perto que ele chegará de me elogiar. Guardo o dinheiro na minha mochila e solto meus cabelos negros. Nunca fui para casa tão feliz quanto hoje pois, além de sair mais cedo do que o habitual, estou levando o meu pagamento e finalmente poderei mandar algo para casa, ajudar Rosalinda e começar poupar para comprar um celular.
Ando mais tranquila, observando as lojas, praças e bares e sem a pressa costumeira. Faço o caminho de sempre. Sinto-me cada vez mais acostumada a este lugar.
Somente alguns minutos depois, apercebo-me de que a rua ficou deserta. Eu estava acreditando que ainda havia pessoas aqui. Agora, na rua escura e deserta, apresso meu passo.
De repente, ouço passos vindo um pouco atrás de mim. Sinto medo e vontade de me virar e descobrir quem são mas, decido seguir em frente. Em seguida, uma voz masculina grita:

Permanecer ou partirOnde histórias criam vida. Descubra agora