◆◇◆◇◆◇Não sei o que causa medo nas pessoas, mas deve ser uma substância poderosa. O meu, me faz tropeçar a caminho de casa. E também faz com que uma camada grossa de suor se forme sobre as curvas de minhas têmporas, me impedindo de enxergar o caminho tortuoso e estreito direito. A poeira emerge e paira como uma nuvem constante por todos os lados, vertendo do solo árido com insistência. Os pedregulhos soltos são afiados, lascas de rocha projetadas como armadilhas letais pelo caminho.
Em algum momento, alguém tivera a brilhante ideia de arrastar a maior parte dos entulhos e restos de construção para as veiradas do grande espaço, transformando a parte central do clã em uma grande clareira livre dos escombros mais incômodos. A parte ruim, é que a rota que antecede esse Bloco foi empilhada de qualquer forma, criando um labirinto perigoso cheio de curvas, declives, buracos escondidos, rampas nada instáveis, obstáculos de todo tipo e o pior de tudo: vários esconderijos geralmente utilizados pela parte mais pobre ou azarada do clã: idosos sem parentes mais jovens, gandarênses dizimados à morte por culpa de doenças letais e fugitivos da Área de Detenção se escondendo como ratos com medo. Atravessar isso aqui deve ser o mesmo que correr por um campo de guerra balançando uma bandeira vermelha... Tendo o péssimo pressentimento de ser a bandeira.
Eu estaria apavorada se não o fizesse todos os dias. O rumor da morte e da miséria aqui ecoa mais alto do que nos outros Blocos do clã. Até mais do que na Área da Detenção. O cheiro é pútrido e agonizante, se cristalizando em camadas grossas e quase impenetráveis pela atmosfera. Dá a sensação de que a morte está se grudando em seus membros, se enraizando em suas veias enquanto grita Não vou mais sair daqui!
Pelo menos, mamãe e Thomas ainda estão seguros, abaixo de um teto e entre quatro paredes já não tão resistentes, mas ainda assim, uma casa. Foi o último presente de meu pai. Só não consigo deixar de pensar por quanto tempo... E que minha Seleção pode interferir muito na projeção atual das coisas.
Há um trailer enferrujado e aberto como uma lata de sardinha em uma reentrância num monturo de terra alguns prédios abaixo. Seu interior foi forrado com trapos, e a recriação torta de uma mesa havia sido construída às pressas num dos cantos do âmbito raquítico. Era onde os ganderênses mais benevolentes depositavam suas oferendas. Leite, cevada, frutas secas, queijo ou milho. O ritual servia como uma troca. Os doadores de comida compactuavam silenciosamente com os Andarilhos dos Escombros: te dou isso e você deixa minha casa em paz. Sempre jogo algumas sementes ou parte do que consigo caçar ou surrupiar na mesa velha, pagando a cota do dia e assegurando que minha casa permaneça longe das vistas de qualquer Andarilho. Hoje, eles terão de se contentar com folhas de chá de calêndula. Jota não se importou de fazer algumas paradas pela mata, me apressando o tempo e lembrando "hoje é O dia. O Dia antes da Seleção! Rápido!". Como se eu pudesse esquecer.
Enrolo um pedaço da camiseta rasgada no rosto e o amarro na nuca, tampando a boca e o nariz. Até a possibilidade de morrer sufocada é melhor que sentir o cheiro. Não chamar atenção desnecessária é outra variável bastante importante, mas... Considerando meu estado num todo e a quantidade de ferimentos, sujeira, lama e sangue, tranquilamente me passo como uma das Andarilhas e doentes dos escombros, o que felizmente me livra de interseções indesejáveis vindas dos inquilinos que residem nas sombras. Não sou exatamente uma embaixadora quando se trata de relações exteriores com outros membros do clã, sejam eles doentes, ensandecidos ou não. Não sou comunicativa com pessoas num geral, e essa é toda a verdade.
Estou escalando os restos da estrutura óssea de um prédio em ruínas caído pelo caminho, sentindo a dormência familiar na ponta dos dedos arranhados e provavelmente danificados numa escala de concordância de graus e números quando o zunido alcança meu campo auditivo, seguido do brilho de uma luz azul iridescente. Logo, capto um relance metálico prateado próximo, refletindo os raios solares fortes que descem como lanças contra a pele acabada de meu corpo excedido.
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INSÍGNIA_ Guerra Das Máquinas I
Science-Fiction"Primeiro, houve a explosão. Depois, as luzes. Em seguida, o mundo acabou. E então, começou de novo. Num Depois onde o vínculo da passagem de tempo com o Antes se tornou uma sombra remota do que um dia foi o coração humano. O descontrole evo...