Capítulo 02

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A febre que tomava conta de Kyra não era física. Não se sentia culpada por atormentar o jovem padre, mas sentia o peso do desejo que fazia martelando em seu corpo. Era madrugada e ainda não podia dormir, revirava nos cobertores com seus olhos abertos na escuridão do seu quarto no segundo andar da casa que há pouco tempo era da sua falecida tia. Estava hipotecada, e o dinheiro era curto, já tinha vendido boa parte dos moveis para pagar pelo funeral e o enterro da velha.

O que tinha a perder? Absolutamente nada, sua dignidade já não significava mais coisa alguma. Tinha um emprego no bar central e sinceramente já tinha se acostumado aos tapas intromissões no traseiro e as beliscadas indecorosas que recebia. Precisava do emprego, precisava muito mais agora.

Se lembrou dos olhos astutos e doces do padre Harry, estava apaixonada por aquele homem. Apaixonada loucamente. Sorriu no escuro com a lembrança do pobre homem confuso quando declarou sobre os seus sentimentos.

E então dormiu. E teve sonhos que o próprio demônio se sentiria envergonhado.

No dia seguinte estava pronta para o trabalho quando recebeu o oficial de justiça na sua porta, era a segunda ordem de despejo.

ㅡ Precisa sair até a próxima segunda feira. ㅡ O homem de terno empurrou o papel na sua direção.

ㅡ Mas eu não tenho para onde ir.

ㅡ Então talvez devesse buscar um dos abrigos da prefeitura.

Abrigos para sem teto. Kyra massageou as têmporas. Insistir com esse homem de nada resolveria, é só um mensageiro. A coisa já está feita. Venderia o resto dos moveis escassos até o final de semana e procuraria algum lugar barato para ficar. A garota nunca se sentiu tão perdida em toda a sua vida.

Conseguiu algumas caixas no sótão e começou a empilhar suas coisas lá dentro. Ela olhou ao redor e constatou o quanto odiava o cheiro de mofo e de morte que vinha das paredes. Tudo cheirava como gente velha, e os papeis de parede gastos de florais escondia as marcas de sangue que a equipe de limpeza não conseguiu limpar há mais de oito anos atrás. Sacudiu a cabeça com a lembrança. Talvez os próximos moradores pensassem que não passava de mofo e bolor seco. Mas ela sabia bem o que tinha acontecido ali muito antes daquela sua tia irritante chegar.

Ela arquejou e pegou seu casaco no cabideiro. Quando saiu, resolveu pegar o caminho mais longo para o bar, e passou pela igreja, que de longe já se podia ver a cúpula vermelha brilhar fracamente sobre o sol de inverno. Um sorriso malicioso voltou aos seus lábios e agradeceu silenciosamente por poder sentir o gosto da paixão pela primeira e última vez na sua vida.

Kyra se encostou sobre um poste perto dos apartamentos de tijolinhos vermelhos, e viu o padre Harry descer as escadas usando a usual calça preta, e blusa preta com colarinho fechado, e seus mocassins bem encerados brilhavam mesmo de longe.

ㅡ Um dia, você ainda vai me amar. ㅡ Disse baixinho para si mesma.

Ele não notou ser observado de longe. Kyra só olhou um pouco mais antes de dar de ombros e se despedir mentalmente.

Veria a próxima missa atentamente e com cuidado e se despediria para sempre. Porque enquanto estava parada e pensava o quanto odiava sua vida miserável, Kyra decidiu pôr fim a sua vida de um vez por todas.

Mas antes, talvez realizasse algumas de suas vontades. 

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