Capítulo 19

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Kyra notou a perturbação de Harry no dia seguinte. A garota amava demais o padre para machuca-lo com qualquer questionamento, a sua simples presença já era o suficiente. Era tudo tão perfeito quando Harry estava ao seu redor, e ela adora poder dizer o seu nome em voz alta. Ele havia preparado café e panquecas, apenas se desculpou por não haver xarope de arce para pôr nelas, mas não comeu.

ㅡ Se nada der certo, você poderia trabalhar com isso. ㅡ Brincou tomando um pouco mais de café. Mas logo se arrependeu. Se sentiu um pouco culpada por ele ter largado a igreja por causa dela, porque ela estava ciente que tudo aquilo era sua culpa. Não queria pressiona-lo, talvez estivesse fazendo isso, ela não dizia como costumava se sentir. E se estivesse se arrependendo de tudo apenas por sexo? Estava insegura, não podia esperar que ele a amasse de volta.

ㅡ Eu já tenho um emprego. ㅡ Ele disse pegando uma xicara de café. ㅡ Ou quase isso.

ㅡ Sério? ㅡ Ela ergueu as sobrancelhas surpresa. ㅡ Eu não sabia que os padres podiam trabalhar.

Ele sorriu, mas pareceu ainda um pouco distante.

ㅡ Eu sou formado em teologia, Kyra. E falo pelo menos quatro línguas diferentes, entre elas o latim e o francês. Traduzo documentos e livros antigos para a conservadoria da universidade de Sanbury, há vinte quilômetros daqui. Recebo por isso. Não há nada de errado em um padre trabalhar, apesar de sermos mantidos pela igreja. Gosto de ter minhas próprias coisas.

ㅡ Gosto quando me conta coisas sobre você. Me sinto mais perto da sua vida do que nunca. ㅡ A garota sorri de forma sincera, se sentindo um pouco mais a vontade pela iniciativa de compartilhar coisas sobre ele.

ㅡ Eu gostaria de poder dizer o mesmo.

O sorriso dela se desvaneceu. Ele não estava tentando parecer rude, apenas deixou escapar.

ㅡ Me pergunte o que quiser, "Harry". ㅡ Ela disse o seu nome com um pouco mais de ênfase como se corrigisse a si mesmo antes que por hora o chamasse outra vez de padre.

Harry pensou sobre o que viu ontem à noite, sobre o que estava escrito na geladeira com o sangue de rato, e seu estômago se contraiu outra vez. Não tinha como Kyra ter feito aquilo, ele estava dormindo sobre ela no sofá, teria visto se tivesse levantado. O que o dizia que não era obra de nenhum dos dois, mas o assustava muito pensar que alguém ㅡ ou alguma coisa ㅡ tivesse feito aquilo. Tentou se manter forte, não tinha medo, aquilo não abalava a sua fé, mas estava intrigado. Olhou para Kyra por um longo momento, ela parecia tão bonita ao acordar, qualquer dúvida que tinha sobre ela se desvanecia ao olhar aqueles olhos. Não queria preocupa-la com aquilo, ela era instável, poderia simplesmente surtar.

ㅡ Me conte porque largou os estudos, e como acabou trabalhando naquele bar. ㅡ Ele cruzou os dedos das mãos sobre a mesa.

ㅡ Hum. É difícil dizer ㅡ Deu uma risada desconcertada. ㅡ Minha tia sempre foi doente, ou era ajudar em casa ou passar fome. O subsidio que o governo mandava desde que meus pais morreram parou de chegar quando fiz 18. ㅡ Ela coçou o queixo e pegou mais café. ㅡ E quando estavam contratando pensei, porque não?

Ele a olhou fascinado, tinha um modo de prestar atenção enquanto ela falava que a fazia sentir especial.

ㅡ Pois sabe o que eu acho? Que você deveria voltar a estudar.

ㅡ Ah não.

ㅡ Porque? Estou falando sério. Você é uma garota inteligente, poderia se formar, ir para a faculdade.

ㅡ Okay. ㅡ Ela ri tentando mudar de assunto, a forma como mexe seus ombros quando o faz, hipnotiza Harry. ㅡ Próxima pergunta.

Harry parece sério agora, seu olhar volta a ficar distante.

ㅡ Porque você tentou se matar, Kyra?

Ela para de respirar e encara seus dedos.

ㅡ Eu não me lembro de nada. Eu tinha tomado muitos remédios, eu mal me lembro de ter saído de casa. Só me dei conta quando acordei no hospital. ㅡ Kyra empurra suas panquecas. ㅡ Às vezes... Às vezes eu sinto como se não fosse eu mesma por alguns instantes.

Ele segura a mão de Kyra entre os seus dedos, agora eles parecem muito frios. Se lembrou do dia em que a encontrou sentada no porão totalmente nua a encarar uma viga no teto, e sobre como parecia fora de si. Aquilo foi desesperador e novo até mesmo para ele. E naquele dia, ela também pareceu não se lembra o que fazia. Estremeceu. Queria sugerir para que procurasse um médico, mas talvez não fosse a hora.

ㅡ Você sabe que pode me dizer o que quiser, sempre não é mesmo?

Kyra concorda com um aceno.

ㅡ Eu posso confessar todos os meus pecados, padre.

Dessa vez, os dois estão rindo juntos.

ㅡ Agora. ㅡ Ela se levanta, está usando apenas um vestido colado de mangas, e parece relativamente melhor do que ontem, o que deixa Harry aliviado, mas não de todo. Aprendera a não confiar no que pensa estar vendo. ㅡPreciso ir a cidade. Você sabe, falar com o meu chefe, pegar algumas roupas, e pedir para pegar algum horário de dia.

ㅡ É claro. ㅡ Harry tira as chaves da caminhonete do bolso. ㅡ Vamos logo.

Ela balança os quadris em provocação e passa pelo corredor, Harry a acompanha até a porta e encara Kyra descer pela varanda, e o lago brilhar sobre a luz do sol da manhã. Inala o cheiro de terra molhada pós tempestade, e olha para sala uma última vez. Instintivamente toca o seu rosário, que está outra vez no seu pescoço e o crucifixo pousando contra o seu peito debaixo da camisa.

Não conseguia disfarçar o quanto está intrigado. Fechou a porta atrás de si se convencendo de que tudo tinha sido só um pesadelo, mas ainda conseguia se lembra de ter enterrado roedor morto ㅡ ou o que tinha sobrado dele ㅡ na parte detrás da casa.

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