[ESPECIAL] Circo

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#JULY

Na manhã do final, eu acordei com o aroma de panquecas de mel e canela vindas do pequeno trailer que dividia com meu pai e os distantes resmungos mal-humorados do malabarista. Cocei os olhos sonolenta, vendo os mapas pregados no teto tomarem foco. Minhas madeixas onduladas se espalhavam ao redor do travesseiro, como uma auréola castanha e azul celeste.

Eu apoiei preguiçosamente os cotovelos no colchão e dei um pequeno impulso saindo da cama com um salto. Vesti-me ao som da voz cantarolada do meu pai e das ritmadas batidas metálicas que a tigela fazia enquanto a massa era misturada.

Mirei minha imagem no pequeno espelho em um dos cantos do quarto. Eu tinha no corpo as mesmas roupas do dia anterior - e de todos os outros. Saia godê rodada, camisa larga de tons escuros de alguma banda de rock, que sempre parecia grande demais em meu corpo pequeno, e o velho par de all star cinza.

Segui arrastando os pés em direção à cozinha e me apoiei contra o batente com a mente ainda envolta em uma névoa de sono.

"Bom dia, querida" meu pai lançou-me um sorriso bem-humorado e antes que eu pudesse responder, voltou sua atenção à frigideira.

Ele tinha vestido um avental cor-de-rosa sobre suas costumeiras roupas - uma combinação estanha de camisa havaiana, calça jeans e um par de chinelos - mas que logo seriam substituídas pelo elegante conjunto carmim com detalhes dourados de mestre de cerimônia.

Havíamos chegado de madrugada em Yalow, onde tudo começara - e iria terminar - logo os preparativos para o grand finale estavam a todo a vapor.

Meu pai pigarreou pousando o prato com panquecas na minha frente. Eu tinha o olhar perdido na janela empoeirada do pequeno trailer que dividíamos, onde o som dos ruídos metálicos, resmungos e o tremular da lona do picadeiro me traziam a melancolia do sentimento de saudade crescente no peito. Sentiria falta das manhãs agitadas da bela bagunça dos preparativos e apresentações circenses. Eu pisquei, afastando as lágrimas que se acumulavam em meus olhos castanhos avelã. Sorri o melhor que pude para o olhar preocupado do meu pai.

"Vamos dar nosso melhor" murmurei para mim mesma entre as garfadas de panqueca "Este é o show final".

Ao terminar, eu me levantei, coloquei o prato na pia e prometi aos berros que faria as tarefas de casa do curso on-line mais tarde. Distanciei-me da casa metálica em direção aos caminhões plataforma que ladeavam a ainda-em-construção estrutura do circo.

Encontrei o esqueleto da pequena barraca da venda de ingressos no lugar de costume, um dos cantos das enormes estruturas de metal. Agarrei-o com facilidade, acostumada com o peso familiar daquelas barras e da lona listrada vermelha e branca pontilhada de estrelas com cheiro de mofo e terra.

Eu não tinha nenhum trabalho grandioso nos espetáculos, nem me apresentava no picadeiro. Meu pai havia me proibido de participar das apresentações depois do acidente quando era criança. Eu fiquei presa no emaranhado dos panos das acrobatas de cabeça para baixo com pés enganchados em nós a seis metros do chão sem uma rede de segurança. Isso me rendera oito pontos na cabeça e uma bela cicatriz em forma de lua entre os cachos - após a queda.

Eu permiti que um suspiro escorresse pelos meus lábios ao deixar o peso da estrutura deslizar até o chão. Apanhei os fios em um coque frouxo do topo da cabeça e comecei a armar a barraca.

Assoprei uma mecha para fora do canto de visão terminando de fixar a tabuleta de preços na barraca. Era a pequena composição de um pequeno cubículo de tecido abafado com a palavra "Bilhetes" no topo da tenda de extremidade triangular, que quando pequena, adorava imaginá-la como a ameia da torre de um castelo.

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