(warrior)

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O vento a envolvia nos sussurros mornos de verão. Fazia das mechas de céu coberto por nuvens cinza quase brancas um parque de diversões, dando nós e giros nos longos fios. Enquanto Zoe semicerrava os olhos, dando-lhe uma expressão felina, mirando o horizonte com atenção, a procura de qualquer sinal do espiralar de fumaça contra o sol poente que manchava a tela celestial em um degrade velado pela névoa.

Determinação incendiava as veias dela. Cerrou as mãos em punhos. A lembrança do sorriso permanente feito por buracos marcados de escárnio na face metálica gravada em vingança na mente dela. Não iria perder para aquele monte de sucata novamente.

"O que você pensa que está fazendo?".

Uma voz a atirou de volta a realidade. Zoe piscou os olhos previamente fixos onde o lilás se misturava a negritude aveludada da quase noite levando-os para as telhas sujas e salpicadas por "caca" de pombo do restaurante chinês antes de dirigi-los a pessoa que a questionara.

Os olhos deles se encontraram no mesmo instante que a descrença tomou as feições de Zoe. Entre resmungos e revirares de olhos, limitou-se ao silêncio de não respostas. Os constantes aparecimentos inconvenientes de Will sempre conseguiam inspirar o pior dos humores dela.

As botas de cano alto bateram contra o concreto com um baque empoeirado logo ao lado do par de all star dele. Ela praguejou outra vez e fitou – evitando os olhos verde-musgo arregalados dele – os finos fios loiros no topo da cabeça dele que na mente dela se assemelhavam a suaves penas quando a brisa passava por eles.

"Não te interessa" ela disse com a voz tingida pela frigidez dos invernos.

Will pareceu pronto para retrucar a réplica fria dela, mas antes que pudesse dizer uma palavra sequer Zoe girou nos calcanhares, caminhando até a saída do beco entre os dois restaurantes.

"Espere!" ele exclamou com afobação, apertando o guidão da bicicleta ao disparar no encalço dela.

Zoe trincou o maxilar, sentindo o corpo enrijecer, ao finalmente ter o vislumbre do sinal. A fumaça saía em generosos filetes da Ponte Golden Gate a poucos metros do restaurante. Se prestasse atenção poderia até ver as luzes do sorriso em furos. Um ruído enferrujado ressoou pelos ossos dela com um arrepio, como se a desafiasse.

Adrenalina correu pelo corpo dela ao compasso das batidas aceleradas do coração e das passadas na rua em direção à ponte. Desta vez, quem sorriria com escárnio seria ela.

...

Will tropeçou em seus próprios cadarços e embaraçou-se em meio à imundice do beco. Ainda desnorteado pela queda logo se levantou e pegou a bicicleta que tombara com o desequilíbrio dele. Ao erguer os olhos percebeu que Zoe já não estava mais lá. Suspirou.

Era a mesma coisa desde que se conheceram há algumas semanas atrás. O caminho dos dois se cruzava e a garota sempre dava um jeito desvia-lo. Will imaginava se tudo pudesse ser diferente se tivessem em outras circunstâncias e se a curiosidade não tomasse forma em perguntas toda vez que ele a via.

Ele caminhou até a saída tomando cuidado por onde pisava. Talvez voltasse mais tarde. Mas esses pensamentos embaraçados que pesavam sobre a cabeça dele como uma nuvem carregada com confusões tempestuosas caiu em raios quando mirou a silhueta dela sumir contra o enorme declínio da rua na frente dele.

Memórias da primeira que eles se encontraram em dia não tão diferente deste invadiram os devaneios de Will enquanto ele pedalava nos vestígios da presença de Zoe.

Por mais brega que isso soe, eles se embarraram em meio aquela mesma rua, ao seguirem em direções contrárias. Preferindo orbitar nos planetas dos próprios universos do que prestar atenção nos caminhos com que cruzavam. Trocaram estrelas quebradas e perdidas na gravidade de outra galáxia com o choque dos destinos deles. A partir daquele dia, esses astros que não lhes pertenciam pareciam clamar pelas constelações casa, sempre magnetizando os caminhos para que se cruzassem novamente.

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