Capítulo 1

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Boa leitura.

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Despertar às 04:30 am. Essa é a minha rotina desde os 18 anos quando comecei a trabalhar com os meus pais no negócio familiar. Explico. Trabalhamos com transporte escolar em várias modalidades. Infantil, com o brinquedomóvel, juvenil e universitário com as vans super bem equipadas com ar-condicionado, wi-fi, frigobar e que estão sempre muito limpas.

Desde que eu terminei o colegial e parei de me mudar anualmente ou até mesmo semestralmente com a minha família quando alguém da escola descobria sobre a minha disfunção anatômica e biológica, comecei a trabalhar com os meus pais no escolar.

Meu pai largou seu emprego como professor universitário logo após minha entrada na pré-escola. Depois que o primeiro boato se espalhou e eu não consegui me adaptar em nenhuma outra escola da cidade - além de não ter sido aceita por algumas - papai pediu dispensa da função e nos mudamos.

Após a nossa primeira mudança ele passou a pegar contratos temporários como professor de literatura no ensino médio. Minha mãe alternava em períodos entre dona de casa e motorista de ônibus. Incomum? Foi assim que ela e meu pai se conheceram. Meu pai terminava o mestrado quando num dia atípico seu carro quebrou e ele teve de pegar ônibus por uma semana. A jovem motorista sorridente e de olhos pequenos logo chamou sua atenção e, assim, no lugar de pegar ônibus por uma semana ele pegou até o fim da pós-graduação, quando enfim teve coragem de chamar a condutora para sair. Namoraram, casaram e me conceberam. E agora estamos aqui outra vez. Aonde paramos? Sim. Nas constantes mudanças.

E assim a cena repetiu-se uma dezena de vezes até que parei de contar. Estava exausta de reviver sempre o mesmo início. Sempre a novata que todo mundo quer conhecer, e que me conhecessem era a última coisa que eu queria, porque daí até "A Karla é um traveco!", "Karlinha tem um pinto entre as pernas.", "Você não pode estudar com a gente, é nojento.", "Ão, ão, ão, Karlinha aberração!", era um pulo.

Quando eu entrei para o ginásio as coisas pioraram. Às 16h da tarde de uma quarta-feira os garotos mais brincalhões da escola resolveram tirar a limpo o boato - que dessa vez não havia chegado aos meus ouvidos antes. - Tiraram a minha roupa e me lançaram para fora dos vestiários, onde um grande grupo de alunos me esperavam. Riram, me chutaram. Gargalharam, me cuspiram. Levaram minhas roupas e também minha dignidade.

Minha mãe àquela época estava grávida de Sofia, minha irmã mais nova, e quase teve treco quando recebeu a ligação da escola. Eu me sentia mais que humilhada, eu me sentia um lixo. E foi com esse pensamento que eu pedi ao meu pai que me levasse para cortar o pinto. Usei essas palavras. Não era como se aquilo não fizesse parte de mim. Era a minha pele, a minha carne, um pedaço de mim, mas naquele momento só significava a imagem da minha humilhação.

Consultamos alguns especialistas e ouvimos diversas opiniões. A maioria deles me olhava como se eu fosse um bicho. Os toques eram ávidos de descoberta. Até que depois de encontrar muita burocracia para uma cirurgia de redesignação de sexo no país partimos, minha mãe - grávida de Sofia, que ainda não tinha nome, meu pai e eu para a Tailândia. Ficaríamos pouco tempo no país, apenas tempo o suficiente para realizar o procedimento e o resguardo pós-operatório.

O que não sabíamos era que a coisa não era bem assim. Nas clínicas de melhor qualidade também havia certa burocracia e nas outras minha mãe não me deixou nem entrar. Durante os dias em que fiz acompanhamento psicológico, algo já começava a me desestimular, mas foi durante o pré-operatório que comecei a questionar a minha decisão. Eu via todas as pessoas saindo de lá felizes e radiantes com seus novos corpos enquanto eu estava ali apenas para cortar a minha humilhação. Eu não queria um corpo novo, eu só queria que as pessoas não me rechaçassem pela minha anatomia incomum para uma mulher.

Under the MoonlightOnde histórias criam vida. Descubra agora