Prólogo

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Em meio a escuridão da noite, Elisa caminhava sem perceber bem por onde ia, tentando segurar as lágrimas que teimavam em escorrer pelas suas faces, toldando-lhe a visão.
Em seu desespero, pouco se importava com os carros que passavam a toda velocidade pelo meio da rua, fechada ao mundo exterior, dobrada ao peso de sua dor.
Tantos anos de dedicação e de renúncias, de carinho e de amizade e agora, depois de tudo, ele a deixara. Seduzido por outra mulher, embalado nas ilusões da juventude dela, não titubeara em abandonar a casa, a família, tudo. Era como se
o teto houvesse desabado sobre sua cabeça inesperadamente sem que pudesse fazer nada para impedir.
Doía. Doía muito. Não podia compreender como um homem podia trocar o amor de uma estranha, os prazeres ilusórios do corpo, pelo sorriso alegre de Marina, o olhar inocente e confiante do Juninho e as risadas francas e espontâneas da Nelinha.
De que matéria era feito o Geninho, para ser tão cruel?
Elisa passou a mão nervosamente pelas faces numa tentativa quase inútil de limpar as lágrimas. O que fazer de sua vida agora? Como viver dali para frente?
O que dizer aos filhos sobre o pai? Eles eram tão pequenos ainda, tão confiantes!
Nelinha completara três anos, Juninho estava com cinco e Marina com sete.
Eram crianças amorosas e bem-comportadas. O que seria deles dali para frente?
Como manter a casa?
Ela nunca havia trabalhado fora. Sua família, de classe média, vivia com
conforto e ao casar-se, o Geninho não a deixara trabalhar. "Minha mulher não precisa trabalhar. Sou mais do que suficiente para sustentar minha família."
E embora ele controlasse o dinheiro e não lhe desse autonomia nas compras
da casa, Elisa habituara-se a seu modo de viver, de dispor de tudo, de decidir o que fazer, o que comprar etc.
Ela não se queixava. Afinal, o homem era o chefe da casa. Sua mãe sempre
dizia que o papel da mulher dentro do lar é agradar o marido, obedecendo-o e cuidando do seu bem-estar.
Durante os doze anos de casamento, Elisa cumprira religiosamente esses
princípios.
Não fazia nada sem perguntar ao marido se podia, o que ele pensava. Como ele era econômico, ela poupara o mais que podia. Se tinha algum dinheiro nas mãos, pensava logo nele e nos filhos. Ela podia esperar. Afinal, eles eram mais importantes.
Ele foi economizando, melhorando a vida no trabalho e comprando carro do ano, roupas da melhor qualidade, cuidando mais da aparência, e ela compreendia que ele precisava vestir-se bem, apresentar-se melhor. Afinal, o cargo que ocupava na empresa onde trabalhava assim exigia.
Ela ia ficando para depois. Gostaria de cortar os cabelos em um bom
cabeleireiro, melhorar a aparência, comprar alguns vestidos na moda. Mas isso era sonhar com o impossível. O dinheiro era escasso, e o Geninho vivia dizendo que ela gastava demais.
O jeito era conformar-se com os vestidos que costurava em casa mesmo, reformando-os de vez em quando ou vestindo as roupas que sua irmã Olívia lhe mandava de tempos em tempos.
Olívia era o oposto dela. Jamais se conformara em viver com pouco. Era
exigente, e tudo quanto sua mãe lhe dissera sobre o casamento, não a
convencera. Não se casara, contudo era muito disputada pelos homens elegantes e inteligentes que a cercavam de atenções e de presentes, desejosos de conquistá-la. Mas Olívia tratava-os amavelmente, saía com eles algumas vezes sem envolver-se ou permitir intimidades.
Era como uma deusa que concedia suas graças de vez em quando. Vestia-se ao rigor da moda, freqüentava os melhores lugares, tinha intensa vida social e era muito bem-vista nas melhores rodas da sociedade.
Trabalhava em uma grande empresa onde conquistara posição de destaque
junto a diretoria, o que lhe garantia dinheiro suficiente para ser independente, dentro do padrão de luxo que exigia e estava acostumada.
Várias vezes tentara convencer Elisa a cuidar-se um pouco mais, a ser mais
exigente com o marido, a conquistar seu próprio espaço dentro do lar. Quando elas conversavam sobre isso, quase sempre acabavam discutindo. Ao final, Olívia desistia. Apesar da sua postura independente e muito pessoal, ela gostava de Elisa, que embora dois anos mais velha, era dócil e afetiva, ingênua até.
Observando essa ingenuidade, Olívia tornava-se por vezes autoritária com
ela, temerosa de que os outros abusassem, o que muitas vezes acabava ocorrendo.
Elisa continuava caminhando desesperada, sem rumo e sem enxergar nada a não ser a dor que lhe ia no coração. O desinteresse gradativo do Geninho, nos
últimos tempos, não a fizera perceber que ele tinha outra mulher. Ele dizia que estava cheio de trabalho, que fazia horas extras e ela acreditava.
— A vida está muito cara — repetia ele — você cada dia gasta mais. Não
tenho outro recurso senão trabalhar mais, fazer hora extra. Você devia se dar por feliz por ter um marido trabalhador e interessado no bem-estar da família.
— As crianças sentem sua falta — respondia ela. — Quase não o têm visto.
— O que posso fazer? Estou me matando no trabalho pelo bem-estar de todos. É o meu dever.
E ela esforçava-se mais para multiplicar o dinheiro que ele lhe dava para as despesas, privando-se até do necessário para que nada faltasse a ele. Afinal, ele era quem mantinha a casa. Tinha todo o direito ao melhor bife, à cervejinha
gelada, ao pêssego em calda do qual ele tanto gostava. As crianças queriam
comer tudo, mas ela dava um pedacinho para cada um e guardava para ele.
Elisa sentiu aumentar a raiva. Como se arrependia da sua passividade! De
que lhe valera tanta renúncia, tanta obediência?
Nada do que fizera o impedira de, naquela manhã, arrumar sua mala e dizer-lhe friamente:
— Elisa, eu sinto muito, mas nosso amor acabou. Você está muito diferente da mulher que conheci e me casei. Apaixonei-me por outra. Estou indo embora. Estou levando o necessário para dois ou três dias. Gostaria que você arrumasse
minhas coisas e dentro de alguns dias mandarei buscar.
Essas palavras tiveram sobre ela o efeito de uma bomba. Jamais esperara
isso. Não conseguiu articular palavra. Sentiu um nó na garganta, pensou não estar ouvindo bem.
Colocando algum dinheiro sobre a cômoda, ele saiu calmamente sem se
despedir das crianças que brincavam no quintal.
Elisa ficou parada, olhos fixos na porta sem querer acreditar no que estava acontecendo.
Nervosa, olhou-se no espelho e a mulher que viu estava longe de ser a Elisa que ela fora, ou que ainda imaginava que fosse. Aos trinta e quatro anos era uma
mulher mal vestida, deselegante, feia e velha.
Essa descoberta chocou-a. Correu apanhar o álbum do fotografias do seu casamento, e a moça de olhos brilhantes, elegante,
cheia de vida, lindos cabelos, que lá estava, parecia outra pessoa.
Como não se dera conta do quanto mudara? Por que nunca Geninho lhe
dissera nada?
Preocupada em fazer tudo para eles, esquecera-se de si mesma. Não era isso que haviam lhe ensinado a fazer? Não era nobre dedicar-se aos outros, à família, esquecendo-se de suas próprias necessidades? Por que dera errado? Por que estava sendo punida se procurara fazer o melhor?
Não. Não era possível. Devia ser algum engano. O Geninho não seria capaz de tanto.
Fizera isso para experimentá-la. Logo mais, à noite, voltaria para casa e tudo
estaria como antes. Na certa, ele desejava que ela percebesse que precisava cuidar melhor da aparência. Ele tinha razão, ela se desleixara. Geninho não teria
mais nenhum motivo de queixa dali para frente.
Tentando ignorar o que acontecera, passou o dia cuidando de tudo com mais capricho e, principalmente, tratou de melhorar a própria aparência. Foi à
cabeleireira, deu um jeito nos cabelos, procurou seu melhor vestido, fez um
jantar caprichado e esperou.
As horas foram passando e o Geninho não voltava. E se ele houvesse dito a verdade? E se ele não voltasse mais mesmo?
Agoniada, Elisa foi ficando cada vez mais inquieta, andando de um lado a
outro sem parar. As crianças dormiam tranqüilas, e ela, não suportando mais a
pressão, resolveu sair e andar um pouco, sentia-se sufocar dentro de casa.
Fechou a casa e saiu caminhando desesperada, ruminando sua dor, sua
impotência, sua decepção, seu fracasso.
As lágrimas continuavam descendo pelo seu rosto, obscurecendo sua visão.
Elisa caminhava sem destino, compulsivamente, como se nesse caminhar, ela fosse encontrar respostas para seu conflito interior.
Numa curva da esquina, ao atravessar a rua, uma brecada, um grito e o
corpo de Elisa atirado longe. Correria, gente procurando socorrer, enquanto o motorista do carro, aflito, repetia assustado:
— Ela atravessou de repente, sem ver. Nem olhou sequer. Não tive culpa!
A polícia compareceu ao local e constatou que infelizmente o acidente fora fatal. Ela estava morta. Procuraram documentos, mas ela não tinha nada. Ao remover o corpo para o Instituto de Medicina Legal, o atendente comentou:
— Que pena, era ainda moça. Quem será? Terá família?
— Vamos guardar o corpo, talvez apareça alguém.
E como era de rotina, procuraram esquecer o acidente e conversar sobre
outros assuntos.

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