Capítulo 10

3.5K 97 1
                                    

Como Lourdes não sabia dirigir, foi forçado a contratar um motorista que oslevasse.
Sentado no banco traseiro, com a perna esticada, porque quando a abaixavadoía terrivelmente, teve que conformar-se de ver Lourdes sentar-se na frente.
Durante o trajeto, pensava no que lhe acontecera.Realmente, sua vida se complicara depois da morte de Elisa. Arrependia-sede um dia haver pensado em abandonar a família. Como pudera fazer isso? Essa
loucura estava lhe custando muito caro. Seria um castigo de Deus pelo que haviafeito? Nunca fora religioso, mas como explicar tanta infelicidade?
Sentia-se amargurado e infeliz. Seus negócios não iam bem. Suas comissõeshaviam minguado e, agora, impossibilitado de trabalhar durante um mês ou mais,seria pior.
Ainda bem que tinha algumas economias que deveriam garantir o sustento desua família durante aquele período. O médico lhe dissera que depois de umasemana, se tudo corresse bem, ele poderia ir ao escritório por algumas horas,
desde que conservasse a perna levantada e esticada para facilitar a circulação.
Levou Lourdes até em casa, despedindo-se dela com tristeza.
— Não fique triste. Você vai ficar bom— disse ela tentando encorajá-lo.
— Sinto o gosto do fracasso. Estraguei nosso fim de semana. Havia feito
tantos planos!
— Não se lamente, que pode piorar. O que passou, passou. Trate de cuidar-sebem . Quando ficar bom, faremos nossa viagem.— Não vejo a hora. Entre nocarro. Ela entrou, e ele beijou-a com carinho.— Adeus — disse ela alisando-lheo rosto com delicadeza. Tem certeza de que não quer que eu o ajude até em
casa?Ele meneou a cabeça negativamente:
— Por causa das crianças. Não iriam entender. Elas ainda sofrem muito coma morte da mãe. Precisamos dar um tempo para que elas a conheçam eaprendam a gostar de você.
— Tem razão. Em todo caso, se precisar de mim, irei de boa vontade.
Preocupa-me saber que em sua casa não terá ninguém para ajudá-lo.
— Tem as crianças. E minha cunhada ainda está lá. Posso pedir-lhe para
dormir esta noite, não por minha causa, eu estou bem e posso cuidar de mim,mas pelas crianças que podem necessitar de alguma coisa.
— Está bem. Adeus e obrigada por tudo. Apesar do que aconteceu, foi muitobom estar junto com você.
Beijou-o novamente e desceu. Eugênio acenou em despedida e foram para
casa.
O motorista o ajudou a entrar e depois de pagá-lo, Eugênio explicou o que havia acontecido. Estirado no sofá da sala, sentia-se arrasado.
Juninho e Nelinha queriam saber tudo, se doia, se o gesso era pesado, se elehavia escorregado em uma casca de banana.
— Mamãe sempre dizia que não era para jogar casca de banana na calçada.Alguém podia cair e quebrar a perna — disse Juninho.
— Ela estava certa. Só que onde eu caí não havia nada.
— Não? Então por que você caiu? — disse Nelinha admirada. — Estava
correndo muito?
— Não. Estava devagar.
— Então não entendo — disse a menina.
— É. Não dá mesmo para entender. Até agora eu ainda não entendi.
Olívia que os observava calada, perguntou:
— Quantos dias vai ficar com o gesso?
— Trinta dias, ou mais. Depende da recuperação. Juninho, pega um copo de água.Preciso tomar o remédio. Está doendo muito.
O menino obedeceu prontamente, e Eugênio tomou o comprimido e suspirouangustiado.
— Ainda está doendo muito? — perguntou Nelinha condoída.
— Já doeu mais. Mas ainda dói bastante. — Olhou para Olívia um tantoindeciso, depois disse: — poderia me fazer mais um favor?
— O que é?
— Dormir aqui esta noite. Se as crianças precisarem de alguma coisa, nãopoderei fazer nada. Os primeiros dias são piores. Quando a dor passar, será maisfácil. Poderei andar.
— Está bem. Ficarei. Talvez seja bom você arranjar um par de muletas.
Eugênio enrubesceu de contrariedade:
— Muletas?
— Sim. Como pretende caminhar com a perna quebrada? Você não vai poderforçá-la.O médico não lhe disse isso?
— Disse. Mas amanhã vou chamar o meu médico. Quero fazer um bom
exame everificar se está tudo bem. Não conheço o médico que me atendeu. Não seise ele fez tudo direito.
Olívia deu de ombros.
— Só posso ficar aqui hoje. Amanhã terei que trabalhar.
— Talvez possa vir dormir aqui algumas noites. Pelo menos nos primeirosdias.
— Oba! — fez Nelinha. — Isso mesmo, tia. Que bom!
— Você vem? — indagou Juninho com alegria.
— Não sei. Talvez. Vamos ver como seu pai passa. Se ele não puder cuidar devocês, eu virei.
As crianças pularam de alegria, e Eugênio olhou-os amargurado. Mas tinhaque conformar-se, ter paciência, esperar o tempo passar. Não ia ser fácil ter que
ficar em casa sem fazer nada durante alguns dias, com tanto serviço no escritórioe precisando ganhar mais dinheiro. Mas reconhecia que, apesar de seu rancor,Olívia o apoiava no que se referia às crianças. Pelo menos, ele podia descansar
tranqüilo quanto ao bem-estar delas.
Estava em uma maré de má sorte, mas isso havia de passar. Tudo em suavida havia sempre corrido muito bem. Nunca tivera problemas. O que desejava,conseguia. Não podia deixar-se abater. Tinha que reagir. Afinal, na vida daspessoas nem tudo pode ser sempre cor-de-rosa. Tivera algumas contrariedades,
era verdade, mas dali para frente, tudo haveria de mudar. Sua boa estrela voltariaa brilhar.
Estava na hora do jantar, e Olívia aproximou-se:
— Preparei um lanche para nós. Você pode ir até a copa para comer ou querque eu traga aqui?
— Estou sem fome. Seria muito trabalho para você! Olívia olhou-o irônica:
— Não faça essa cara de vítima. Diga logo se quer ou não. Posso ajudá-lo a
caminhar até lá, ou trazer a comida aqui.
Ele olhou-a indeciso. Por que ela era tão diferente de Elisa?
Tentou levantar-se, mas quando abaixava a perna, doía bastante.
— Não vai dar. Sinto muito.
— Vou trazer algo para você. Não pode ficar sem comer. Foi para a copa evoltou em seguida com um sanduíche de presunto e queijo e um copo derefrigerante. Colocou a bandeja em uma mesinha em frente ao sofá.
— Se quiser algo mais, é só dizer.
Ele sentia-se acanhado. Era a primeira vez que Olívia o servia.
— Está bem — disse. — Obrigado.
Quando ela se foi, apanhou o sanduíche um pouco sem vontade, mas estavagostoso, e ele comeu tudo. Lembrou-se de que quase não havia almoçado.
— Quer mais um? — perguntou Juninho. — A tia mandou perguntar.
— Está bom. Acho que comerei outro.
Depois de comer, Eugênio sentiu-se melhor. Olívia lhe trouxera um
travesseiro, e ele recostou tentando descansar. Olhos fechados, podia ouvir aconversa animada das crianças com a tia na copa. Apesar de tudo, precisavareconhecer que sem Olívia teria sido muito pior. Se fosse ela quem houvessemorrido e deixado filhos pequenos, certamente Elisa os teria assumido
completamente. Por que ela era tão diferente? Nem pareciam irmãs!
Suspirou conformado. Nada podia fazer quanto a isso. E a Lourdes, como secomportaria em uma situação dessas? Precisava conhecê-la melhor. Sabia que ela era uma mulher honesta e que, com ela, a situação poderia tomar-seséria. Gostava dela.Quanto mais a conhecia, mais a apreciava.
Recordou-se dos beijos e dos carinhos que haviam trocado e reconheceu quese um dia pensasse em se casar novamente, ela seria uma forte candidata. Além
disso, era meiga, amorosa, doce. Poderia tornar-se uma excelente mãe para seusfilhos. E então tudo em sua vida voltaria a ser como antes e, dessa vez, ele não atrocaria por ninguém.
Embalado em seus sonhos futuros, Eugênio adormeceu. De repente, viu-secom a mala na mão, andando rumo ao hotel, recordando o que lhe acontecera.
Ele sabia que ia cair e tentou evitar. Angustiado, não conseguiu. Deitado no chão,sentindo novamente as dores, viu o rosto de um homem magro e pálido que ria e
se divertia com seu infortúnio.
Agitado, Eugênio pensou: é um pesadelo! Preciso acordar!
Em seguida, viu-se entrando em sua casa, aflito, e uma vez
na sala, viu Elisa, pálida, olhando-o rancorosa. Apavorado, ele gritou:
— Elisa! Você morreu!
Ela aproximou-se dele brandindo o punho fechado e dizendo:
— Você não vai se casar com ela. Eu juro! Nenhuma mulher tomará conta
dos meus filhos! Não permitirei! Lembre-se disso.
Eugênio sentiu-se sufocado e quis gritar, mas não conseguiu.
— Pai! Pai! Acorde. Você está sonhando um sonho ruim? Eugênio abriu osolhos e viu Nelinha debruçada sobre ele,alisando-lhe o rosto.
— Você está suando!
Custou um pouco para perceber onde estava, depois suspirou aliviado dizendo:
— Ainda bem que me acordou. Foi um pesadelo horroroso! Quer apanhar
um copo de água para mim, por favor?
— Sim, papai.
Ela saiu correndo e voltou em seguida, acompanhada pelo resto da família.Olívia deu-lhe a água, enquanto Juninho perguntava:
— Você sonhou com ladrão? Ficou com medo?
— Já passou. Foi só um sonho.
— Quando eu sonho coisa ruim, fico com medo. Parece verdade!
— Tem razão. Parece verdade. Mesmo que seja a coisa mais absurda do
mundo. Fiquei muito contrariado com o que aconteceu. Tomei muito remédio eacho que não me fez bem. Foi só um pesadelo.
Respirou aliviado, mas teve medo de adormecer novamente. Pediu os
jornais. Tentaria ocupar-se um pouco e esquecer os últimos acontecimentos.
Depois de acomodar as crianças para dormir, Olívia aproximou-se de
Eugênio, dizendo:
— Não seria melhor ir para o quarto? Ficaria mais à vontade na cama. Este
sofá é pouco confortável.
— Eu gostaria, mas não sei como subir as escadas.
— Posso ajudá-lo, se quiser.
— Não posso pisar no chão e quando abaixo a perna, dói muito. Acho que
passarei esta noite aqui. Amanhã, chamarei o doutor Melo e decidirei o que fazer.
Ele desejava lhe pedir para ficar ali mais um pouco. Pela primeira vez emsua vida, Eugênio sentia medo. Não teve coragem.
— Deseja mais alguma coisa? Tem algum remédio que vai
precisar tomar? Vou buscar uma garrafa de água e deixar aqui. Tambémalgumas bolachas e frutas, pode sentir fome. Como vai fazer para ir ao banheiro?
Eugênio corou. A pergunta era natural, mas ele sentia-se muito inibido diantede Olívia.
Estava se sentindo fraco e solitário, mas não queria demonstrar, por isso,
respondeu:
— Eu me arranjo.
Era muito humilhante para ele essa situação.
— Pode me explicar como pretende levantar-se se não pode abaixar a pernanem pisar?
— Você se esquece que tenho uma perna boa e com ela posso tentar ir aobanheiro.
Olívia meneou a cabeça:
— Você é mesmo cabeçudo! Se quer ficar bom logo, não deve forçar a
perna quebrada de forma alguma.
Olívia saiu e voltou trazendo uma bandeja com algumas guloseimas, umagarrafa de água e um copo, e a colocou sobre a mesinha ao lado do sofá. Foi àcozinha e depois de alguns minutos voltou com um rodo onde enrolara eamarrara uma toalha, dizendo:
— Improvisei uma muleta. Não é tão confortável quanto poderia, mas pelomenos o ajudará por hoje.
Eugênio lançou-lhe um olhar nervoso.
— Obrigado pela intenção, mas não era preciso tanto.
— Não seja tão orgulhoso, nem faça tanta pose. Você vai precisar dela antesdo que supõe.
— Pelo seu ar, acho até que está se divertindo com minha dor. Me odeia tantoassim?
Ela deu de ombros.
— Eu nunca me divertiria com a dor alheia. Você me é completamente
indiferente.Saiba que não lhe desejo nenhum mal, porque as crianças precisam de você.E é por isso que estou querendo ajudá-lo, para que possa sarar depressa e voltar a asssumir suas responsabilidades.
— Você não me perdoa, não é mesmo?
— Deixemos isso de lado. Tudo que possamos dizer não trará Elisa de volta.Não desejo que as crianças saibam como tudo aconteceu. Se dependesse demim, nem Marina teria sabido. Infelizmente, você não teve esse cuidado quando
despedaçou o coração de Elisa.
— Se Elisa estivesse viva, ela teria me perdoado — disse Eugênio mais para
si mesmo do que para Olívia. Mas, ela respondeu:
— Com toda certeza. Elisa era a bondade em pessoa.Nunca seria capaz de guardar rancor de quem quer que seja. Ainda mais de
você, a quem ela amava tanto!
— É. Tem razão. É absurdo pensar que Elisa pudesse me odiar.
— Por que está dizendo isso?
Eugênio passou a mão pelos cabelos como tentando apagar a lembrança dosonho terrível de momentos antes:
— Sonhei com Elisa. Desde que ela morreu, foi a primeira vez. Mas ela
estava ameaçadora, me olhando com ódio! Nunca a vi daquele jeito!
— Sua consciência está começando a pesar! Imagine Elisa com ódio de
alguém! Isso nunca aconteceria. Ela era a doçura em pessoa, É você quem estácomeçando a arrepender-se do que lhe fez. O remorso ainda vai atormentá-lo.Quer castigo pior?
— Você não sabe o que diz. Eu errei, sim, mas nunca imaginei o que iria
acontecer com Elisa. Você pode duvidar, mas eu a queria muito bem. Não meolhe com esse ar irônico.
Você nunca compreenderia. Elisa mudou depois do nosso casamento. Nãoera mais a mulher apaixonada com a qual eu me casara e que sabia despertarmeu interesse. Só falava nas crianças, vivia cheirando a leite, a comida. Acabouo romantismo dos primeiros tempos. Quando eu estava em casa, não tinha mais
assunto. Era só os problemas das crianças, das contas, do que precisava consertar.Que diabo, eu sou um homem cheio de paixão, preciso de um clima romântico
para viver. Elisa não conseguia mais alimentar essa minha necessidade.
Olívia meneou a cabeça negativamente:
— Ela fez isso por amor! Dedicou-se totalmente a você e a seus filhos. Podehaver ingratidão maior do que a sua?
— Nem sei por que estou lhe dizendo tudo isso. Não esperava que me
compreendesse.Como poderia? Você nunca amou. Sempre foi uma mulher dura, fria,calculista. Eu nunca pedi a Elisa que fizesse tudo isso. Foi ela que quis. Eu teriapreferido que ela continuasse sendo aquela moça apaixonada e romântica que eu
conhecera. Que não fosse apenas uma mãe e esposa, mas amante.
— Desse jeito, você vai acabar dizendo que a culpa de tudo foi dela.
— Não. Eu não diria isso. Estou apenas tentando dizer-lhe que minhaconsciência não está tão pesada como pensa. Não sou culpado pela morte deElisa. O que fazer da vida quando o interesse acaba? Meu mal foi ser sincerodemais. Eu poderia tranqüilamente continuar mantendo as duas mulheres, e Elisa
nunca descobriria nada. Quantos homens têm uma vida dupla? Eu errei apenas,porquequis esclarecer uma situação dúbia e desagradável. É só do que eu me culpo.O resto correu por conta do destino, ou sei lá o quê!
Olívia suspirou triste. Aquela conversa a aborrecera. Reconhecia que Elisa setornara muito dependente e apagada depois do casamento. Quantas vezes lhe
pedira que mudasse sua maneira de ser? Sabia que ela estava errada. Mas nuncafora ouvida. Doíalhe perceber que, de certa forma, Eugênio tinha algumasqueixas também.
Não queria pensar nisso. Seria injuriar sua memória. Ela não estava mais alipara se defender. Por isso, disse:
— Não gosto de falar sobre isso. Não tem remédio mesmo. Vou dormir. — Iasaindo e voltou para dizer — apesar de tudo, tenho interesse em que se recupereo quanto antes, por causa das crianças. Por isso, se precisar de alguma coisa
durante a noite, pode chamar. Deixarei a porta do quarto aberta.
Ele a olhou e não respondeu. Sentia-se deprimido, triste. Apagou a luz do
abajur e pensou em dormir. Sentiu uma sensação de medo. Parecia sentir vultospela sala.
— Que bobagem ! — pensou. — Nunca tive medo de nada. Estou ficando
fraco. Onde já se viu?
Mas acendeu a luz novamente. Apanhou o jornal e suspirou resignado.Tentaria ler mais um pouco. De repente, sentiu vontade de urinar. Começou a
medir a distância de onde se encontrava até o lavabo. Não media mais de cincoou seis metros, mas naquele momento pareceu-lhe impossível vencê-la. Mas ele
precisava ir. Criou coragem e tentou levantar-se. Apesar da dor, conseguiuequilibrar-se em uma perna só. Poderia ir pulando, mas e se escorregasse?
Resolveu experimentar a muleta improvisada. Com ela, conseguiu chegar ondepretendia. Uma vez aliviado, olhou-se no espelho e viu o quanto se abatera.
Precisava reagir. Afinal, a vida não ia se acabar só porque ele quebrara a
perna. Muitas pessoas quebravam a perna e se recuperavam perfeitamente. Era
preciso ter paciência. A dor ia passar e logo ele estaria melhor.
Voltou ao sofá e teve que reconhecer que a idéia de Olívia fora providencial.
Sem aquela muleta, talvez não tivesse conseguido ir e o vexame teria sido maior.
Olívia era uma mulher prática. Isso facilitava muito a vida. Pela primeira
vez, começou a pensar na maneira desenvolta como ela resolvera os problemas,desde a morte de Elisa. Apesar das divergências, ela o ajudara muito. Claro quea seu modo. Era muito diferente de Elisa, que nunca tomava iniciativa.
Consultava-o sobre
as mínimas coisas e só fazia o que ele dizia. Ela era muito boa, mas às vezesessa passividade o irritava um pouco.
Lembrava-se dela com saudade. A seu lado, sua vida correra sempre
maravilhosamente bem. Ah! Se pudesse voltar no tempo! Nunca a teria deixado.
Percebia que Eunice fora uma paixão sem profundidade. Como pudera pensarem abandonar a família por causa dela? Agora que estava livre, essa febrepassara. Esquecera completamente. E Lourdes, viria a representar algo
verdadeiro em sua vida? Não sabia. Sentia-se atraído por ela, mas não a amava.
Ela era inteligente, educada, bondosa e muito diferente de Elisa. Se um dia
eles viessem a se casar, ela também mudaria, como Elisa mudara? Por que seráque as mulheres se transformam tanto com o casamento?
O espírito de Elisa olhava-o triste. Ela percebia cada pensamento de Eugênio.
Como fora ingênua! Como se anulara! Lembrou-se da mãe quando lhe dizia:
— A mulher só se realiza no papel de mãe e de esposa. Nada é mais
importante do que isso.
Tudo quanto ela sonhara na vida fora ser uma excelente mãe e esposa. De
que lhe valera? Gostaria de encontrar a mãe frente a frente para dizer o quantoela estava enganada. Por sua causa, por acreditar no que ela lhe dizia, fizera desua vida uma ilusão. Nada disso era verdade!
— Elisa!
Elisa levantou-se assustada. Uma mulher jovem e bonita estava diante dela.
— Quem é você? — indagou ela.
— Não se lembra de mim? Sou Virgínia. Tenho procurado lhe falar, mas vocênunca me ouviu.
Elisa sentia-se atordoada:
— Minha vizinha que morreu de desastre? Está viva, como pode ser isso?
— Você também morreu atropelada. Que diferença faz? Continuamos vivas eisso é o que conta.
Elisa olhava-a temerosa. Nunca havia pensado que poderia encontrar-se comseus amigos mortos. Estava embaraçada. Virgínia aproximou-se dizendo:
— Olhe para mim, Elisa. Pense em nossa amizade. Sempre gostei de você.
Elisa olhou e havia tanto amor naquele olhar que ela não resistiu e gritoudesesperada:
— Virgínia, minha dor é imensa!
Virgínia apertou-a nos braços dizendo emocionada:
— Chore, minha pequena. Estamos juntas como antigamente. Desabafe o
que vai pelo seu coração. Finalmente, podemos conversar!
O espírito de Jairo, com a chegada de Virgínia, encolhera-se em um canto dasala, observando preocupado. Não gostava dessas interferências. Percebia queaquela mulher poderia influenciar Elisa. Ficaria atento, para comunicar ao chefe.
Ela parecia não haver notado sua presença.
Elisa, acariciada e sentindo-se compreendida, desabafava contando o que lhe
acontecera. Virgínia, embora soubesse de tudo, ouvia-a atentamente, porquesabia que ela precisava desabafar.
— Sempre fui boa esposa, fiz tudo para que Geninho fosse feliz. Renunciei amim mesma em favor dele e dos nossos filhos. Para quê? — enfatizou ela comamargura. —
O que foi que ganhei? Apenas desprezo e ingratidão. Olívia estava certa. Ocasamento é uma armadilha. Os homens são todos volúveis, e nada importa aeles, senão sexo.
Eugênio me traía o tempo todo. Por fim, me abandonou com as crianças,
trocando-nos pelo amor de outra mulher.
Virgínia alisava-lhe a cabeça reclinada em seu peito. Quando ela se calou,disse calma:
— Você está cansada. Precisa refazer-se. Não se martirize tanto com algo
que já passou.Precisa cuidar-se. Reencontrar o prazer de viver.
— De que forma? Como esquecer se a ferida ainda sangra e meus filhos
estão sozinhos?
— Ninguém está só. Seus filhos estão protegidos e bem cuidados. Neste
momento, pouco pode fazer por eles. Você está doente e precisa de tratamento.Venha comigo.
Vou levá-la a um lugar de paz onde será muito bem atendida. Logo estarábem e em condições de ajudar a todos os que ama.
Elisa afastou-se um pouco fitando-a com tristeza:
— Não posso. Meu dever é ao lado dos meus filhos. Sou uma boa mãe. Meu
primeiro dever é com a família. Lembra quando você me dizia que ser boaesposa e mãe é nossa maior missão?
Virgínia sustentou o olhar e respondeu:
— Isso não deixa de ser verdade. Essa é realmente uma grande missão. No
entanto, a maneira pela qual pretendemos cumpri-la é que faz a diferença. Não épreciso anular-se para ser uma boa companheira. É participando, assumindo seu
lugar, dividindo as alegrias e aspirações, as obrigações e os problemas.
— Mas eu cooperei! Economizei para ele, fiz tudo para queele pudesse brilhar, tivesse o melhor carro, as melhores roupas. Isso não foi
contribuição?
— Foi, minha querida. Você fez o que achou melhor. Deu de si, dentro do quesabia.
— Ele não pensa assim. Sabe o que disse à Olívia? Que ele não pediu paraque eu fizesse isso. Que preferia que eu tivesse continuado a ser como antes docasamento. Ele não reconheceu o que fiz, o ingrato. Dá mais valor àquela fútil da Eunice que vive pensando em dinheiro e posição e detesta crianças.
Virgínia alisou a cabeça de Elisa com carinho.
— Não se atormente mais com isso. As pessoas são diferentes umas das
outras. Não pode querer que Eugênio pense como você.
— Ele vai ter que assumir a família. Tem obrigações a cumprir com os filhos,já que eu estou aqui de mãos atadas, por culpa dele.
— Elisa, venha comigo. Desejo mostrar-lhe um lugar maravilhoso derefazimento e paz.
— Gostaria muito. Tenho estado arrasada. Mas agora é impossível. Ainda nãoacabei o que preciso fazer. Quem sabe um dia, quando as crianças crescerem enão precisarem mais de mim, eu irei com você.
— Elas estão bem. Precisa reconhecer que Eugênio tem se esforçado para
que nada lhes falte. Depois, Olívia está vigilante. Pode confiar.
— Ele pensa em voltar a casar. Procura alguém que possa substituir-me. Nãoquero que meus filhos sejam entregues a uma madrasta.
— Por que não? De repente, pode ser uma moça boa, que cuide bem deles.
Já que não pode voltar lá, essa até que seria uma boa solução.
— Deus me livre! Nunca permitirei. Ele é quem tem que cuidar deles até quecresçam.Não quero que outra tome meu lugar! — Os olhos de Elisa brilhavam decólera.
Virgínia desviou o assunto:
— Está bem. Você é quem sabe. Mas eu gostaria que viesse comigo. Eu a
levaria a um salão de beleza. Já reparou como está abatida? Precisa reagir. Vemcomigo! Poderá ver as crianças quando quiser. Conseguirei licença para você.
Elisa abanou a cabeça negativamente.
— Não quero. Sei do que está falando. Já quiseram me levar a um lugar
desses, de onde não se pode sair sem permissão.Não suportaria. Sou livre. Já fui escrava do lar durante muito tempo. Agoraacabou.Ninguém conseguirá prender-me de novo.
— Elisa, você precisa de tratamento. Seu estado pode piorar. Você sempre foicalma e cordata. Venha comigo.
— Fui e me dei mal. Agora não sou mais. Só farei o que quiser. Nunca maisserei escrava de ninguém.
— Lamento que pense assim. Você sofreu com a desilusão, porém a revoltapode fazê-la sofrer muito mais. Pense nisso. A vida é o que fazemos dela. Aceite o que
lhe aconteceu. Um dia compreenderá como atraiu isso. Não crie um sofrimentomaior. Não aprofunde a ferida. Só o perdão pode aliviar o coração e fazeresquecer.
— Não acredito nisso. Não vou perdoar. Ao contrário. Vou me vingar oquanto puder e vigiar. De agora em diante, Geninho só vai fazer o que eu quiser.
Virgínia abraçou-a com carinho dizendo:
— Preciso ir. Lembre-se que eu a quero muito e desejo o seu bem. Se
precisar de alguma coisa, pense em mim e virei imediatamente. Se mudar deidéia, estarei esperando.
Beijou-a delicadamente na face e se foi. Elisa permaneceu pensativa e triste.
Por que lhe acontecera tudo isso? pensava desanimada.
Jairo aproximou-se imediatamente dizendo:
— Ainda bem que não cedeu. É isso mesmo. Tem muita razão. Você semprefoi passada para trás. Não seja boba de cair nessa outra vez.
Elisa abanou a cabeça:
— Sei o que quero. Agora, ninguém vai me enganar de novo.
— Isso mesmo. Com a nossa ajuda, conseguirá tudo quanto deseja. É só nãodesobedecer o chefe. Ele vai se zangar se souber que deu ouvidos a outraspessoas. Se quer a proteção dele, tem que fazer tudo como ele quer.
— Ela é minha amiga e não pude evitar. Mas você viu que eu não atendi aoque me pediu. Sou grata pela ajuda de vocês.
— É bom que pense assim. Não poderia se afastar agora, você já nos devealguns favores e tem que pagá-los. Esse foi o trato, não é verdade?
— É. Estou pronta a fazer o que me pedirem.
— Estou só esclarecendo, porque você é novata e pode resolver entrar na
dela.
— Isso não vai acontecer. Estou decidida. Sei o que quero! Jairo sorriusatisfeito:
— Assim é melhor. Agora vamos embora. Por enquanto, nada mais temos afazer aqui.
— Gostaria de ficar mais um pouco.
— Para quê? Tudo está bem. Voltaremos amanhã. Não pode ficar só aqui.Precisa aprender várias coisas e temos trabalho a fazer.
Elisa não tinha vontade de ir, mas concordou. Tinha receio de contrariá-lo.Não queria desagradá-los e perder aquela ajuda tão preciosa. Por isso, foi até oquarto das crianças, beijou-as com carinho. Com um suspiro triste, saiuacompanhando Jairo e, dentro de alguns instantes, seus vultos desapareceram nassombras da noite .

A VERDADE DE CADA UMOnde histórias criam vida. Descubra agora