Capítulo 16

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Eugênio entrou em casa preocupado. Euvira o chamara dizendo que Nelinha
estava com muita febre. Subiu para o quarto da filha e vendo Euvira sentada ao
lado da cama, perguntou:
— E então? Baixou a febre?
— Não. Já dei o remédio que o senhor mandou, mas a febre continua alta.
— Quanto tempo faz?
— Uns vinte minutos.
— Humm. Já deveria ter feito efeito.
Nelinha, corada, olhos lacrimejantes, tossia de vez em quando.
— Será gripe? — disse Eugênio.
— Parece. Só que gripe não dá febre tão alta. Ela tem trinta e nove graus.
— Vou chamar o médico. Isso pode complicar.
Eugênio foi telefonar, e Nelinha reclamava choramingando:
— Pai, fica comigo. Está doendo minha cabeça.
— Seu pai já volta — prometeu Euvira. — Não chore.
— Eu quero minha mãe!
— Ela não pode vir. Acalme-se. Seu pai volta logo. Nelinha pareceu não ouvir
e continuou:
— Mãe! Onde você está? Por que me abandonou?
Euvira, penalizada, tentava confortá-la, mas ela chorava e continuava
chamando pela mãe.
Elisa, que estava no escritório com Eugênio, o acompanhara e, emocionada,
abraçava Nelinha dizendo:
— Estou aqui, filha. Nunca a abandonei. Não chore.
Vendo que ela não registrava sua presença, resolveu experimentar o que
havia aprendido. Concentrou-se e envolveu Nelinha com amor, repetindo com
firmeza: —
estou aqui. Sou eu. Veja. Você pode me ver e sentir. Vim para ajudar. Não
chore.
Nelinha parou de chorar, esboçou um sorriso dizendo contente:
— Mãe! Você veio! Eu sabia que você não ia me abandonar. Fica comigo!
Estou me sentindo tão mal!
Elisa abraçava-a com amor e com pensamento firme dizia:
— Você vai ficar bem. Eu estou aqui.
Elvira, ouvindo as palavras de Nelinha, assustou-se. Ela estava delirando. A
febre teria subido? Colocou o termômetro novamente e esperou. A menina adormecera, mas pela respiração agitada ela percebia que a febre não baixara.
Eugênio voltou em seguida:
— Falei com o médico. Dentro de pouco estará aqui.
— É bom mesmo. Ela está delirando.
— Delirando?
— Chamava pela mãe. Depois disse que ela estava aqui. Olhe o termômetro.
A febre não subiu. Será que a alma de D. Elisa veio mesmo?
— Não diga besteira, Elvira. Quem morre não volta.
— Ela disse que a mãe veio e que sabia que ela nunca a abandonaria.
Precisava ver a cara de felicidade dela. Parecia que estava vendo mesmo. Estou
ficando com medo.
— Só me faltava esta! Não percebe que ela chama pela mãe, porque está se
sentindo mal? Toda criança quer a mãe nessa hora. Ela está fantasiando. É uma
maneira de satisfazer sua vontade de ter a mãe de volta. É só alucinação. Quando
a febre passar, ela nem se lembrará disso.
Elvira olhou desconfiada. Seu irmão contava sempre histórias de
assombração e ela sentia muito medo. Ele costumava brincar com ela dizendo:
— tome cuidado. Trate bem das crianças. A alma da mãe delas está vigiando. Se
judiar delas, vai aparecer e pedir contas.
Apesar de saber que ele não acreditava no que estava dizendo, ela não queria
nada com alma do outro mundo. Se desconfiasse que a mãe das crianças poderia
estar por ali, deixaria o emprego. Gostava de trabalhar lá. Não tinha patroa para
mandar. D. Olívia era educada, e o dr. Eugênio a tratava bem. Afeiçoara-se às
crianças e elas também a tratavam com carinho.
— Em todo caso, seu Eugênio, seria bom que mandasse benzer a casa. Nunca
se sabe.
— Deixe de bobagem. Precisamos é tratar de Nelinha.
O médico chegou pouco depois e examinou Nelinha dizendo por fim:
— Ela está com sarampo. Não é nada grave. Alguns cuidados
e ela ficará bem. Os outros já tiveram?
— Já. Faz tempo. Nelinha ainda não havia nascido.
— Os cuidados são os mesmos.
— Gostaria que me dissesse o que fazer. Naquele tempo, minha mulher
cuidava de tudo, e eu não sei como tratar essa doença.
— É contagiosa. Vocês também já tiveram?
Eles já haviam tido e o médico receitou os medicamentos. Depois que ele se
foi, Eugênio mandou Elvira à farmácia e sentou-se no lado da filha. De vez em
quando colocava a mão na testa dela e percebia que a febre continuava alta. O
médico dissera que era assim mesmo. Mas olhando o rostinho corado de Nelinha,
Eugênio sentia o coração oprimido. Criança não deveria ficar doente, pensava.
Ela acordou tossindo e com olhos lacrimejando muito. Ele deu uma
colherada de remédio e pingou um remédio no nariz.
— Está melhor, filha? — perguntou ansioso.
— Estou. Onde está mamãe? Ela foi embora outra vez? Eugênio tentou
desconversar:
— O médico disse que é sarampo. Logo você estará boa.
— Você a viu, pai?
— Quem?
— Amamãe. Ela me abraçou muito e disse que nunca vai me abandonar.
— Não, eu não vi.
— Aquele machucado que ela tem na testa foi do desastre?
Eugênio sobressaltou-se. Como Nelinha sabia que Elisa ficara com um
ferimento na testa? Ela não vira o corpo da mãe. Com certeza alguém teria
contado. Teria sido Olívia? Não. Ela tinha muito cuidado com as crianças. Não
seria capaz dessa maldade.
Precisava saber:
— Quem falou que sua mãe ficou com a testa machucada?
— Ninguém, pai. Eu vi. Ela tinha uma marca de ferida na testa. Sabe que
ainda não sarou?
— Vamos deixar isso de lado. Você precisa repousar para o remédio fazer
efeito logo e você sarar.
— Me conta uma história?
Eugênio concordou e tentou distraí-la contando algumas histórias. No fim da
tarde, Olívia e Amaro apareceram para ver Nelinha. Vendo-os juntos, Eugênio
sorriu. Eles agora não se largavam. Olívia lhe parecia menos agressiva. Teria
Amaro domado a fera?
Enquanto Olívia ficava com Nelinha no quarto, Eugênio conversou com
Amaro
contando-lhe as palavras de Nelinha:
— Ela delirou por causa da febre. Teve uma alucinação.
Mas como é que podia saber que Elisa tinha uma marca na testa? Quem teria
contado?
Nunca comentamos isso em casa, e as crianças não viram a mãe depois de
morta. Sabe como é, nós quisemos poupá-las. Isso me deixou intrigado.
— A explicação é fácil e simples. Nelinha chamou e ela veio. Sempre foi
mãe amorosa.
Não resistiria a um chamado desses.
— Você diz isso com uma facilidade! Como se fosse possível! Elisa está
morta! Eu vi quando a enterraram.
— Você viu quando enterraram o corpo, mas não tem condições de ver onde
está o espírito dela. Acredite, Eugênio, Elisa continua viva em outro mundo. Hoje
você teve uma prova disso. Por que é tão resistente?
Antes que respondesse, Olívia apareceu na sala assustada:
— Nelinha disse que viu Elisa! Será mesmo?
— Ela está com febre alta. Teve uma alucinação.
— Vamos conversar com ela de novo — sugeriu Amaro. Juntos, subiram ao
quarto de Nelinha, e Amaro sentou-se
ao lado da cama dizendo com naturalidade:
— Sua mãe veio visitar você. Conte pra mim como foi isso.
— Eu estava chamando mamãe, porque minha cabeça doía muito e eu
estava com frio.
Eu queria vê-la. Aí, ela veio, me abraçou e disse: "Estou aqui, filha, sou eu,
veja. Nunca a abandonei. Não chore. Você vai ficar bem. Eu estou aqui". Vi o
machucado dela na testa e queria perguntar se tinha sido do acidente. Mas estava
tão bom o abraço dela, senti tanto sono que dormi. Quando acordei, ela já tinha
ido embora. Quando ela voltar, vou perguntar onde é a casa dela. Será que eu
posso ir lá de vez em quando?
— Não. Onde ela mora, nós ainda não podemos ir.
— Você sabe onde é?
— Sei que é longe, em outro mundo, É difícil para ela vir até aqui. Você
precisa entender e não ficar chamando-a. Tenha paciência. Saiba que se ela
pudesse, estaria aqui. Se não está, é porque Deus quis que ela fosse para outro
lugar. Ele sabe o que é melhor.
— Eu queria que ela ficasse aqui comigo como antes.
— Ela também gostaria. Mas não é possível por enquanto. Ela agora só pode
visitar de vez em quando.
— Espero que ela venha de novo.
— Ela estava bem? Alegre e disposta?
— Não. Estava chorando. Acho que ficou triste por me ver doente. Ela
emagreceu e estava pálida.
— Você estava chorando, ela ficou preocupada com você. Quando pensar
nela, procure se lembrar de como ela era, cheia de
saúde e alegria. Você vai sarar logo, e ela vai ficar bem. De volta à sala,
Eugênio comentou:
— Não sei se é bom alimentar a ilusão dela como você fez. Ela pensou que
essa visita foi real.
— E foi. Elisa esteve mesmo aqui com ela e talvez ainda esteja.
— Será? — disse Olívia, impressionada.
— Como duvidar depois do que Nelinha contou? Ela deu detalhes.
— Disse que Elisa estava magra, pálida e chorando — considerou Olívia.
— Essa deve ser a realidade. As crianças na idade de Nelinha têm muita
facilidade de perceber o mundo astral. É comum elas verem determinados
espíritos, algumas costumam ter amigos e passam horas na companhia deles. Os
pais acreditam que seja só imaginação. Mas não. Elas percebem mesmo a
presença deles. Com o tempo, geralmente depois dos sete anos, elas estão mais integradas na reencarnação
e esquecem o mundo astral.
— Se Elisa esteve ou está aqui, podemos tentar falar com ela. Seria possível?

perguntou Olívia.
— Não. Nós não temos os elementos adequados para isso.
— Um médium de incorporação? — perguntou ela.
— Pelo visto, você já entrou na conversa dele — interveio Eugênio,
admirado. — Logo você, sempre tão pé no chão, tão materialista.
— Olívia é mais sensata do que você. Há algum tempo está estudando o
assunto. Você deveria fazer o mesmo. Garanto que está precisando.
— Por quê?
— Ajudaria sua vida e a de sua família. Depois, pelo que Nelinha disse, Elisa
ainda não está bem. Seria uma forma de ajudá-la a equilibrar-se.
— Você acha que ela não está bem mesmo? — tornou Olívia séria.
— Pelo que Nelinha descreveu, ela ainda está sofrida e não superou o que
aconteceu.
— Vocês estão dando demasiada importância ao que Nelinha disse. Ela tem
só quatro anos. Além disso, queimava em febre.
— Seja como for, você deveria ir ao Centro Espírita. Rezar não lhe faria mal
algum.
— Deixe para Olívia. Ela sempre quer saber tudo. Eu não quero me meter
nisso.
— Pois eu quero. Se existe alguma coisa, eu vou descobrir. Se Elisa continua
existindo em algum lugar, se é verdade mesmo que pode se comunicar conosco,
eu quero falar com ela.
— Isso é fantasia! Nunca ninguém voltou para dizer o que acontece depois da
morte.
Morreu, acabou — enfatizou Eugênio.
— Negar simplesmente não resolve nada. Depois do que tenho lido, das
pesquisas de tantas pessoas sérias e cultas que se convenceram de que a vida
continua após a morte, minha descrença está desaparecendo. Há muitas coisas
neste mundo que ainda não podemos compreender... nossos olhos enxergam tão
pouco... nossos sentidos nos enganam tanto... quantas coisas haverá que nós ainda
não percebemos?
— Mas daí a pensar que alguém que já morreu e foi enterrado possa voltar, é
uma loucura.
— A vida é uma aventura espetacular — interveio Amaro. — Há muitos
séculos, quem no mundo poderia acreditar que estivéssemos todos vivendo em
cima de uma bola que gira no espaço, em grande parte coberta de água, sem que ela se derrame ou que um de nós caia? Também não é uma loucura? Entretanto, hoje ninguém mais questiona isso.
— Não questiona, porque já está cientificamente provado. O que não
acontece com a vida após a morte — retrucou Eugênio.
— Pode ainda não estar para você, que nega sem investigar. O que significa
que o faz sem base. Já existem provas concludentes sobre a vida após a morte,
mas o preconceito ainda é grande. As manifestações dos espíritos acontecem em
toda parte e raras são as famílias que não podem contar alguma coisa sobre isso.
Ocorre que as pessoas têm medo de não serem compreendidas e preferem
guardar segredo sobre esses fatos. Dia virá que a ciência oficial, mais
amadurecida e sem ter mais como negar, será forçada a reconhecer a
continuidade da vida após a morte.
— Até lá vou continuar descrente — disse Eugênio. — Não vou entrar nessa
ilusão.
Amaro olhou-o sério e respondeu:
— Do jeito que as coisas estão, melhor seria que você não pensasse assim.
Sua descrença pode vir a lhe trazer maiores problemas do que já está tendo. Sou
seu amigo há muitos anos. Sempre tive minhas convicções espirituais e nunca lhe
disse nada sobre isso nem tentei convencê-lo a que compartilhasse das minhas
opiniões. Porém, agora você está sendo chamado a pensar na vida espiritual.
Quando isso acontece, não dá mais para escapar. Quanto mais resistir, mais a
pressão aumentará ao seu redor.
Eugênio sentiu um arrepio de medo e tentou disfarçar:
— O que quer dizer com isso?
— Que você está maduro para entender certas coisas e a vida o está
pressionando. Não tenho dúvida de que você está sendo chamado para começar
a enxergar além do mundo material e olhar a vida de outra forma, mais lúcida e
completa. Precisa progredir espiritualmente e não pode fazer isso sem sair do
mundo estreito onde você vive.
Precisa abrir sua mente, alargar seu espaço, ampliar suas fronteiras.
Amaro falava mansamente, mas com voz firme. Eugênio, admirado,
escutava sentindo-se leve como se houvesse alguma coisa diferente no ar. Amaro
continuou:
— Aproveite, Eugênio. Enriqueça sua alma, fortaleça seu espírito e tudo em sua vida será diferente. A pretexto de não se iludir, você mergulha na descrença
que é a maior ilusão. É a fé que alimenta e conforta. Você ainda não tem essa crença, mas nada o impede de pensar no assunto, de investigar, de procurar uma
prova, seja do que for que possa lhe dar uma resposta. Qualquer coisa será preferível do que negar por negar. Você está fechando os olhos para não ver. Isso não vai modificar os fatos. A tragédia que se abateu sobre sua vida, a infelicidade de Elisa que ainda não encontrou a paz, os problemas angustiantes de sua vida pessoal que se agravaram e poderão se tornar mais graves.
— Eu quero esquecer e você me obriga a pensar nesse assunto. Só eu sei a
falta que Elisa me faz e ninguém mais do que eu lamenta o que aconteceu. Mas
ela morreu e eu estou vivo, preciso cuidar da minha vida, não posso continuar
pensando nisso. Essa história de que ela está viva e infeliz no outro mundo, é
muito distante e não me parece real. O que posso fazer? Estou sendo sincero.
— Sei disso. Mas por que resiste tanto a ir conosco a uma reunião no Centro
Espírita?
Estará com medo?
— Claro que não. É que não me sinto bem com essa idéia. Não sou religioso.
Acredito em Deus, mas não gosto das religiões. Rezo a minha maneira. Depois,
nunca aceitei essa história de médiuns e espíritos. Sendo assim, o que irei fazer
lá? Estarei sendo hipócrita. Não vou me sentir bem, tenho certeza.
— Está bem. Respeito sua opinião, embora continue achando que seria muito
melhor se fosse conosco. Em todo caso, não vou mais falar nisso. Quando
resolver ir, é só me avisar.
— Esse dia nunca chegará — disse Eugênio, convicto.
— Não diga isso que pode se arrepender — retrucou Olívia.
— Você gostaria muito que eu me arrependesse só para
provar que eu estava errado. Mas não terá esse prazer — respondeu Eugênio,
sarcástico.
— Elvira tem que ir embora e vou subir para ficar com Nelinha — tornou
Olívia tentando ignorar a resposta do cunhado.
Depois que ela subiu, Eugênio comentou:
— Viu como ela é? Sempre que pode, quer me derrubar. O prazer dela é me
ver no chão.
— Não seja ingrato. Ela tem dado muita assistência às crianças. Se não fosse
por ela, você teria tido muito mais problemas.
— Isso é, mas ela não perde ocasião para mostrar o quanto me odeia.
— Você está exagerando. Ela não morre de amores por você, mas daí a
odiar, vai grande distância. Não seja dramático.
Em um canto da sala, Elisa presenciara toda a conversa. Gostaria de poder
aparecer ali, para provar para o Eugênio que ela continuava viva, mas era
impossível. Viu quando o Amílcar chegou e, através de Amaro, conversou com
Eugênio. Se por um lado, ela estava preocupada com a doença de Nelinha, com
a vontade que eles tinham de levar Eugênio ao Centro Espírita, por outro,
pensava:
— Como o Eugênio é ignorante! Sempre pensei que ele soubesse mais do que
eu e agora estou vendo que eu sou mais esperta. Ele nem imagina que eu estou
aqui, fazendo com ele o que eu quero. Quantas coisas aprendi que ele nem sonha.
Ele não passa de um pretensioso que não enxerga um palmo diante do nariz.
Amílcar aproximou-se de Elisa:
— Como vai, minha filha?
— Bem. Estou preocupada com a Nelinha. Ela está com muita febre.
— Você sabe que o sarampo é assim mesmo. Amanhã ela já estará bem.
— Tem certeza?
— Tenho. Você vai passar a noite aqui?
— Bem que eu gostaria. Infelizmente não posso. Eu trabalho, tenho que ir.
— Por que não pede dispensa por esta noite? Assim poderá ficar ao lado dela.
Elisa suspirou:
— Eu gostaria muito, mas é impossível. Meu chefe é muito rigoroso. Não
tolera falhas de disciplina.
Amílcar olhou-a firme nos olhos e perguntou:
— Você está feliz vivendo naquele lugar?
O rosto de Elisa entristeceu, e ela respondeu:
— Há muito tempo que eu não sei o que é felicidade. Desde aquele dia em
que fui abandonada, nunca mais pude ser feliz.
— Ninguém pode ser feliz conservando a mágoa no coração. Se deseja
encontrar a paz interior e a felicidade, precisa primeiro aprender a perdoar. Esse
é o primeiro passo.
O rosto de Elisa transformou-se e seus olhos brilharam de rancor:
— Como posso perdoar, se eu dei todo meu amor, minha dedicação ao
Eugênio, se esqueci de mim para cuidar do bem-estar dele, e ele me trocou por
outra? Se ele me enlouqueceu a tal ponto, que eu saí desnorteada e por causa
disso perdi a vida naquele acidente? Como esquecer meus filhos pequenos que
ficaram sós sem que eu possa cuidar deles como sempre fiz? Quem poderá me
devolver tudo quanto eu perdi?
— A vingança e o rancor também não vão trazer tudo de volta. Só podem
agravar seus padecimentos e atrasar a conquista da sua paz. O perdão dará alívio
ao seu coração aflito e fará mais por você do que qualquer outra coisa.
— Sinto que o senhor é bom e quer me ajudar. Agradeço sua intenção, mas
só eu sei a dor que me vai na alma. O Eugênio tem que pagar pelo que me fez.
— Você vai se machucar ainda mais.
— Agora nada mais importa. Perdi tudo quanto eu mais amava. O que me
resta, senão amargar minha tristeza e vigiar minha família protegendo meus
filhos, para que nada de mal lhes aconteça?
— Você poderia fazer mais se estivesse bem. Você está doente, Elisa. Precisa
se tratar.
— Eu tenho amigos que cuidam de mim. Nada me falta.
— Em todo caso, eu gostaria que pensasse um pouco no que eu lhe disse.
Gosto de você e quero ser seu amigo. Se um dia as coisas piorarem e precisar de
ajuda, basta me chamar e eu irei vê-la. Lembre-se disso.
Elisa agradeceu confortada. Quando conversava com Amílcar, sentia-se bem. Mas não podia concordar com o que ele dizia. Subiu ao quarto de Nelinha e
aproximou-se de Olívia que, sentada ao lado da cama, velava, colocando de
quando em quando a mão na testa da menina para ver se a febre havia
melhorado. Ela ainda tinha bastante febre, mas notava-se que estava mais
tranqüila. Parecia melhor.
— Olívia — disse Elisa — que vontade de falar com você! De abraçá-la, de
colocar a cabeça em seu colo e falar tudo que sinto como quando nós éramos
crianças! Tempo bom aquele! Apesar da
morte dos nossos pais, nós conseguimos viver muito bem. Você está
começando a entender que eu continuo viva. Que bom se eu pudesse aparecer
agora, para dizer: é verdade! Eu estou aqui. Mas não posso. E o pior, tenho que ir
embora. Não tenho sequer o direito de ficar ao lado de Nelinha. Por que fui me
comprometer com aquela gente? Se não tivesse feito isso, agora poderia ficar
aqui o quanto quisesse.
Olívia recordou-se de Elisa e pensou:— Se ela estivesse aqui, estaria sentada
em meu lugar. — A vida fora cruel com Elisa. Se ela estivesse mesmo viva no
outro mundo, deveria estar muito triste por não poder cuidar de Nelinha. Sem
pensar bem o que fazia, Olívia disse em voz alta:
— Fique tranqüila, Elisa. Eu não sairei daqui até a febre passar. Pode ficar em
paz que eu estou fazendo o que você faria.
Elisa sorriu. De alguma forma, Olívia registrara suas palavras. Mais calma,
saiu apressada. A hora estava avançada, e ela se dirigiu rapidamente ao
apartamento de Inês.
Tinha que substituir uma companheira. Esta já estava impaciente:
— Puxa, Elisa, hoje você demorou.
— Desculpe, mas minha filha estava com muita febre e eu fiquei lá mais do
que deveria.
— Está bem. Já vou indo. Hoje as coisas aqui prometem. Parece que é a
grande noite.
Você sabia?
— A grande noite?
— Pois é. A cobrança da sentença. Mas estou atrasada, preciso ir. O Jairo
depois te conta tudo.
Ela se foi, e Elisa não entendeu nada do que ela lhe dissera. Que sentença
seria aquela?
Adalberto mencionara o julgamento de Carlos e uma sentença. Seria isso?
Sentiu uma sensação desagradável. Não gostava de confusão. O que estaria para
acontecer?
Deu uma volta pelo apartamento e não encontrou nada de anormal. Inês,
como sempre, jogada na cama, enquanto o marido não aparecera para o jantar.
A mesa posta e as panelas no fogão revelavam que nem Inês havia se alimentado. As crianças já estavam no quarto, e a empregada, cansada de
esperar para servir o jantar, também se recolhera.
— Como ela é boba — pensou Elisa.— Eu nunca mais farei isso. Se eu voltar
a nascer na Terra, conforme me disseram, e casar de novo, ninguém vai mais
me fazer de trouxa.
Eu é quem vou dar as cartas. Homem nenhum vai mais mandar em mim.
Aprendi a minha lição.
Acomodou-se na poltrona, no quarto de Inês, e esperou. O dia estava
amanhecendo quando Adalberto apareceu, olhou para Inês adormecida e disse a
Elisa:
— Ela está bem? Tomou muito remédio?
— Não. Esta noite não tomou nada.
— Você precisa ficar preparada para ajudá-la. Ela está melhor, mas não sei
ainda como vai reagir quando souber.
— Souber o quê?
— A justiça se cumpriu.
— De que forma? O que aconteceu?
Antes que Adalberto pudesse responder, o telefone tocou. Inês acordou e
atendeu:
— Alô... o quê? Meu Deus! Tem certeza? Onde? Irei imediatamente.
Ela estava pálida. Adalberto e Elisa correram para sustentá-la transmitindo-
lhe energias revigorantes. Cambaleante, Inês chamou a empregada dizendo
nervosa:
— Telefonaram da polícia. Carlos foi assaltado, parece que se feriu. Preciso
ir lá imediatamente.
— Vou com a senhora. Não é melhor telefonar para o dr. Nelson?
— Não vamos precisar de advogado. Preciso ver se o Carlos está bem.
Sempre temi que acontecesse algo. Ele bebe, sai de madrugada, leva muito
dinheiro nos bolsos. Meu Deus! Estou tão nervosa que nem acho a roupa para
vestir.
— Eu ajudo a senhora. Vou chamar o chofer para tirar o carro.
A criada procurou a roupa, entregou a Inês e telefonou para o chofer pedindo
o carro.
Correu para o quarto, vestiu-se rapidamente e voltou para ajudar Inês a
acabar de se arrumar. Ela parecia uma barata tonta e não sabia o que fazer.
— Precisamos fortalecê-la bem — disse Adalberto. — O momento é crucial.
— Carlos está mal? — indagou Elisa.
— Carlos está morto — retrucou Adalberto. — A justiça foi cumprida.
Elisa estremeceu e começou a tremer. Estava apavorada. Eles teriam alguma
coisa que ver com a morte de Carlos? Adalberto olhou-a sério e ordenou:
— Não seja mole nessa hora. O que é isso? Tem que reagir. Pensei que você fosse melhor.
Elisa, assustada, procurou não se impressionar.
— Desculpe, é meu primeiro trabalho. Não estou acostumada com um caso
desses.
— Pois trate de se acostumar. Não podemos fraquejar agora. Não percebe
que Inês precisa de todo nosso apoio? Trabalhamos tanto para isso!
Elisa concordou e procurou não pensar. O assalto acontecera, e eles não
tinham nada a ver com isso. Tratou de ajudar Inês transmitindo-lhe energias
revigorantes.
Entraram no carro. Inês estava sendo amparada por Adalberto de um lado e
a criada de outro. Elisa, sentada ao lado do motorista, fazia grande esforço para
se controlar.
Na delegacia, a notícia da tragédia. Carlos fora assaltado e assassinado. A
polícia acreditava que ele tentara reagir e o mataram. Levaram o carro e o
dinheiro, em seu bolso ficara um documento com o qual ele fora identificado.
Inês desmaiou e não teve condições de ir fazer o reconhecimento do corpo. O
motorista e a criada o fizeram, enquanto Inês era socorrida por um médico.
Elisa, pálida, ao entrar na delegacia, notara a presença de alguns companheiros
da organização tomando conta do corpo de Carlos. Assustada, fez o possível para
não demonstrar o medo que sentia.
Se o fizesse, com certeza seria punida.
Adalberto, satisfeito, comandava a operação dizendo aos companheiros que
tomassem conta do corpo de Carlos não deixando ninguém se aproximar.
— Vamos — disse a Elisa. — Sua tarefa é cuidar de Inês. Ela pode dar
trabalho quando acordar. Felizmente o médico deu-lhe forte sedativo, e ela
dormirá por algumas horas. O
suficiente para resistir ao primeiro impacto.
— O que devo fazer? — indagou Elisa, esforçando-se para vencer o mal-
estar e o medo que sentia.
— Vigiar. Dar-lhe energias de fortalecimento. Sustentá-la. — Olhou-a
desconfiado. —
Terá condições de fazer isso? Você me parece perturbada.
— Eu não sabia de nada. Fiquei assustada, mas já passou. Sei como fazer isso.
— Então vá. Se ela voltar a si, me chame imediatamente.
— Está certo.
Elisa postou-se ao lado de Inês, que havia sido acomodada em uma cama. A polícia, depois de haver tomado declarações dos dois empregados, os liberou.
Colocaram Inês deitada no assento traseiro do carro, amparada pela empregada.
Elisa sentou-se na frente, ao lado do motorista. Estava penalizada. Apesar de conhecer os problemas do marido, ela o amava. Por outro lado, estaria livre dele e poderia refazer sua vida.
De repente um pensamento a assaltou. Amorte estava longe de ser uma
solução. Carlos se conformaria em deixar Inês em paz? Fora do corpo, não iria
atormentá-la ainda mais?
Talvez fosse por isso que Adalberto colocara os companheiros vigiando-o,
para que não perturbasse a família. Nesse caso, teria sido um bem. Teria sido só
isso? Eles teriam participado do crime?
A esse pensamento, um arrepio de medo a acometeu. Não, Isso não podia ser
verdade.
Ela desejava vingança, mas seria incapaz de uma atrocidade dessas. Se ao
menos ela pudesse sair da organização... E se eles a perseguissem, prendessem e
torturassem?
Havia ouvido algumas histórias as quais se recusara a acreditar. Seriam
verdadeiras?
De qualquer forma, precisava tomar cuidado. Eles eram argutos e percebiam
seus pensamentos. O mais prudente seria ignorar, fingir que não sabia de nada.
Em casa de Inês, havia desolação e tristeza. As crianças haviam acordado e
se assustado com o estado da mãe.
— Ela ficou nervosa, porque aconteceu um acidente com seu pai e o médico
deu um calmante. Ela está bem — explicou a criada.
— Onde está papai? — indagou um deles.
— No hospital — mentiu ela. — Sofreu um acidente e ficou machucado.
Depois sua mãe conta tudo a vocês.
Acomodaram Inês na cama e trataram de chamar o médico dela.
Conhecendo-a bem, eles queriam que ele estivesse lá quando ela acordasse.
Elisa acomodou-se no quarto. Naquele dia, ela não poderia sair dali. Pensava
em Nelinha, gostaria de ir vê-la e saber se sua febre havia passado, mas
Adalberto fora categórico. Ela teria que ficar ao lado de Inês quanto tempo fosse
preciso.
As horas foram passando sem que Inês desse sinal de vida. Passava do meio-
dia quando ela remexeu-se no leito, e Elisa, percebendo que ela estava
acordando, pensou em Adalberto, chamando-o. Dentro de alguns instantes, ele
apareceu acompanhado de Jairo e mais dois companheiros:
— E então? — indagou. — Tudo calmo por aqui?
— Tudo. Ela parece que está acordando.
— Vamos ajudá-la — disse Adalberto postando-se à cabeceira da cama,
colocando os companheiros ao redor. — Vamos dar-lhes energias revigorantes.
Concentraram-se e Elisa esforçou-se para colaborar, o que não era difícil,
porquanto a figura abatida de Inês, o drama de sua vida, a comoviam muito.
Adalberto aproximou-se de Inês dizendo-lhe ao ouvido:
— Inês, soou o dia da sua liberdade. Finalmente está livre! Nunca mais aquele infeliz se aproveitará da sua fraqueza nem da sua ingenuidade. Esse
capítulo de sua vida está encerrado.
Inês, atordoada, passou a mão pela testa, tentando se recordar do que havia
acontecido.
De repente lembrou-se: Carlos fora assaltado e estava morto. Teria sido um
pesadelo?
Teria sonhado ou seria verdade? Precisava saber.
Chamou a criada fazendo um esforço enorme para que a ouvisse.
— Janete! Janete!
Ela atendeu prontamente.
— Diga que não aconteceu nada. Que eu sonhei, que não é verdade... que o
Carlos não foi assaltado e... diga... não me deixe neste desespero.
— Tenha calma, dona Inês. Não adianta nada a senhora se desesperar agora.
O dr. Silva está a caminho e vai cuidar da senhora.
— Janete, isso não aconteceu, não pode ter acontecido!
A criada continuava em silêncio, não querendo agravar a situação.
— Eu quero levantar — disse ela agitada — preciso vê-lo. Saber a verdade.
Me ajude.
Onde ele está?
— Calma, dona Inês. A senhora precisa ser forte. As crianças estão
assustadas e não sabem de nada. Precisa ver como eles estão pálidos. O que será
deles se a senhora perder a serenidade?
Inês olhou-a e ficou pensativa por alguns segundos. Janete tinha razão. As
crianças precisavam dela. Teria que encontrar forças para reagir. Se ao menos
seu pai estivesse vivo e pudesse ajudá-la naquela hora amarga!
Adalberto, comovido, colocou a mão sobre o peito de Inês dizendo com
amor:
— Minha querida! Eu estou aqui. Nunca a abandonei. Eu a amo como
sempre. Você vai reagir, ficar bem, cuidar de seus filhos e levar uma vida feliz.
Nós cuidaremos para que aquele canalha não a incomode nunca mais. Um dia,
você saberá toda a verdade e nos agradecerá por a termos libertado dele.
Inês respirou fundo e naquele instante o dr. Silva entrou no quarto. Vendo-o,
ela sentou-se na cama e pediu:
— Doutor, me ajude! Eu preciso ser forte, mas não sei se suportarei tamanho
golpe!
Não posso me conformar com o que aconteceu.
Ele a abraçou dizendo:
— Vim para ajudá-la. Ficarei a seu lado o tempo que quiser. Deite-se, o
calmante que lhe deram foi muito forte, não tem condições de se levantar.
— Estou tonta, mas não quero dormir. Meus filhos precisam de mim e eu
quero ver o Carlos. Hei de ter forças para vê-lo. Prometa que não o levarão sem que eu me despeça dele.
— Para conseguir fazer isso, precisa reagir e tentar melhorar. Sei que é
difícil, mas é o melhor que tem a fazer agora. Os meninos estão apavorados.
Tentei acalmá-los, mas ainda não sabem a verdade. Você precisa ser forte nessa
hora.
— Se eu me acalmar, poderei vê-lo?
— Naturalmente. Você vai tomar alguns remédios que irão ajudá-la a ficar
firme.
— Tenho medo que o levem sem que eu veja.
— Isso não vai acontecer. O corpo vai demorar um pouco para ser liberado.
Eu e o dr.
Nelson vamos tratar de tudo. Pode ficar tranqüila. Não faremos nada sem seu
conhecimento.
Inês deixou-se cair na cama suspirando angustiada, depois disse:
— Sempre tive medo que algo acontecesse a Carlos. Mas agora ainda não me
parece verdade.
O médico ficou conversando com Inês, e Adalberto, satisfeito, considerou:
— O pior já passou. Foi melhor do que eu esperava. Agora é só uma questão
de tempo.
Tenho que sair e vocês dois ficam dando energias a ela. Voltarei mais tarde.
Elisa, que contava poder sair, teve que ficar. Jairo ficaria com ela. Quando se viu a sós com ele, ela disse:
— Pensei que fosse ser liberada. Estou preocupada com Nelinha.
— Fique tranqüila, ela está melhor. Elisa animou-se:
— Você foi vê-la?
— Passei por lá hoje cedo. Eu tinha certeza de que me faria essa pergunta.
— Ela está sem febre?
— O sarampo estourou e a febre diminuiu.
— Será que hoje vou poder ir vê-la?
— Estamos em uma emergência. Não podemos facilitar. Se tudo correr bem, verei o que posso fazer.
— Obrigada.
Inês, juntamente com o médico, conversara com os filhos que abraçados a ela, estavam muito assustados. Elisa, vendo a tristeza deles, não continha as lágrimas. Observando sua emoção, Jairo considerou:
— Você é boba, não pode entrar na tristeza deles. O que aconteceu foi para o bem. De agora em diante, eles poderão viver melhor, livres da presença daquele
safado.
— Uma coisa me preocupa: o que Carlos vai fazer quando acordar? E se ele não desistir da família e ficar aqui amolando?
Jairo sorriu tranqüilo:
— Bem se vê que você não sabe de nada! Depois de tanto trabalho para
arranjar tudo, você acha que Adalberto o deixaria livre para fazer o que
quisesse? Para isso, nossos companheiros estão tomando conta dele. Assim que se
libertar do corpo e acordar, ele será levado para a organização. Lá terá que
responder pelos crimes que tem praticado.
Seu julgamento já foi feito, e ele pegou uma pena grande. Pode ter certeza
que, nesta vida, não incomodará mais a família.
Elisa sentiu um calafrio de medo, mas fez o possível para disfarçar.
— Me disseram que ele estava condenado e teria que cumprir a sentença.
Esse assalto favoreceu a que vocês pudessem apanhá-lo.
Jairo olhou-a com ar de superioridade:
— Claro que favoreceu. Tudo foi planejado minuciosamente. Você sabe como é, Inês precisou de tempo para ser preparada e agüentar esse fato. Quando ela estava madura, foi fácil induzir esses ladrões a assaltá-lo.
— Quer dizer que vocês fizeram tudo isso? — disse Elisa procurando encobrir o terror que isso lhe provocava.
— Claro. E tudo saiu como planejamos. Agora, Carlos será levado para a prisão e pagará por todos os seus crimes.
Elisa não respondeu. Tinha medo que ele percebesse o que ela estava
pensando. Eles haviam chegado ao crime para concluir sua vingança! Naquela hora, ela arrependeu-se de haver se metido com aquela gente. Gostaria de poder
sair, mas como fazer isso sem provocar uma reação desagradável? Precisava pensar e encontrar uma maneira. Deveria haver outro lugar e outras pessoas melhores com as quais pudesse morar.

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