Capítulo 8

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Passava das 17 horas quando Olívia chegou na casa de Eugênio na segunda-
feira, carregando algumas guloseimas para o lanche. Quando a viu, Nelinha
correu abraçá-la com satisfação. Olívia livrou-se dos pacotes, colocando-os
sobre a mesa, e pegou a menina no colo beijando-a com carinho.
— Que bom ver você! Como está cheirosa! Tomou banho agora?
— Tomei. Fiquei bonita para esperar você!
— Hum! Que bom! As crianças já chegaram da escola? Foi Elvira quem
respondeu:
— Já. Estão tomando banho.
— Vamos preparar um lanche bem gostoso. Estou morrendo de fome!
— Eu também. O que você trouxe naquele pacote? — quis saber Nelinha.
— Aqueles sonhos que você gosta!
— Oba! E naquele outro?
— Vamos arrumar tudo e você vai ver — disse Olívia sorrindo.
— Pode deixar, D. Olívia. Eu arrumo tudo do jeito que a senhora gosta.
— Está bem. Tenho sentido falta de vocês.
— Você foi embora e não veio me contar história — queixou-se ela. — Você
vai dormir aqui hoje?
— Não posso. Mas vou ficar bastante com vocês.
Os outros dois desceram correndo e abraçaram a tia com alegria. O lanche
foi servido, e eles comeram com apetite.
— A tia não vai dormir aqui hoje — foi dizendo Nelinha. — Eu queria que ela
contasse história de fadas. O papai não sabe nenhuma bonita.
— Ele sabe muitas coisas de carro. Ninguém entende de
carro como ele! — tornou Juninho com orgulho.
— Eu não gosto de falar de carro! Eu gosto de princesa, de fadas.
— Isso é coisa de meninas. Eu gosto das histórias dele — respondeu Juninho.
— Ele conhece tudo sobre os bichos do Zoológico. Lembra da história do
macaco?
Olívia olhou admirada. Nunca vira Juninho defendendo o pai.
Nelinha riu:
— É mesmo. De fadas, ele não entende, mas de girafa, sim. Tia, eu vi uma girafa de verdade! Ela comia tão engraçado. Nós vamos lá de novo! Ele disse que vai me levar.
Olívia olhou para Marina que se conservava calada e perguntou:
— E você, não diz nada?
— Não. Só fui junto porque ele me obrigou. Não gostei de nada.
— Ah! Vocês foram ao Zoológico e onde mais? — perguntou Olívia curiosa.
— No restaurante — disse Juninho. — Eu podia comer tudo que eu quisesse!
Tomei um sorvete deste tamanho, cheio de morango e creme em cima.
— O meu foi de chocolate, — contou Nelinha.
— Eu queria que você visse o bigode dela! Se lambuzou toda! — tornou
Juninho.
— É nada, tia. Foi ele que ficou com bigode! Marina sorriu:
— Você precisava ver, tia, os dois ficaram com bigode. Até parece que
nunca viram sorvete.
Olívia queria saber mais:
— Então vocês passaram um ótimo dia.
— Eu não gostei. Preferia ter ficado em casa — disse Marina.
— Ela é enjoada. Deu pra ficar boba — retrucou Juninho. — Eu me diverti
muito. Só teve uma coisa: o dia passou muito depressa!
— Quer dizer que foi bom ter saído com seu pai!
— Claro que foi — tornou Juninho com entusiasmo. — Ele disse que agora vai sair sempre com a gente. Nós vamos passear muito.
— Eu quero ver a girafa de novo e dar comida pra ela!
— Você é boba. Tem outros lugares mais bonitos para ver. Eu quero ver outro lugar!
— É. Pelo jeito vocês nem sentiram falta da tia. Eles protestaram e Nelinha concluiu:
— Vamos levar você junto.
— Nada disso — respondeu Olívia. — Vocês saem com seu pai e quando eu
puder, virei buscá-los e irão comigo. Não precisamos sair todos juntos.
— Você não gosta dele, não é, tia? — indagou Marina. Olívia ficou
embaraçada.
Embora fosse verdade, não queria indispor Eugênio com os filhos. Não seria bom para eles. Por isso, respondeu:
— Digamos que nós somos muito diferentes. Não combinamos. Eu penso de um jeito, e ele, de outro. Por isso, não gostamos de ficar juntos.
— Você sabe que ele é culpado da morte de mamãe — disse Marina com voz sentida.
Olívia fez um gesto para que ela se calasse.
— É verdade, tia? — disse Juninho. — Ele teve culpa da morte de mamãe?
— Amorte de sua mãe foi um acidente. Ninguém teve culpa —- disse Olívia.
— Ela saiu, foi atravessar a rua e não percebeu o carro, porque estava escuro.
Foi isso que aconteceu. Marina ia retrucar, mas mudou de idéia.
— Eu tenho saudade da mamãe! — disse Nelinha chorosa. — Ela não vai
voltar nunca mais?
— Eu também sinto saudade dela. Mas Deus precisava dela lá no céu e comoela era muito boa, ele a levou. De lá, agora, ela não pode sair, mas continua gostando de nós.
Se ela pudesse, estaria aqui com certeza.
Percebendo que eles haviam ficado tristes, ela reagiu:
— Eu não fui ao Zoológico. O que mais havia lá?
Os olhos de Nelinha brilharam, e ela descreveu alguns animais dos quais
gostara, interrompida muitas vezes pelo Juninho que também queria contar o que vira. Só Marina continuava calada sem participar do entusiasmo deles. Para ela,
gostar de algo que viesse do pai, era trair sua mãe. Ele a fizera chorar, sofrer, fora embora de casa e os trocara por outra mulher. Se Elisa estivesse viva, haveria de ajudá-la a esquecer-se dele para sempre. Mas ela não resistira, estava morta. Nunca mais voltaria. Só lhe restava mostrar que, apesar de tudo, estava do
lado dela. Não seria com passeios, divertimentos e sorvetes que o pai compraria seu perdão. Haveria de fazê-lo sentir sua culpa pelo resto da vida.
Vendo que Marina continuava triste e pensativa, Olívia deu alguns brinquedos que trouxera aos dois menores, dizendo:
— Vão brincar um pouco. Eu e Marina temos um assunto para tratar.
Enquanto os dois se entretinham alegremente, Olívia pegou Marina pela mão dizendo:
— Venha aqui. Sente-se ao meu lado no sofá. Não gosto de vê-la triste.
— Sinto muito, tia. Não posso me conformar com o que nos aconteceu.
Mamãe está fazendo muita falta.
— É verdade. Elisa era toda minha família, além de vocês. Nossos pais
morreram em um acidente quando éramos crianças.
— Assim como nós? Mamãe nunca me contou.
— Para que falar de coisas tristes e sem remédio? Nesses casos, o melhor
mesmo é esquecer.
— Quantos anos você tinha quando seus pais morreram?
— Eu quinze e Elisa dezessete.
— Foi acidente de carro?
— Não. Desastre de trem. Mas para que falar nisso agora?
— Deve ter sido difícil para vocês.
— Foi. Ficamos desorientadas. Apesar de mais nova, eu já trabalhava em umescritório.O trabalho, nesses casos, ajuda bastante. Não dá tempo de pensar nastristezas. Elisa só estudava. Eu queria que ela se formasse, fizesse uma faculdade. Não deu certo.
— Ela não gostava de estudar?
— Gostava. Mas conheceu seu pai, começaram a namorar e ela desistiu deestudar.Casou com dezoito anos!
— Você não queria. Não gostava dele.
— Não é isso. Eu achava que ela era muito criança para casar. Preferia que
ela estudasse, sé formasse e deixasse o casamento para depois.
— Pelo jeito, papai só serviu para atrapalhar a vida dela.
— Não diga isso. Foi bom Elisa haver se casado. Agora tenho vocês e isso me dá muita alegria.
Marina abraçou a tia beijando-a com carinho.
— Sei que não sou como a mamãe, mas estou aqui e gostaria de ir morar
com você.
— Deixaria seus irmãos sozinhos? Marina deu de ombros.
— Eles não estão ficando do lado de papai?
— Vocês são crianças e precisam muito de um pai. Ele está se esforçando.
Não é justo que diga isso.
— Até você, tia? Será que já esqueceu o que ele fez?
— Ele não esperava que acontecesse o que aconteceu. Está arrependido. Por
que não procura esquecer?
Marina trincou os dentes com força, depois disse:
— Nunca esquecerei. O que ele fez, vai pagar.
Olívia impressionou-se com o tom dela. Apesar de pensar da mesma forma, gostaria que Marina não sofresse. Já que precisava viver com o pai, que pelo menos pudessem conviver sem problemas.
— Não é bom para você pensar assim — disse olhando-a fixamente nos
olhos. — A vingança é um sentimento muito ruim. Ele é seu pai, lhe quer bem e está tentando dar a vocês o que nunca deu.
— Faz isso por obrigação. Porque não tem outro remédio. Sua vontade era
ver-se livre de nós e ir morar com aquela mulher.
— Isso já passou. Acho até que nem vai mais à casa dela.
— Porque não pode. Tem que vir para casa, porque a Elvira vai embora às
oito. Se não fosse por isso, não viria.
Olívia admirou-se da perspicácia de Marina.
— Seja como for, ele vem de boa vontade, conta histórias, procura fazer o melhor.
— Quer é nos comprar. Comigo, não. Olívia tentou mudar de assunto:
— Seja como for, a vida continua. Você precisa pensar em você.
— Assim que eu crescer, se você não me quiser, fujo de casa.
— Não sabe o que está falando. Uma menina sozinha na rua, sem dinheiro,
sem ter onde morar. Já pensou que perigo? Nem pense em uma coisa dessas.Depois, quem disse que não quero você? Gostaria muito que fosse morar comigo.
— Posso ir desde agora?
— Precisa crescer um pouco mais. Seus irmãos sentiriam muito sua falta.Você é a mais velha. Deve tomar conta deles, uma vez que sua mãe não está. Se você for embora, quem vai me contar tudo que acontece aqui? Preciso de vocêao lado de seus irmãos.
— Quando seus pais morreram, você tomava conta da mamãe?
— Tomava mesmo sendo mais nova. Era como se eu fosse uma segunda
mãe.
— Por isso, ela gostava tanto de você. É assim que eu devo ser?
— Só enquanto seus irmãos são pequenos e precisam de apoio. Quando crescerem, você poderá ir morar comigo, se aindaquiser.
Marina pendurou-se ao pescoço da tia, beijando-a repetidas vezes.
— Obrigada, tia. Você é a pessoa que eu mais gosto no mundo!
Olívia sorriu:
— Mas enquanto isso, não quero ver você triste. A saudade é forte, mas não tem remédio. Por isso, o melhor que tem a fazer é tentar esquecer. Com o tempo,havemos de conseguir.
Olívia saiu de lá preocupada com Marina. Ela estava realmente magoadacom o pai. Até que ponto esse sentimento poderia prejudicar sua vida?
Arrependia-se de haver falado algumas coisas diante dela. Certas impressões na infância podem afetar o comportamento durante toda a vida. Ela não gostaria que Marina se
infelicitasse pelo que aconteceu. Bastava a tragédia de Elisa.
Elisa! Seus olhos encheram-se de lágrimas. Por que tinha acontecido aquilo?Por quê?
Ela também precisava esquecer. Lembrou-se de Eugênio com raiva. Ele eraculpado de tudo. Se não houvesse tomado aquela atitude, Elisa ainda estaria viva.
Triste destino o de sua família. Nunca pensou que Elisa morresse em um
acidente, como os pais. A vida era cruel e sem finalidade. Por que feria sempiedade pessoas bondosas, mães com filhos pequenos que ainda precisavam decuidados, deixando outras que além de maldosas não fariam falta nenhuma? Não podia compreender.
Em sua revolta, chegava a questionar Deus. Se ele existisse mesmo e fosse
bondoso como dizem, não teria permitido isso. O mundo era cruel, a sociedade,dos espertos e mais fortes em detrimento dos honestos e bondosos.
Elisa era esposa e mãe exemplar, mulher bondosa, honesta, sempre ajudandoos outros.
Não podia ver ninguém sofrendo que procurava fazer alguma coisa.
Olívia enxugou as lágrimas que teimavam em cair. Não. Ela não entendia a tragédia que lhes acontecera. A vida não valia a pena. Era cheia de injustiças etristezas. No entanto, era preciso continuar. Estava desanimada, triste. Ela ficarano mundo e tudo faria para ajudar os sobrinhos a viver melhor.
Abraçada a ela, Elisa chorava sentidamente. Ela também não entendia o que lhe acontecera. Por que tivera que deixar a família daquela forma? A religião
dizia que todos têm um anjo da guarda. Se fosse verdade, teria sido protegida e oacidente, evitado. Ela não acreditava mais em nada. Os anjos, os santos, seexistiam, não protegiamninguém. Ela precisava tomar conta dos seus familiares para que nada demal lhes acontecesse. Amava-os e haveria de defendê-los custasse o que custasse.
Marina não a esquecia. Era-lhe fiel. Sentia-se orgulhosa da atitude da filha. Eugênio precisava de alguém que o fizesse recordar-se dela. As coisas estavamcorrendo muito bem. Ela estava ali e não deixaria que ele arranjasse outramulher que lhe tomasse o lugar. Não queria que seus filhos tivessem umamadrasta. Depois, ela o amava. Não gostaria de vê-lo aos beijos e carinhos com outra.
Ao recordar-se de Eunice, sentiu o peito oprimido e um sentimento de rancora acometeu. Com ela, ele não ficaria! Sorriu ao lembrar-se de que ele nunca mais fora vê-la. No começo, ele ainda tentaria encontrar outra mulher, mas com o tempo,deixaria isso de lado, dedicando-se só à família. Não fora só ela quem pusera osfilhos no mundo. Ele era o pai. Devia fazer o que lhe cabia. Isso era um dever ela não abriria mão.
Pensando nisso, foi ter com ele no escritório. Eugênio parecia alegre e bem-disposto.
Ela acomodou-se em uma poltrona. Vendo a disposição do marido, ela
pensava:
— Que ingrato! Nem se lembra do que me fez. Tão pouco tempo e ele já
esqueceu. Se fosse comigo, se ele tivesse morrido, eu estaria chorando sem parar até agora. Nunca me casaria de novo. Os homens são uns ingratos. Não sabe mamar. Ele dizia que me amava. Era mentira. Se me amasse, não teria se envolvido com aquela mulher.
Um sentimento de raiva a foi dominando. Enquanto ele estava alegre, ela sofria. Não era justo. Fora por causa dele que ela deixara a vida. Aproximou-sedizendo-lhe ao ouvido:
— Você nunca me amou! É um homem sem sentimentos. Como pode estarcontentedepois do que nos aconteceu? Será que ficou feliz por eu ter morrido edeixado livre o caminho para suas aventuras? Era só isso o que queria? Tantos anos de amor e de dedicação não valeram de nada?
Eugênio, de repente, sentiu-se mal. Faltou-lhe o ar e pensou que fosse
desmaiar. A tarde estava quente e ele pensou:
— Acho que minha pressão caiu. É o calor.
Foi ao banheiro, molhou os pulsos e a nuca, respirou fundo. Olhou-se no espelho.
Estava pálido. Seu corpo cobriu-se de suor.
— Acho que estou tendo alguma coisa! — pensou assustado. — Preciso de
um médico.
Chamou a secretária.
— O que foi, dr. Eugênio? Está se sentindo mal?
— Estou. Parece que me falta o ar. Preciso de um médico.
— Tem o dr. Eduardo no sexto andar. Está no consultório agora.
— Veja se ele pode me atender.
— O senhor vai lá?
— Vou.
Ela saiu e voltou em seguida.
— Ele perguntou se dá para subir até lá.
— Dá. Aliviou um pouco. Eu vou.
— Quer que o acompanhe?
— Não é preciso. Melhorei um pouco.
Elisa, a um canto da sala, observava pensando:
— Preciso me conter. Não posso deixá-lo adoecer. As crianças precisam dele. Afinal, elas agora só têm o pai.
Eugênio sentiu-se melhor, mas sentia-se fraco e desanimado. Sua vida de
repente se tornara sem graça e sem alegria. Subiu ao consultório médico e foilogo atendido.
Contou o mal-estar que tivera, e o dr. Eduardo examinou-o cuidadosamente.
Depois disse:
— Sua pressão está normal e não há nada que possa indicar algum problema.
— Senti-me muito mal. Pensei que fosse desmaiar.
— Talvez tenha trabalhado demais. Está preocupado com alguma coisa?
— Não. Eu estava muito bem. Foi de repente.
— Por que não tira umas férias? Depois de tudo quanto passou, talvez sejabom sair por alguns dias.
Eugênio balançou a cabeça negativamente.
— Tenho mais é que trabalhar. O trabalho faz-me bem.
— Vou receitar um relaxante. Procure descansar o mais que puder. Distrair-
se. Não cultive as lembranças desagradáveis. O que passou, acabou.
— Está bem, doutor. Farei o possível.
Eugênio saiu do consultório aliviado. Fora apenas uma indisposição. Ainda
bem. Se algo lhe acontecesse, o que seria de seus filhos?
Elisa o observava e sorriu satisfeita. Ele se preocupava com a família. Era
exatamente o que ela queria.
De volta ao escritório, Eugênio resolveu reagir. O que o médico dissera era verdade.
Nos últimos tempos, ele se entregara às obrigações e perdera o gosto de
divertir-se. Era verdade que a morte de Elisa o ferira fundo, e sua vida se
transformara vertiginosamente. Mas ele era moço, tinha o direito de viver. Não estaria entregando-se Muito mais à depressão? Por mais triste que estivesse, por mais que lamentasse o que acontecera, nada do que fizesse poderia trazer Elisa de
volta. Dr. Eduardo tinha razão. O
passado havia acabado.
Ele cuidaria dos filhos, mas para isso não precisaria deixar DE fazer o que lhedava prazer. Era verdade que teria de ir para casa às oito, mas antes disso poderiaaproveitar o tempo.
Abriu a gaveta da escrivaninha e procurou uma agenda, abriu e, decidido,discou o telefone.
— Alô, Lourdes, como vai?
Elisa, de um salto, pulou para o seu lado, observando. Eugênio continuou:
— Eu não estou muito bem. Depois do que me aconteceu, tenho me sentido
arrasado. Ànoite, quando chego do trabalho, não tenho com quem conversar. Sinto-metão sozinho!
Hoje, estou muito triste e lembrei-me de você, sempre tão alegre, tão
agradável.
— Eu também tenho pensado muito em você. Desde que soube do que lhe
aconteceu.
Faz tanto tempo que você não telefona...
— Não queria incomodar. Depois, tinha medo de não resistir à tentação. Euera um homem casado e não podia lhe oferecer nada. Não tinha o direito deprejudicar sua vida.
Eu renunciei, mas não consegui esquecer. Gostaria de conversar com você. Posso passar aí?
— Hoje?
— Agora, dentro de meia hora.
Depois de ligeira hesitação, ela respondeu:
— Está bem. Eu tinha outro compromisso, mas darei um jeito. Também não consegui esquecer o que houve entre nós.
Eugênio desligou o telefone com euforia. A Lourdes era o que ele precisavanaquele momento. Delicada, culta, bonita e apaixonada por ele. Foi ao banheiro,preparando-se para o encontro.
Elisa olhava tentando dominar o rancor. Ele era falso, fingido. Ele não aprocurara, porque preferia ficar com Eunice. Fizera o papel de vítima. Usara atragédia de sua morte para fazer-se de fraco o conquistar aquela mulher. Comcerteza, essa Lourdes teria sido mais uma com a qual ele a traíra. Se ele pensava que ela iria tolerar essa leviandade, estava enganado. Ela não iria permitir que
ele continuasse naquela vida depravada que sempre vivera. Observando a
disposição dele, perfumando-se para o encontro, sentiu aumentar seu rancor.
Porém, decidiu esperar. Primeiro, iria conhecer essa mulher e decidir qual amelhor forma de afastá-la do seu caminho.
Eugênio saiu bem-disposto e encontrou com o dr. Eduardo
no corredor:
— Melhorou? — indagou o médico.
— Muito. Vou sair mais cedo e espairecer. Acho que tinha razão. Eu estavaprecisando mesmo era me divertir.
O médico bateu-lhe levemente no ombro sorrindo e dizendo:
— Isso mesmo. É o melhor que tem a fazer.
Eugênio saiu e ao entrar no carro, olhou-se de relance no espelho do
retrovisor pensando satisfeito:
— Apesar de tudo, ainda estou em forma!
Elisa, sentada a seu lado, olhava com ar de desdém. Chegando em um
edifício elegante, ele parou. Ligou o rádio do carro e esperou. Dez minutosdepois, Eugênio desceu e dirigiu-se a uma moça que saía do prédio. Elisa
aproximou-se. Lourdes era moça elegante, bonita, e parecia muito fina. Vestia-se muito bem. Morena, cabelos ondulados, olhos castanhos, corpo bem feito.
Eugênio apertou a mão dela com prazer.
— Que bom revê-la!
— Como vai?
— Vivendo. Você está bonita, sempre elegante!
Foram conversando e acomodaram-se no carro. Elisa, contrafeita, tomou
assento no banco de trás. Aquela mulher era muito diferente de Eunice Maisdiscreta, não teria mais do que uns vinte e cinco anos.
Os dois conversavam animadamente. Eugênio dizia:
— Vim esperá-la tão cedo, porque não posso me demorar. A empregada só
fica em casa até às oito. Se eu não estiver lá essa hora, ela vai embora e deixa ascrianças sozinhas.
— Compreendo.
— Isso será por pouco tempo. Pretendo arranjar uma empregada que durmano emprego. Não parece fácil. Elas são preconceituosas. Não querem dormir em casa de um viúvo. Mas o que eu queria mesmo era ver você. Vamos jantar emalgum lugar?
— É um pouco cedo para jantar. Talvez um sorvete, ou refresco.
— Como queira. Hoje eu me sinto particularmente triste. Passei mal no
escritório e o médico aconselhou-me sair um pouco, espairecer. Lembrei-me devocê, tão alegre e calma! Conversar com você sempre me fez muito bem. Tenhosentido sua falta.
Lourdes olhou-o e sorriu. Tinha um sorriso lindo e covinhas nas faces.
— Quando soube do que lhe aconteceu, também fiquei
triste. Pelo que sei, sua esposa era muito dedicada.
— É verdade. As crianças estão inconsoláveis.
—- Do que foi que ela morreu?
— Foi atropelada. Saiu à noite, talvez para fazer alguma compra, e ao dobrar
uma esquina não viu o carro. Havia deixado as crianças fechadas em casa, o que
prova que ela pretendia voltar logo.
— Que tristeza!
Elisa observava tudo atentamente. Por que ele não conta o que fez? — pensou. — Os homens são falsos e fingidos.
Eugênio falou de seus problemas, tendo que cuidar das crianças, sem nunca haver feito isso antes.
— Minha cunhada até gostaria de ficar com as crianças, mas ela precisa
trabalhar. A responsabilidade é minha. Eu sou o pai. Não posso jogar isso na mão dos outros.
— Está muito certo agindo assim. Elas já perderam a mãe, precisam muito
do pai.
— Estou fazendo o possível. Mas hoje sinto-me triste. Desculpe haver
envolvido você em meus problemas. Afinal, não pretendo entristecê-la.
Mudemos de assunto.
Elisa continuava atenta. Enquanto estivessem apenas conversando, ela não
faria nada.
Porém, se eles começassem aos beijos, tomaria providências.
— Aonde vamos? Na verdade, o que eu queria mesmo era estar em um lugar
sossegado para conversar — disse Eugênio.
— Vamos dar uma volta e parar em uma rua calma.
— Espero não estar aborrecendo você.
— Absolutamente. Gosto de conversar.
Eugênio escolheu uma rua arborizada em um bairro residencial não muito
distante e parou o carro. Tomou a mão dela, beijando-a com carinho.
— É bom estar com você! Não sei como pude ficar tanto tempo sem vê-la.
— Naquele tempo, nossos caminhos eram opostos. Você era comprometido.Tenho meus princípios, você sabe.
— Custei a entender. Saímos tantas vezes e você nunca cedeu. Contando,
ninguém acreditaria que nosso amor tenha sido tão ingênuo. Seus beijos aindaestão me queimando os lábios.
Eugênio tomou-a nos braços beijando-a com paixão. Ela entregava-se à
emoção e ele, sentindo voltar o antigo desejo, apertava-a mais, dando vazão aoque sentia.
Elisa indignou-se. Atirou-se sobre ele dizendo enfurecida:
— Traidor, descarado! Fingido, mentiroso! Não vou permitir essa falta de vergonha! Você vai pagar o que me fez!
De repente, Eugênio sentiu a cabeça rodar e empalideceu.
— O que foi? — indagou Lourdes. — Sente-se mal? Ele levou a mão ao peito e respirou fundo:
— Não sei o que é, de repente, fiquei sem ar. Tive a impressão que ia
desmaiar.
— E agora, o que está sentindo?
— Um peso na cabeça e enjôo. Não comi nada! Lourdes fitou-o séria:
— Você tem sentido sempre isso?
— Algumas vezes.
— Sempre de repente?
— É. Não é possível que não seja nada. O médico disse que está tudo bem.
Eu nunca havia sentido nada. Sempre tive muita saúde. Estou preocupado. O que será das crianças se me acontecer alguma coisa?
— Se o médico disse que está tudo bem, deve acreditar.
— Mas então por quê? Qual a causa desse mal-estar?
— Nem todos os sintomas que sentimos, são doenças.
— Como assim?
— Podemos sentir energias que estão ao redor, registrar emoções de outras
pessoas e acreditar que sejam nossas. Nunca ouviu falar nisso?
— Não. Do que está falando?
— Acredito que nós sejamos mais do que o que podemos ver com nossos
olhos. Já pensou quantas coisas existem que para vermos precisaremos de um
microscópio?
— Isso eu sei. Mas o que tem isso a ver com meu mal-estar?
— Você pode estar captando energias de outras pessoas.
— Não acredito nisso! Onde aprendeu essas idéias?
— Há pesquisas modernas sobre o assunto. Se você sente-se mal de repente e não está doente, então é porque captou energias doentias de alguém.
— Não conheço ninguém doente e não estive visitando nenhum hospital.
— Não importa. Para o pensamento não existe distância. Quando alguém seaproxima de você, há uma troca de energias. Esse alguém sente as suas e vice-versa. É isso que faz simpatizar ou antipatizar com as pessoas à primeira vista.
— Mas não estive com ninguém. Estamos sós aqui, e você,pelo que sei, está muito saudável.
— Não há ninguém que possamos ver. Quem garante que não haja aqui
outros seres, de outras dimensões da vida?
Eugênio meneou a cabeça negativamente:
— Espere aí. Quer que eu acredite que há pessoas invisíveis? Sempre pensei que você fosse equilibrada. Que idéia absurda!
— Por quê? Se na natureza nada se perde, tudo se transforma, para onde vão as pessoas que morrem no mundo?
— Sei lá!
— Vão para outros mundos. Você imagina que neste imenso universo só
existe o nosso pequeno planeta?
— Isso são crendices, exploração da ignorância popular. Uma pessoa culta
não deveria acreditar nisso.
— Ao contrário. Há cientistas importantes que estudaram esse assunto e comprovaram a existência de outras dimensões, de lugares para onde vão as pessoas que morrem.
— Não creio. Quem morre não volta nunca mais.
— Engano seu. Amorte não é o fim. O espírito é eterno.
— Não posso crer que uma moça instruída e de classe como você acredite nisso.
— No seu caso, faria bem em começar a acreditar.
— Por quê?
— Porque eu sinto que você está sendo envolvido por um espírito
desencarnado.
Eugênio arrepiou-se:
— Que horror! Não diga uma coisa dessas!
— É mais comum do que pensa. Estamos rodeados por espíritos que
inconformados com a morte, muito apegados à vida na Terra ou à família,
teimam em circular por aqui, ao invés de seguirem para seu novo destino.
— Não é possível! Se isso fosse verdade, o universo seria um caos. Se existeDeus e se ele governa tudo, nunca iria permitir isso. Seria injusto para com osque estão aqui.
— Por quê?
— Porque não estamos em condições de nos defender. Como fazer se não ospodemos ver? Eles teriam sobre nós uma vantagem desleal.
— Apesar de estarem aqui, eles vibram em uma freqüência diferente danossa. Para que consigam se ligar com alguém do nosso mundo ou vice-versa, épreciso haver sintonia.
É o mesmo princípio das ondas hertzianas, as estações de rádio estão no ar,porém você só as ouvirá se sintonizá-las.
— Que loucura! Quem quererá sintonizar com uma pessoa que já morreu?
— Muitas pessoas saudosas gostariam de poder fazer isso. Mas não é a
vontade que determina e sim como a pessoa pensa ou age. Por exemplo: umapessoa deprimida e negativa emite sinais energéticos equivalentes e podesintonizar com pessoas, encarnadas ou não, que pensem da mesma forma.
— Pessoas vivas?
— Pessoas como nós, porque vivos, os espíritos desencarnados também são.
Eugênio meneou a cabeça admirado:
— Você diz coisas difíceis de acreditar.
— É porque você nunca pensou no assunto. Quando o fizer, se surpreenderáao descobrir o número de pessoas que já sabem disso. Como está se sentindoagora?
— Melhor. Sinto-me aliviado.
Elisa, assustada com o que ouvira, temerosa de ser descoberta, afastara-seobservando-os a distância.
— Você ia se dar bem com um amigo meu. Ele também acredita em alma
do outro mundo. Aconselhou-me a procurar um Centro Espírita.
— Pelo jeito, você não foi.
— Claro que não. Você acha que eu deveria ter ido?
— Talvez. Não sei. Esse é um assunto muito pessoal. Só você pode saber.
— Mas você acredita nessas coisas?
— Acredito. Mas essa é minha maneira de ver.
— Sou um descrente. Não vai argumentar, tentar me convencer?
— Não tenho essa pretensão. A vida tem me ensinado algumas coisas.
Quando você estiver pronto, ela mostrará para você.
Eugênio sorriu malicioso:
— E se eu estiver justamente procurando alguém que me prove que isso éverdade?
Ela sorriu por sua vez:
— Às vezes penso que a descrença seja apenas um desafio para que as
provas apareçam.Se estiver sendo sincero, elas irão ao seu encontro espontaneamente.
Elisa os observava triste. Não gostava desses assuntos. Essa mulher parecia-lhe mais inteligente e perigosa do que as outras. O Geninho estava sendoenvolvido. Precisava fazer alguma coisa para afastá-la. Ela não podia percebersua presença. Tomaria cuidado dali por diante. Vendo-os abraçados, conteve-se.
Quando voltavam para casa, ela, sentada no banco traseiro do carro, esforçou-separa controlar-se, vendo-os trocando beijos de quando em quando.
— Se ele for dormir com ela, não vou me conter! — pensou ela vendo-o
acompanhá-la até a porta de casa. Mas, para seu alívio, Eugênio despediu-se,beijando-a
demoradamente nos lábios.
Eugênio entrou no carro, acenou um breve adeus quando ela entrou em casa,e deu partida no carro. Tinha que apressar-se porquanto faltavam apenas algunsminutos para às oito. Sentia-se feliz e aliviado. A Lourdes era encantadora. Sua
presença tivera o dom de acalmá-lo. Além de tudo, era bonita e o atraía muito.
Antes ele era comprometido e não quisera forçar nada, agora, porém, se fosse jeitoso, ela haveria de ceder. Imaginava como seria seu relacionamento com ela,
visualizando cenas de intimidade, criando fantasias.
Elisa, percebendo-lhe os pensamentos, encolhia-se colérica. Nunca puderasupor que ele fosse tão venal! Como ela fora ingênua! Tanto pudor, tanto recato,tanto medo de fazer algo errado, de parecer leviana! Como estava enganada!
Eugênio gostava de mulher ardente, e ela, tolhida, achava que era feio
demonstrar seu temperamento apaixonado.
Por que se limitara tanto, por quê? Infelizmente, agora era muito tarde parase arrepender. Só lhe restava o remorso, a tristeza e a infelicidade.

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