Eugênio levantou-se inquieto, apoiando-se nas muletas e andando de um ladoa outro do quarto. Precisava fazer alguma coisa. Estava cansado da inércia. Tanto trabalho no escritório e ele ali sem poder fazer nada! Sua secretária trazia-lhe
papéis para despachar, e ele tentava fazer alguma coisa para entreter-se. Faziaum mês que se acidentara. A dor passara, mas o gesso incomodava, a pernacoçava. Teria de agüentar mais quinze dias. O tempo não passava!
Amaro o fora visitar, e Eugênio contou-lhe como tudo acontecera. E
finalizou:
— Foi acontecer logo com a Lourdes. Eu estou louco por ela. Só sonhava como momento de tê-la nos braços.
— Até que enfim.
— Ela fez-me esquecer aqueles probleminhas que estava tendo com asmulheres. Não via a hora de estar com ela! Mas quando não é uma coisa, éoutra. Eu tinha que escorregar justamente naquele momento em que iaconseguir?
— É verdade. Isso me faz supor algo mais...
— Lá vem você com suas idéias.
— Parece que alguém deseja atrapalhar seu relacionamento com asmulheres.
— Como assim?
— Antes, você perdia o embalo na hora de dormir com alguém. Quando
conseguiu gostar de uma, desejar, ficar no ponto, eis que quebra a perna. Seutombo é muito suspeito.
— Suspeito?
— Claro. Como foi que caiu? Havia alguma casca de banana, tropeçou emalguma coisa no caminho, afinal, como aconteceu?
— Foi a coisa mais besta que podia acontecer. Não havia nada. Simplesmenteperdi o equilíbrio e caí.
—Sem mais aquela?
— Sem mais aquela. É isso que me deixa mais danado.
— Alguém lhe deu uma rasteira, isso sim.
— Não havia ninguém lá.
— Estou me referindo a alguém do outro mundo. Parece um tombo
arranjado.
— Não acredito nisso. Imagine! Você e esses espíritos.
— Faz mal em não pensar nisso. Já lhe disse uma vez. Você precisa procurar
um Centro e ver o que está acontecendo. Por que sua vida deu uma guinadadessas? Você já não é o mesmo.
— Concordo. Depois de tudo que me aconteceu, como queria que eu ficasse?
— Está certo. Você fraquejou, quis deixar a família, aconteceu o acidentecom Elisa.Foi triste, mas você conseguiu atravessar essa tempestade e tomou conta da
situação com vontade. Não se deixou abater, reagiu, quer retomar a vida, nãoperdeu o entusiasmo. Por isso, não se justifica essa onda de problemas que vemenfrentando.
— Também não entendo. Sempre tive sorte em tudo. Nunca peguei uma
maré tãopesada como agora.
— É isso. Não tem explicação plausível. Por isso, deve ir ao Centro, fazeruma consulta.
Eles vão poder dizer se está sendo assediado por algum espírito desencarnado,interessado em prejudicá-lo.
— Não acredito nisso. Não tenho inimigos. Nunca fiz mal a ninguém.
— Eles podem acreditar que sim e querer vingar-se. Eugênio sacudiu a
cabeça negativamente:
— Não pode ser. Não conheço ninguém que queira vingar-se de mim. Essaidéia é muito louca.
Amaro olhou-o sério dizendo com voz firme:
— Não seja tão resistente. Se, como suspeito, você estiver sofrendo a
perseguição de algum espírito interessado em prejudicá-lo, as coisas podem vir apiorar.
— Vire essa boca pra lá! Piorar ainda mais? Não vejo a hora de ficar bom,
retomar o trabalho, preciso ganhar dinheiro. Minha família precisa de mim. Ascrianças estão na escola, tenho despesas. Sabe que este mês estou só com o fixo eminhas economias estão se dissolvendo. Se eu não trabalhar logo, corro o risco de
ficar sem nada. Nunca tive época tão ruim.
— Mais uma razão para fazer o que estou dizendo. O que tem a perder? Levovocê lá, conversa, se esclarece, recebe ajudaespiritual e pronto. Não vai pagar nenhum centavo. É tudo grátis.
— Como pode ser tudo grátis? Como eles fazem para sobreviver?
— É uma sociedade sem fins lucrativos, o trabalho é voluntário. Fazempromoções beneficentes, você sabe como é, chás, almoços, bazar. Eles aindamantém serviço de Assistência Social. Atendem famílias carentes. São gente boae muito respeitada.
— Para fazer um trabalho desses devem ser mesmo. Mas eu não consigoacreditar em espíritos. Sinto muito.
— Está bem. Não vou insistir. Quando mudar de idéia, avise-me.
Amaro acostumou-se a ir, quase todas as noites, fazer companhia a Eugênio.Levava os jornais, falavam de futebol, de política, do trabalho. As crianças acostumaram-se com ele, que sempre aparecia com balas, revistinhas,chocolates, doces. Nelinha sentava-se no colo do "tio Amaro", e os outros dois
postavam-se em volta e ele contava algumas histórias da vida de Jesus, suainfância, seus milagres, romanceando a tal ponto que eles se emocionavam,tocados pela beleza da narrativa.Eugênio observava-os admirado, muitas vezes sentindo-se também fascinadocom as histórias de Amaro. Uma noite, depois das crianças haverem serecolhido, Eugênio comentou admirado:
— Não sabia que você tinha esse dom. É um narrador incrível. Até eu me
emociono com suas histórias. Onde aprendeu tudo isso?
— Nosso contato era mais profissional. Mas eu adoro ler bons livros,principalmente biografias de grandes homens. Sempre tive curiosidade dedescobrir como eles chegaram a ser o que eram. Tudo que eu conto, aprendicom eles. Sou só um narrador, mas a beleza vem deles. Eles é que descobriram aciência de viver com sabedoria.
— As crianças adoram. Quando você não está, querem que eu conte as
mesmashistórias, mas eu não sei. Você tem sido muito amigo. Pode ter certeza de quenunca esquecerei esses momentos.
— Adoro crianças. Seus filhos são maravilhosos. Eu é que deveria agradecerpor dividir comigo esses momentos. Eles enchem minha vida.
— Você mora sozinho e ainda não se casou. Teve alguma desilusão amorosa?
Amaro sorriu:
— Nada disso. Ainda não encontrei a mulher dos meus sonhos. Acho que
nuncaencontrarei.
— Não creio. É ainda moço. Não completou 40 anos.
— Falta pouco.
— De fato, você vive muito só.
— Quando a saudade bate, vou ver a família no interior. Fico lá um pouco,
mas volto logo. Adoro a cidade, as luzes e a noite.
— Você não é boêmio.
— Não. Mas gosto de ver as luzes, ouvir música até tarde, dançar de vez emquando.
— E aquela namorada, a Célia?
— Acabou. Não ia dar certo mesmo.
— Precisa ter alguém. É triste ficar só. Sabe que a Lourdes tem me visitado
algumas vezes. Mas, quando Olívia está, ela não vem porque sabe que ela nãogosta.
— E as crianças, como a recebem?
— Os dois menores, muito bem. Mas Marina se fecha no quarto, não aceita.
—Eugênio suspirou triste e prosseguiu: — essa menina não me perdoa. Quandofalei com Elisa que ia embora, não sabia que ela estava escondida escutando. Àsvezes parece que tem ódio de mim.
— Tenha paciência com ela. O que passou foi muito difícil. Ela associou amorte da mãe com sua atitude.
— Ela tem razão de certa forma. Se eu não houvesse tomado aquela infeliz
decisão, nada disso teria acontecido. Não tive intenção, mas contribuí paraprovocar a situação.Estou consciente disso.
— Não se martirize. Ela é ainda criança. Ignore sua rebeldia e continue sendobom para ela. Um dia, compreenderá melhor o que aconteceu.
— Espero que esteja certo. Esta situação me incomoda e angustia.
Era quase meio-dia do domingo quando Olívia chegou. Tencionava levar ascrianças para almoçar.
— Já encomendei o almoço para todos — disse Eugênio.
— As crianças precisam sair um pouco. Achei que você não se importaria.
Eugênio deu de ombros.
— Está bem. Pode levá-las. A comida ficará para o jantar.
A alegria foi geral. Entusiasmados, eles aprontaram-se e saíram com a tia.Eugênio, vendo-os se afastarem, sentiu-se muito só. Já havia lido o jornal enão havia nada que pudesse fazer. Quando a comida chegou, colocou-a sobre o
fogão. Não gostava de comer sozinho.Nos últimos tempos, habituara-se com as crianças e agora parecia-lhe que a
casa estava silenciosa demais.
— Estou ficando piegas — pensou irritado. Se ao menos pudesse sair, daruma volta!
Ainda não podia dirigir. Com Olívia não podia contar. Ela nunca o convidariapara sair.
E mesmo que o fizesse, ele ficaria constrangido. Eles nunca se entenderiam.Se ao menos Lourdes guiasse, poderiam passear um pouco.
Quando Amaro apareceu, ele não se conteve:
— Ainda bem que alguém se lembrou de mim! Amaro sorriu:
— O que é isso? Crise de solidão?
— Não caçoe. Não agüento mais ficar preso em casa. Ainda bem que você
apareceu.
— Pensei que as crianças estivessem em casa. Trouxe algo para eles.
— Obrigado. Eles saíram com Olívia.
— Já almoçou?
— Ainda não.
— Que tal irmos comer em algum lugar?
— Tenho comida na cozinha.
— Guarde para depois. Vamos sair, você precisa distrair-se.
Eugênio concordou satisfeito. Arrumou-se um pouco e, ajudado por Amaro,acomodou-se no carro. Foram a um restaurante. Estava lotado, mas Eugêniosentiu-se bem vendo o movimento. Quando se acomodaram, Amaro perguntou:
— Não está cansado?
— Ao contrário. Estou me sentindo muito bem. Não agüento mais ficar emcasa.
— Falta pouco. Mais alguns dias e tudo estará bem. Conversaram
animadamente.
Depois do almoço, Eugênio quis ir até a casa da Lourdes, mas lá não havia
ninguém.Passava das cinco quando voltaram para casa. Mal se haviam acomodadoquando Olívia voltou com as crianças que correram abraçar o Amaro.
— Tomei sorvete de chocolate! — disse Nelinha com entusiasmo.
— E eu comi morangos com creme! — ajuntou Juninho. — A Marina comeu
torta de coco.
— Pelo jeito, a sobremesa foi a melhor parte — comentou Amaro sorrindo.
— Minha cunhada Olívia — disse Eugênio dirigindo-se ao amigo.
— Muito prazer. Tenho ouvido falar muito de você — disseele amável.
Olívia olhou desconfiada para Eugênio. Sabia que o cunhado certamente nãoa teria elogiado.
— Espero que não tenham falado mal — respondeu ela.
— Claro que não. As crianças a adoram.
— Eu também gosto delas — e dirigindo-se às crianças: — vamos lavar asmãos.
Olívia acompanhou-as ao lavabo, depois foi à cozinha e voltou logo dizendo aEugênio:
— A comida está sobre o fogão. Você não almoçou?
— Fomos comer fora — esclareceu ele com satisfação. Ela não respondeu e
voltou à cozinha.
Nelinha foi chamá-la:
— Tia, vamos lá na sala. O tio Amaro vai contar história!
— Ele pode começar que depois eu vou.
— Nada disso. Se você não vier, vamos esperar. Eu quero que você escute
também.
— Está bem. Vamos lá.
Foram para sala e Nelinha sentou no colo da tia, enquanto o Juninho se
acomodava nos joelhos do Amaro. Enquanto ele contava uma história e todosouviam atentos, Eugênio admirava-se de Olívia haver concordado em sentar-se ali com eles. Pelo menos, ela não se mostrara mal-educada com Amaro.
Quando ele acabou, as crianças bateram palmas e pediram outra. Ele não sefez de rogado. Olívia levantou-se, foi à cozinha, fez café e os serviu. Eugênioestava admirado.
O que dera nela? Depois da terceira história, Olívia decidiu:
— Já é noite. Querem comer alguma coisa?
Foi à cozinha e como ninguém quisesse jantar, serviu algumas guloseimascom refrigerantes. Depois disse:
— Está na hora de dormir. Eu levo vocês para cama, depois vou embora.
Eles relutaram, mas acabaram concordando. Despediram-se e Olívia subiucom eles para o quarto. Voltou, meia hora depois, despediu-se de Amaroeducadamente e disse a Eugênio:
— Coloquei a comida na geladeira.
— Obrigado — respondeu ele.
Ela saiu e quando a porta se fechou, Eugênio comentou:
— Nem me disse boa noite. É mal-educada mesmo. Estou acostumado.
— Não me pareceu. Foi discreta, mas não mal-educada. Preparou café para
nós.
— Fiquei admirado. Ela não costuma fazer isso.
— Talvez não seja tão ruim como você fala.
— Vai ver que ela fez isso só para me contrariar. Quer mostrar-se gentil, paraque você pense que eu sou implicante com ela. Viu como ela é fria?
Amaro riu gostosamente.
— Eu não vi nada. É uma mulher muito bonita, se quer saber. Objetiva, sabeo que quer da vida. Não tem nada de fútil nem de fria.
Eugênio olhou-o admirado:
— Você não a conhece bem. Ela é teimosa, só faz o que quer e não me
tolera.
— Vocês podem não se entender, mas eu não me engano. É corajosa,
decidida e, em vez de teimosa, eu diria que não se deixa influenciar pelos outros.Repito, ela sabe o que quer.
— Está sendo muito generoso. Quando a conhecer melhor, verá que tenho
razão. Ela é intolerável.
— Tem ajudado você, apesar de tudo.
— Isso é. Reconheço que teria tido mais dificuldade se ela não houvesse mesocorrido.Não sou ingrato. Mas ela não perde ocasião de me lembrar os erros passados.Culpa-me pela morte de Elisa e nunca me perdoará.
— Ela amava muito a irmã.
— É verdade. Quando os pais morreram no desastre de trem, apesar de maisnova, cuidou de Elisa como se fosse mãe. Mas isso ainda é pior. Nunca admite que Elisa tenha mudado com o casamento e que isso tenha contribuído para que
eu também mudasse.Que diabo, se isso aconteceu, a culpa não foi toda minha. Depois, o que fazer
quando a atração acaba? Como fingir interesse se a magia acabou?
— Você amava Elisa.
— Amava. Quando nos casamos, amava muito. Mas depois tudo foi mudandoe, um dia, me dei conta que quando a tocava, era como se tocasse uma irmã,uma amiga. Ela era perfeita, tão boa, tão certa em tudo, eu não queria seringrato. Mas quanto mais eu forçava para me sentir atraído por ela, mais
percebia que estava indiferente. Nos últimos tempos, sentia até certa rejeiçãoquando ela se aproximava e me tocava.
— Isso é doloroso.
— Claro. Eu queria ser diferente. Muitas vezes pensei em todas as suas
qualidades, tentando voltar a ser como antes. Mas não consegui. Quandoapareceu Eunice, mergulhei completamente napaixão.
— Como toda paixão, passou também.
— É verdade. A paixão é avassaladora, mas passa. Hoje mal me recordo
dela. E pensar que por causa disso, destruí nossa vida.
— Não foi por causa disso. Quando foi para os braços de Eunice, sua vida
conjugal já estava acabada. A chama da atração precisa ser alimentada. O amoré uma troca onde há um encontro sempre prazeroso de duas pessoas. Precisa daparticipação de ambos. Sem isso, ele morre.
— Como sabe? Você nunca se casou!
— Tenho observado. No casamento, as pessoas assumem cada um o seu
papel e passam a viver em função dele. Querem fazer tudo certo e agem deacordo com as regras da sociedade convencional. Deixam de avaliar
sentimentos, fazer o que sentem,
transformam-se em robôs, sem vontade própria. Aí começa o desencontrodas almas.Elas se distanciam, vivem na ilusão.
— Deus sabe como eu gostaria que houvesse sido diferente.
— Você é um homem ardente, romântico, prefere uma mulher mais amantedo que uma esposa convencional. Quando Elisa entrou nesse papel, perdeu oencanto e você desinteressou-se.
— Eu a amava tanto! No princípio éramos tão felizes! As mulheres, quandocasam, mudam completamente. Querem ser uma esposa e uma mãemaravilhosa. E nós, os maridos, acabamos em segundo plano. Quando nos
apaixonamos por outra, nos acusam de ingratidão, alegando que se sacrificarampara nos fazer felizes. Quer saber o que eu penso? Na verdade, elas não sepreocupavam com nossa felicidade, mas com a vaidade de ser uma esposa perfeita. Foi o que nos aconteceu, e eu acabei como único culpado dessatragédia, odiado e criticado por minha cunhada e até por minha própria filha.
Gostaria que elas entendessem que eu sou humano. Desejava um pouco maisde amor, de atenção, de romance. Que diabo, será tão errado sentir isso?
Amaro meneou a cabeça pensativo:
— Um relacionamento é sempre uma lição de vida. Apesar de tudo, você
tem aprendido muito com essa experiência. Concordo que Elisa tenha esquecidose alimentar a chama do amor entre vocês. Estava segura. As mulheresapegam-se ao casamento. Acreditam que ele, por si só, seja uma garantia deafeto para o resto de suas vidas. Por isso, desdobram-se tanto ao papel de esposae mãe e se esquecem de ser mulher. No entanto, você fez o oposto. Não sededicou à convivência familiar, nao participou como pai da vida de seusfilhos. Ficou no seu canto, esperando que Elisa fizesse tudo.
— Ela era tão eficiente! Nunca deixou que eu fizesse nada.
— Confesse que foi cômodo para você. Casou, encontrou quem cuidasse de
você, o mimasse, evitasse qualquer preocupação doméstica, e não precisou darnada em troca.
— Sempre cuidei da minha família. Nunca faltou nada a eles.
— Você criticou Elisa, mas também entrou no papel típico de marido. Dava odinheiro e pronto. Tudo feito. Não lhe ocorreu que eles precisavam de mais?
— Agora você também está me criticando?
— Longe de mim essa idéia! Você começou o assunto, e estou colocandoapenas os fatos para que os veja mais claramente.
— Você nunca se casou, não sabe como são as coisas.
— Somos companheiros de trabalho há muito tempo. Quando
conversávamos, nunca o ouvi falar dos filhos com entusiasmo, contar pequenascoisas que eles faziam, como a maioria dos pais que são meus amigos. Você nemparecia casado! Nunca o ouvi falar de qualquer problema doméstico. Ao
contrário. Estava sempre bem-disposto, freqüentava lugares da moda.
— Naquele tempo, não precisava me preocupar com nada.
— Graças à Elisa.
— É. Graças à Elisa. Pensa que não reconheço isso? Acha que não me
arrependi?
— Agora, pelo menos, conhece melhor seus filhos. Eles são maravilhosos.
Não acha que foi um bem?
— É verdade. Eu agora não poderia mais ficar longe deles. Nem sei como
pude ser tão cego. Eles são tão inocentes, tão crédulos, tão alegres! Precisoprotegê-los. Não desejo que sofram. Estavam seguros com Elisa. Agora, só têm
a mim. Eu errei, é verdade, mas me arrependi e hoje penso diferente. Pena queMarina não queira entender. Queria muito que ela me perdoasse.
— Ela está ressentida com o que aconteceu. Sabe o que eu penso? Ela gosta de você tanto ou mais do que os outros dois. É exatamente por isso que está tãomagoada. Já reparou como ela não perde oportunidade para dizer que você ostrocou por outra?
— Não!... Será? Tomou as dores da mãe.
— No fundo, está reclamando da própria dor. Ela sofre, porque acredita quevocê só está aqui com eles porque não tem opção.
— É isso que ela diz. Mas, não é verdade. No princípio,pode ter sido, mas agora, não. Lamento haver procedido assim antes. Tenho
procurado demonstrar meu afeto de todas as formas.
— É o que pode fazer. Continue e seja paciente. Um dia, ela compreenderá.
— Faço votos que esteja certo.
— Agora preciso ir. Amanhã acordo cedo.
— Preferia acordar cedo e ir trabalhar do que ficar aqui, sem poder fazer
nada.
— Não reclame. Você precisava mesmo de umas férias. Logo estará bom e
retomará sua rotina.— Obrigado. Sou-lhe grato por tudo quanto tem feito por mim.
— Não agradeça. Estou alimentando meus instintos pater-nais. Adoro vir
aqui.
— Não sei por que não se casou. Tem tudo para ser um feliz papai!
Amaro sorriu e seus olhos guardavam indefinível expressão quando
respondeu:
— Para isso, é preciso que duas pessoas queiram. Só eu, não adianta.
Conversaram um pouco mais, e Amaro se foi.
Deitado em seu quarto, enquanto não podia conciliar o sono, Eugênio pensavaem como sua vida havia se transformado. Se Elisa ainda estivesse viva, ele comcerteza estaria ao lado de Eunice. Mas por quanto tempo? Agora, recordava os
acontecimentos sob uma nova visão.
Para ele, o casamento, depois de certo tempo, representara apenas um
amontoado de contas que precisava pagar todos os meses. Nunca entrara de fatona relação familiar.
Desde o início, Elisa parecia-lhe ingênua e imatura. Nunca tomava iniciativa.
Era sempre ele quem tinha que decidir. Nunca argumentava nem colocava suasidéias.
Acatava suas determinações sem discutir. Ele a considerava de pouca
inteligência, com capacidade apenas para as rudes tarefas domésticas. Teria sidopor isso que deixara de amá-la?
Talvez a ignorância de Elisa fosse fruto da educação que as meninas de
família recebiam. Embora ela houvesse perdido os pais muito cedo, conservara aingenuidade.
Quando se casaram, fora ele que precisara ensinar-lhe os detalhes da higiene e das relações sexuais. Na ocasião, ele ficara vaidoso de possuir uma mulher tãoinocente.
Mas agora questionava isso. Ele sempre preferira as mulheres ousadas. Nãoteria sido um erro casar-se com Elisa, tão diferente dele? Procurar encontrar a
amante ideal em uma menina sem
iniciativa?
Elisa, deitada a seu lado, o observava. Ouvindo-lhe os pensamentos, pensava:era assim que ele a via? Ela que se anulara, que nunca fizera o que gostaria, queacatara suas determinações como uma lei, era vista como ignorante e burra?
Não lhe haviam ensinado que o marido era o chefe da casa? Por que aceitaraisso sem nunca questionar?
Cerrou os punhos com raiva. Se fosse agora, faria tudo diferente. Nunca maisseria aquela mulher cordata e passiva. As coisas haviam mudado. Era ele quemestava sendo obrigado a fazer o que ela queria. Um dia haveria de descobrir que
subestimara sua inteligência. Ela era muito capaz e se omitira por amor! Queloucura! Como não percebera em tempo o abismo que estava cavando com essaatitude?
Embalado pelas lembranças, Eugênio continuava tentando entender as causasdos seus problemas. Lembrou-se da paixão que sentira por Jacira, antes deconhecer Elisa. Era uma mulher ardente e bonita que o encantava com seutemperamento alegre e vivo.
Pensara seriamente em casar-se com ela. Mas ela tivera outras experiências,não era virgem. O que diriam sua família e os amigos? Não, ele não podia casar-se com ela.
Manteve o relacionamento mesmo após o noivado com Elisa e pretendia
continuar depois do casamento, o que não aconteceu, porque ela o deixou.
Desapareceu e ele nunca mais a encontrou. Ficou desesperado, mas teve queconformar-se.
Claro que amava Elisa, mas aquele fogo, aquela sensação inebriante, era
com Jacira.
Para ele, essa situação era natural. Amaioria dos seus amigos tinha uma
mulher para se relacionar e a namorada, com quem só poderiam ter relaçõesapós o casamento. Onde estaria Jacira? Se houvesse casado com ela, teria dado
certo? Se a encontrasse agora, ainda sentiria a mesma atração? Se a sentissenovamente, teria coragem para assumir e casar-se com ela?
Elisa, pálida, sentia seu ódio crescer. Era cruel a forma como Eugênio
pensava. Destruía uma a uma suas mais caras lembranças e ilusões. Ele semprea traíra! Casara-se apenas por conveniência social. E ela se prestara a esse papele por causa dele perdera tudo quanto mais amava! Deixara seus filhos entregues
à orfandade! Que injustiça! Como fora burra! Se naquela manhã soubesse tudoquanto sabia agora, teria dado graças a Deus por Eugênio ter saído de casa! Masera tarde. Só lhe restava a vingança! E esse prazer ninguém lhe poderia tirar.
Resistiu à vontade de atirar-se sobre ele e exigir-lhe contas
de seus atos. Sabia que se o fizesse, ele poderia sentir-se mal e adoecer.
Embora o odiasse, não podia fazer isso. As crianças precisavam dele. Mas fariatudo para que sua vida se transformasse em um inferno e não tivesse paz. Ele só
se sentiria bem, quando em casa, ao lado das crianças. Era também uma formade fazer com que ele ficasse lá, tomando conta deles, para saber como foratrabalhoso o esforço dela durante todos aqueles anos.
Apesar do controle de Elisa, Eugênio não pôde se furtar a um sentimento
desagradável, uma vaga sensação de tristeza e medo. Reagiu. Ele nunca tiveramedo de nada. Tentou dormir, mas o sono não vinha. Continuou pensando,pensando, angustiado e insone, e só conseguiu conciliar o sono quando osprimeiros raios solares começaram a aparecer.
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A VERDADE DE CADA UM
SpiritualEste livro trata-se de um romance espírita. Eu estava lendo e particularmente estou adorando o livro. Na história Elisa é casada com Geninho e eles tem 3 filhos. Um dia Geninho aparece em casa e diz que está indo embora e que não a ama mais. Porém...