Capitulo 2

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Eugênio acordou sobressaltado. Por alguns instantes, pensou que tudo não
passara de um pesadelo. Elisa deveria estar na cozinha como todas as manhãs, as crianças se preparando para o café. Ele tomaria seu banho como sempre fizera e iria para o trabalho. Apanhou o relógio sobre a mesa de cabeceira. Nove horas.
Passou os olhos em volta. Sobre a cômoda, viu os papéis dobrados. Sentiu um aperto no coração. Fora mesmo verdade. Ali estavam o atestado de óbito, os documentos do cemitério etc.
Aflito, passou a mão pelos cabelos em desespero. O que fazer agora? Olívia
era a única família de Elisa, cujos pais haviam morrido há tempos. Lembrou-se de sua mãe.
Precisava de alguém para cuidar das crianças. Olívia se recusava a fazê-lo.
Tinha que trabalhar e alguém teria que tomar conta delas. Por causa dos
acontecimentos, conseguira uma semana de licença na firma, mas nunca cuidara de crianças e não tinha a menor idéia de como fazer isso.
Talvez Olívia concordasse em ajudá-lo, pelo menos nos primeiros dias, até
que conseguisse uma solução. Pretendia falar com Eunice e pedir-lhe que o ajudasse a cuidar delas. Afinal, ele queria viver com ela e juntos poderiam ser felizes. Agora estava livre até para casar de novo.
Não. Casar de novo, não. E se Eunice mudasse como Elisa? As mulheres
adoram o papel de boa esposa. Mas como pedir-lhe para assumir seus filhos sem dar nada em troca?
Mesmo que Eunice concordasse, ele precisava deixar o tempo passar. As
crianças estavam muito ressentidas com ele. A culpa era de Olívia que o
colocara no papel de vilão. Era fácil julgar os outros. Ele sabia que nunca
desejara nenhum mal a Elisa.
Jamais poderia supor que as coisas acontecessem daquela forma.
Suspirou angustiado. De qualquer maneira, seus filhos não aceitariam a
presença de Eunice depois do que acontecera. Era preciso dar algum tempo. Eles esqueceriam e, então, tudo seria mais fácil.
O difícil era resolver a questão do presente. Temia que sua mãe não aceitasse tomar conta da casa e das crianças por algum tempo. O suficiente para ele resolver tudo. Ela residia no interior de Minas Gerais e era muito metódica.
Nunca deixava seu pai sozinho por nada do mundo. Nem ao enterro viera. Na verdade, não viera a São Paulo nem para o casamento. Apenas suas duas irmãs haviam comparecido na ocasião.
Eugênio dava-se muito bem com a família, possuía bom relacionamento com as irmãs e os cunhados. Mas sabia que não podia contar com eles para o que queria, porque eles tinham filhos. Suas irmãs tinham suas próprias obrigações,
não podiam tomar conta de sua casa.
Chocado com o que acontecera, e pelo fato do corpo de Elisa haver sido
colocado em lugar refrigerado em meio aos indigentes, ele apressara o velório e o sepultamento. Não quisera prolongar a espera para que suas irmãs viessem.
Melhor assim. Eles não haviam convivido muito com Elisa. Gostavam dela, admiravam-na por ser uma ótima esposa e mãe, nada mais.
Agora, arrependia-se um pouco disso. Odete ou Diva talvez lhe dessem
algumas sugestões. Olívia era intratável. Não podia esperar nada dela, a não ser recriminação e rancor.
E se ela já tivesse ido embora? Apesar de tudo, sentia-se mais seguro com ela
por perto.
Tratar de crianças era coisa de mulher. Não sabia como proceder.
Apressado, levantou-se e abriu a porta do quarto. Escutou a voz de Olívia na
cozinha e respirou aliviado. Tentou encorajar-se. Reagiu. Era uma bobagem.
Afinal, o mundo não se acabara. Decidiu agir. Tomou um banho, fez a barba, vestiu-se e desceu.
A mesa estava posta e as crianças já haviam tomado café. As xícaras usadas ainda estavam sobre a mesa. Eugênio notou que não havia uma xícara para ele.
Ficou esperando, parado na porta da cozinha.
Olívia falava com as crianças tentando confortá-las e ajudá-las a enfrentar a nova situação.
— Eu não quero que a mamãe vá embora para sempre — queixava-se
Nelinha. — A avó da Márcia morreu e nunca mais voltou. A mãe dela disse que morrer é pra sempre.
A gente nunca mais vê a pessoa.
— Não é bem assim — disse Olívia contendo o pranto. — Ela precisou partir.
É como uma viagem. Ela foi para um lugar melhor do que aqui e por certo virá aempre nos ver.
Só que nossos olhos não poderão vê-la, porque agora ela tornou-se invisível.
— Eu não quero uma mãe invisível — disse Juninho choroso. — Eu quero que ela me abrace, fique comigo, como até agora.
— Eu também gostaria, mas Deus resolveu diferente. Ela era tão boa que ele não resistiu. Precisava de um anjo lá no céu e escolheu ela. De lá, ela continuará
tomando conta de vocês. Ela foi, porque quando Deus quer, ninguém consegue resistir. Mas se ela pudesse, teria ficado conosco. Isso eu garanto.
— Deus é mau — reclamou Nelinha. — Tirou minha mãe.
— Deus não é mau. Não diga isso. Às vezes nós não entendemos o que ele
quer, ou por que ele age de certa maneira. Mas ele nunca erra. Se ele agiu assim, foi porque era o melhor. Deus sempre faz o melhor. Ele é amor e sabedoria.
— Tia, eu ainda não posso concordar com você — disse Marina pensativa. — Estou com muita tristeza e não acho que isso seja melhor. Estou tão agoniada!
Olívia, contendo as lágrimas, abraçou-a com carinho. Eugênio sentiu os olhos molhados e não pôde articular palavra. Continuou parado, esperando. Vendo que
Olívia não se preocupava com sua presença, perguntou:
— Você fez café?
— Fiz. As crianças já comeram.
— Sei. Eu gostaria de tomar o meu agora.
— Fique à vontade. A casa é sua. Ainda tem café na térmica. Talvez ainda tem leite na geladeira.
Chamando as crianças, Olívia deixou a cozinha. Eugênio sentiu-se meio
perdido. Nunca se ocupara com as coisas da casa. Que diferença da Elisa.
Quando ele descia, a mesa estava sempre bem posta, limpa, sua xícara disposta com apuro. O leite fumegante no bule e o café cheiroso e fresquinho. O pão
estalando e o queijo mineiro meia cura já cortado e sem a casca, como ele preferia.
Procurou uma xícara no armário e serviu-se de café tomando-o em pé
mesmo. Não se sentaria em uma mesa em desordem, cheia de xícaras usadas e farelos de pão por toda parte. Ele era um homem civilizado e de classe.
Apesar de tudo, o café deu-lhe mais coragem. Era preciso enfrentar aquela situação. O
que fazer? Como resolver os problemas da casa até que sua situação com Eunice se consolidasse?
Procurou Olívia.
— Olívia. Deixe um pouco as crianças e venha até a sala. Quero conversar
com você.
Sentou-se na sala e esperou. Quando ela entrou, ele foi logo dizendo:
— Olívia. Não sei o que fazer. Nunca tomei conta de casa e muito menos de
crianças. Não tenho jeito para isso. Além do mais, preciso trabalhar. Vivemos do meu salário. Tenho uma semana de licença, mas o que fazer quando ela acabar? Mesmo
agora, sinto-me perdido. Não tenho jeito para cuidar das crianças. Elas precisam de uma mulher.
— Eu posso ajudar por alguns dias. Eles estão muito sofridos. Não desejo
abandoná-los agora. Mas eu vivo do meu salário e também preciso trabalhar.
— Você poderia ficar aqui por alguns dias até resolvermos esta situação.
— Posso ficar. Mas deixo claro que não é porque você está me pedindo. É
porque eles estão sofrendo muito e não posso deixá-los agora.
— Fico grato da mesma forma.
— Daqui a pouco vou sair com eles, para distraí-los. Vou a uma agência
procurar uma boa empregada.
— Empregada? Nós nunca precisamos de uma. Temos uma faxineira uma
vez por semana.
— Pois agora vão ter uma. E prepare-se para pagar um bom salário, com
registro na carteira e tudo. Nós não podemos colocar aqui uma pessoa
desclassificada. E o que é bom, custa caro.
Eugênio irritou-se:
— Pelo jeito, você pretende me arruinar.
— Eu não preciso de ninguém. Quem precisa é você. E se quer ser servido,
casa limpa, roupa lavada e passada, os filhos bem cuidados, a casa brilhando,
tudo decente, precisa pagar. Ninguém vai fazer isso para você de graça. A não ser que você se case de novo e arranje outra ingênua feito a Elisa.
— Você quer mesmo é me arrasar. É rancorosa e vingativa.
— Sou como sou. Você sabe como eu penso. E se estou me prontificando a
ficar alguns dias, arranjar uma pessoa boa para trabalhar aqui, é só por causa das crianças, para que nada lhes falte. Você é bem capaz de esquecer de dar comida a eles, ou de deixá-los sozinhos o dia inteiro.
— É difícil conversar com você. Eu preciso sair, tratar de algumas coisas. Já que as crianças estão com você, vou aproveitar.
— Com certeza vai chorar nos braços daquela desavergonhada.
— Não fale assim de Eunice. Ela é mulher de muita classe e finura. Não é o que você pensa.
— Com toda finura, deu em cima de um homem casado, destruiu um lar e uma família. Marcou nossas vidas para sempre.
— Não seja dramática. Pensei que fosse mais moderna. Estava enganado. Nem isso você é.
— Não faça me arrepender de estar aqui.
— Olívia, estou cansado de discussões. Estamos cheios de problemas e essa
não é a melhor forma de resolvê-los.
— Concordo. Também estou cansada de discutir. Preciso de dinheiro para
comprar comida e se encontrar alguma pessoa na agência, talvez tenha que pagar a taxa para contratá-la.
Eugênio, contrariado, puxou o talão de cheques dizendo:
— Vou lhe dar cem mil cruzeiros. Olívia riu irônica:
— O quê? Cem mil cruzeiros? Não vai dar nem para o começo. Em que
época você vive?
Ele ia dizer que Elisa ficava satisfeita com o que ele lhe desse, mas
arrependeu-se. Isso iria provocar novas discussões.
— Quanto você acha que resolve? — indagou procurando dissimular a raiva.
— Uns quinhentos mil.
— Quinhentos mil?!! Você enlouqueceu?
— Não quero pedir dinheiro toda hora. Além do mais, somos cinco pessoas, e eu não tenho idéia do quanto iremos consumir. E já falei que tem a agência.
— É muito dinheiro. E se eu me recusar?
— O problema é seu. A família também é sua. Vou só dar comida para as crianças e tanto a louça, como a roupa vão amontoar-se. Eu é que não vou fazer isso. Não gosto, não preciso, não sei. Tentei resolver do meu jeito. E garanto que
é a melhor maneira. Se não quiser, paciência. Fica tudo como está.
Eugênio tentou conter a raiva. Olívia estava se vingando dele ou ela era assim mesmo?
Nem parecia mulher. Por isso estava sozinha. Nenhum homem haveria de
querer casar-se com ela. Ela dava-se ares de difícil, mas pensando daquele jeito, ia ficar mesmo para titia.
Ele estava nas mãos dela, resolveu concordar. Preencheu o cheque e
entregou-o a ela, dizendo:
— Está me levando em um minuto o que gastávamos durante um mês inteiro.
— Não se envergonha de dizer isso? Com toda essa pose, belo carro, gravatas
italianas, camisas de seda, perfume francês. Onde está sua classe? Seus filhos e sua casa não merecem também o melhor?
— Agora chega. Não preciso ficar ouvindo suas ironias.
Enquanto Olívia guardava o cheque na bolsa, Eugênio apanhou a pasta e saiu.
Sentia-se sufocar dentro daquela casa. Pensara ter alcançado a liberdade, e a
vida o apanhara em uma armadilha. Desejava alçar vôo, rumo a uma vida nova, mais bela e mais feliz, e fora arremessado de volta a uma prisão cheia de obrigações e problemas que ele não sabia como resolver.
Ia à procura de Eunice. Sentia vontade de desabafar, chorar suas mágoas, abraçá-la, sentir-se confortado, compreendido. Essa luta o deixara exausto. A incerteza e a preocupação ainda mais. Contava que ela o fosse apoiar.
Chegando no apartamento, tocou a campainha e esperou. Eunice abriu e
vendo-o, abraçou-o dizendo:
— Sinto muito o que aconteceu. Depois que você me telefonou contando tudo, senti-me angustiada. Foi uma tragédia. Não queria nada disso.
— Eu também não. Elisa era uma boa pessoa. Eu sempre disse isso a você.
Eu não a amava mais, mas ela era muito bondosa, fiel, boa mãe, excelente dona de casa. E agora, o que será de mim e das crianças?
— Venha — disse ela fechando a porta e puxando-o pela mão. — Sentemos
no sofá e vamos conversar.
— Sim. Temos muito que conversar.
— Há o apartamento que alugamos. O contrato já foi assinado. Só íamos
comprar os móveis. E agora? Você não vai voltar atrás, não é?
— Claro que não. Vivo sonhando com o momento de podermos viver juntos
de uma vez. Às claras e sem precisar nos esconder como criminosos.
— É que agora você precisa resolver como cuidar das crianças para depois
podermos cuidar de nós.
— Esse é exatamente o problema mais urgente e que me preocupa. Minha
cunhada está lá em casa por alguns dias. Está procurando uma empregada. Depois veremos.
— Você não tem ninguém que possa morar lá com elas? Algum parente?
— Não. Minha mãe não deixa meu pai nem por um dia, e a casa dela é
pequena demais para levar as crianças lá. Depois, ela não gostaria de assumir isso. Nem dos netos mais chegados, meus sobrinhos que moram perto dela, ela toma conta. Diz sempre que já fez sua parte, criou os filhos e que cada um cuide de suas obrigações.
- Hum! Nesse caso, terá que ser uma empregada mesmo.
Eugênio animou-se, segurou as mãos dela entre as suas e continuou:
— Bom, eu sei que é muito cedo. Teremos que esperar. Mas eu sei que um dia eles irão aceitar você. Nós moraremos todos juntos e seremos felizes. Mal posso esperar esse dia.
Eunice procurou dissimular o desagrado. Ela não gostava de crianças. Não se
sentia preparada para aturá-las dentro de sua própria casa. Não estava em sua cogitação ter filhos e muito menos criar filhos dos outros. Tentou contemporizar.
Gostava do Eugênio. Ele era boa companhia e fazia-lhe todas as vontades.
Levava-a aos lugares de classe que ela sonhara freqüentar. Sabia tratar uma
mulher. Era impetuoso e apaixonado. Como homem, nada deixava a desejar.
Mas filhos, crianças, isso era demais!
— Não sei, não — foi dizendo com ar preocupado. — Eu nunca tive filhos e
não tenho jeito para lidar com crianças. Além do mais, você disse que eles ficaram com raiva de você por causa da separação.
— Olívia fez o favor de culpar-me pela morte de Elisa, na frente deles. Claro
que ficaram revoltados. Principalmente Marina que já está mais crescida.
— É claro que se ficaram assim com você, comigo será muito pior.
— Eu sei disso. Mas eles são amorosos. Sempre foram carinhosos e logo
esquecerão. Pretendo reconquistá-los. Eu gosto deles. Nunca pretendi abandoná-los. Se os deixei, foi porque Elisa estava lá e ela cuidava deles muito bem. Mas agora ela se
foi, e eles precisam de mim.
— Sua cunhada não quer ficar com eles?
— Não. Ela os quer muito bem, mas é uma mulher liberada, trabalha e foi
bastante clara. Não quer assumir a guarda deles. Sabe o que ela teve o desplante de me dizer? Que vai me vigiar, ver se eu cuido bem deles. Caso contrário, fará um barulho dos diabos. Ameaçou-me até de ir à polícia.
— Que mulher mal-educada! Logo agora que os sobrinhos precisam dela.
Elisa não era sua única irmã?
— Era. Como eu disse, as duas eram sozinhas no mundo.
— Então. O ideal seria que ela tomasse conta deles. Você poderia dar-lhes uma mesada, e tudo estaria resolvido.
— Pensei nisso, sei que ela cuidaria deles tão bem quanto Elisa, embora seja completamente diferente dela. É obstinada, mas sabe ser dedicada quando quer. Sempre apoiou Elisa. Mas ela recusou. O máximo que consegui dela foi sair para procurar uma empregada e ficar alguns dias lá em casa, até que a empregada acostumasse.
— Já é alguma coisa.
— Mas eu não posso manter duas casas. Você sabe que gosto de viver bem. Estou bem empregado, mas não ganho tanto assim.
— Sempre me disse que ganhava bem. Pensei que dinheiro não fosse
problema para você.
— E não é. Mas duas casas dá muito trabalho e fica muito difícil.
— Mas o apartamento já foi alugado. Fizemos o contrato e eu contava que
nos mudaríamos dentro de mais alguns dias.
Eugênio baixou a cabeça pensativo. Arrependia-se de ter alugado aquele
apartamento.
Ele o fizera, porque não pensara em tirar Elisa e as crianças da casa onde
residiam. Era uma boa casa, confortável. Ele a comprara há alguns anos e já acabara de pagar. Agora que Elisa se fora, contava que com o tempo Eunice poderia ir morar lá com eles.
Mandaria pintar e decorar a casa e pronto. Nem precisariam pagar aluguel.
— As coisas agora estão diferentes — foi dizendo lentamente. — Não sei
bem como vão ficar. Estou perdido. Não posso abandonar meus filhos agora.
— Nem eu pediria tanto. É claro que precisa cuidar deles, deixá-los bem
instalados, aos cuidados de uma pessoa da sua confiança. Mas isso, para nós, não fará nenhuma diferença. Poderemos mobiliar o apartamento, arrumar tudo, e eu
mudarei para lá e naturalmente você estará comigo sempre que puder.
— Não foi isso que sonhei para nós dois. Contava morar com você
definitivamente, sem dividir meu tempo com ninguém.
— Agora não resta outro recurso. Construiremos nosso ninho de amor assim mesmo. Não nos deixaremos abater pelo destino.
— Gostaria de esperar alguns dias mais para tomar essa decisão. Ainda estou aturdido. Falta-me o chão debaixo dos pés.
— Elisa faz tanta falta assim?
— Faz. Ela era uma mãe maravilhosa. Tão resignada, dedicada, só pensava
na nossa felicidade. Esquecia de si mesma para cuidar da casa, das crianças e do meu bem-estar.
— Não era isso que você me dizia. Só porque morreu, ela virou santa?
— Não seja injusta. Nunca falei nada de Elisa. É verdade que meu amor por
ela acabou. Mas a estima, a amizade, isso eu sempre senti. Não se pode desfazer de uma pessoa que só fez bem. E ela sempre me ajudou em tudo.
— Se veio aqui para falar bem dela, pode ir saindo. Sinto ciúmes. Não gosto que fale de nenhuma mulher na minha frente.
Ele abraçou-a carinhoso:
— Bobinha! Nenhuma mulher ocupará o seu lugar. Sabe que eu a amo acima de qualquer outra coisa no mundo.
— Mas está querendo me deixar de lado, desistir dos nossos projetos, só por causa de seus filhos. Se me amasse mesmo, não faria isso. Estou começando a pensar que você não gosta de mim tanto quanto eu imaginava. Já nem quer mais mobiliar o apartamento...
— Quem disse isso? Eu apenas pedi algum tempo para resolver minha
situação. Minha mulher foi enterrada ontem! O que aconteceu me tirou do
equilíbrio. Não consigo ver as coisas de maneira clara.
— Tem certeza de que me ama? Não vai me deixar de lado por causa do que aconteceu?
— Claro que não. Eu não poderia mais viver longe de você! Meu maior sonho
é ficar a seu lado para sempre. Por que duvida?
Eugênio beijou-a nos lábios com paixão. Eunice entregou-se ao prazer de sentir-se amada, procurando vencer o receio de que ele insistisse naquela idéia louca de trazer as crianças para morar com eles.
Ela desejava manter vivo o interesse dele, a tal ponto que ele a colocasse em primeiro plano em sua vida, mesmo quando ela lhe dissesse que não pretendia morar junto com os filhos dele.
As crianças iam tirar a sua privacidade, interpor-se entre ela e ele, atrapalhar tudo. Isso ela não estava disposta a tolerar. Contudo, sentia que precisava usar de
diplomacia. Amorte de Elisa estava ainda muito recente. Com mais alguns dias, ele voltaria atrás, acabaria por compreender que o que pretendia, não era possível.
Deixaria as crianças com a empregada, iria lá de vez em quando, arcaria com todas as despesas, não deixaria lhes faltar nada e pronto. Eles estariam livres para cuidar da própria felicidade.
Decidiu dar um tempo e não discutir. Afinal, aquele não era um bom
momento para isso. Ele precisava ser confortado. Resolveu fazer o seu jogo.
— Pobre do meu amor — foi dizendo, passando a mão delicadamente pelos
cabelos dele. — Sei como se sente. Mas eu estou aqui para abraçá-lo e dizer que o amo muito. Juntos venceremos qualquer obstáculo.
Eugênio sentiu-se melhor. Eunice sabia como acalmá-lo. Ele também não se sentia com forças para tomar nenhuma decisão naquele momento. Mergulhou
nos braços dela e esqueceu de tudo o mais.
Olívia chegou em casa com as crianças um tanto desanimada. Procurara uma pessoa para trabalhar na casa, mas não encontrara ninguém. Fora a
algumas agências de empregos e deixara lá o endereço com as especificações que desejava.
Olhou a cozinha em desordem, a louça sobre a mesa e a pia. As panelas
sobre o fogão.
Ela não estava a fim de trabalhar naquele serviço. Detestava-o. Mas, por
outro lado, gostava de limpeza e de ter tudo na mais completa ordem.
— Vou buscar a Alzira — pensou.
Alzira trabalhava para ela já há algum tempo. Cuidava do seu apartamento
com eficiência. Entrava às 9 e saía às 5 da tarde. Quando Olívia chegava do
trabalho lá pelas sete da noite, encontrava tudo na mais perfeita ordem. Sua roupa lavada, passada, guardada, mesa posta e o jantar prontinho sobre o fogão.
Sabia que ela morava longe, tinha família e não podia dormir no emprego. Mas pelo menos poderia dar uma mão na limpeza. Passou a mão no telefone e
ligou para sua casa. Foi a própria Alzira quem atendeu.
— Alô!
— Alzira, sou eu.
— D. Olívia! Estou sabendo do que aconteceu. Estou chocada.
— Imagine eu. Estou aqui com as crianças, precisamos da sua ajuda. Tome um táxi e venha até aqui.
— Sim, senhora. É que eu ainda não acabei o serviço aqui.
— Deixe tudo como está. Estou precisando de você. Venha depressa.
— Sim, senhora.
— Tome o táxi e eu pagarei aqui.
Enquanto esperava, Olívia tentou dar uma ordem na casa, procurando
guardar o que era possível e recolocar no lugar. Além da cozinha, os banheiros estavam em estado precário. As crianças
haviam tomado banho e as roupas estavam espalhadas por todos os lados.
Olívia tentou juntá-las no cesto de roupa suja. Não desejava que Alzira se
assustasse com o estado da casa. Seu apartamento era sempre impecável, e ela sempre fora muito exigente. Contava com ela pelo menos para o mais urgente.
Alzira chegou pouco depois, olhando penalizada para as
crianças. Ela tinha dois filhos e comovia-se ao pensar no que acontecera.
Olívia recebeu-a com alegria.
— Ainda bem que você veio! Ainda estamos atordoados com o ocorrido.
Parece um sonho. Sinto-me sem coragem para nada.
— Deixe comigo, D. Olívia. Vim disposta à ajudar.
— Fui a duas agências para ver se conseguia alguém para trabalhar aqui. Mas não consegui nada.
— Vou ver se consigo alguém no meu bairro. Não é muito fácil, mas vou
empenhar-me.
— As crianças precisam de alguém que fique com elas. Quando acabar
minha licença, terei que voltar ao trabalho. Meu cunhado também precisa trabalhar. Tenho apenas uma semana para resolver este assunto. Sinto-me aflita.
— As crianças parecem que se agarraram à senhora.
— É verdade. Eu também, a eles. Dói-me o coração ter que deixá-los.
— Foi uma infelicidade! D. Elisa, tão boa... Olívia sentiu que as lágrimas lhe
vinham aos olhos.
— Foi uma injustiça — disse. — Antes houvesse sido eu que não tenho
ninguém. Logo ela, tão boa, com tantos filhos!
Alzira suspirou resignada:
—São coisas da vida, D. Olívia. Deus escreve direito por linhas tortas!
— Deus! Acho que ele estava ausente quando Elisa saiu naquela noite!
— Não diga isso. É triste, mas Deus tem os seus motivos. Ele sempre faz o
que é certo. Ele não erra.
— Não concordo. Desta vez, ele errou e muito. Levar Elisa, tão necessária
ainda aqui, com filhos tão pequenos.
Alzira meneou a cabeça pensativa:
— Eu, se fosse a senhora, não criticaria o que não conheço. Agora não é hora de reclamar, mas de rezar. Rezar alivia a alma e alimenta o coração.
— Há muito que não rezo mais. Agora, então, depois do que aconteceu,
menos ainda.
— Vou pegar no serviço na cozinha.
— Isso. Vá mesmo. Eu fiz café, está na garrafa térmica. Se quiser tomar,
fique à vontade.
— Sim, senhora.
Enquanto Alzira cuidava da arrumação, Olívia procurou entreter
as crianças, cuidando para que não se entristecessem, nem chamassem pela
mãe.
Tentara explicar-lhes o que acontecera, mas não sabia até que ponto eles haviam entendido.
Sentia uma tristeza imensa dentro do peito, uma vontade de chorar, de gritar sua revolta, sua dor, seu desconsolo. Mas não podia. Precisava dominar-se para não magoar ainda mais aquelas crianças que adorava.
De quando em vez, lembrava-se de Eugênio, com raiva. O malvado saíra há horas e naturalmente fora à procura daquela desavergonhada. Era lá que ele fora chorar as mágoas. Queixar-se dela, com certeza, dizer que precisava cuidar dos
filhos agora.
Apesar da dor que sentia, de uma certa forma, a frustração dos planos de Eugênio com Eunice dava-lhe certa satisfação. Ele saíra de casa
prazerosamente, tentando libertar-se do peso da família, deixando-o todo sobre os frágeis ombros de Elisa. A vida, porém, dispusera de outra forma e o chamara à responsabilidade. Cortara-lhe a chance de largar a família. Agora ele estava
sendo obrigado a continuar assumindo, com a agravante de ter que fazê-lo sozinho. Elisa já não estava mais lá para aliviar seu fardo, fazer tudo por ele. Ele
agora não podia mais fugir à sua obrigação de pai.
Esse era um dos motivos pelos quais Olívia não desejava assumir os sobrinhos definitivamente. Sabia que podia fazer isso. Colocaria uma boa governanta e continuaria trabalhando do mesmo jeito. Obrigaria Eugênio a pagar todas as despesas deles e tudo estaria resolvido.
Mas, ela não ia fazer o jogo dele. Não ia deixá-lo livre para usufruir da sua
traição. Elisa precisava ser vingada, e ela o faria. Ele seria responsabilizado por tudo e teria que sentir na pele a falta que a esposa lhe fazia.
Olívia não estava disposta a facilitar as coisas para ele. Ao contrário. Claro
que pensava no conforto e no bom atendimento das crianças, mas ele teria que estar ali, dia a dia, noite a noite, hora a hora.
É verdade que as crianças estavam se apegando muito a ela. Assustadas,
chorando pela mãe, elas procuravam em seu colo acolhedor o agasalho e o
conforto. Abraçada a eles, Olívia sentia que não podia deixá-los. Era como abandonar Elisa no momento em que ela mais precisava de sua ajuda.
Abraçava-os carinhosamente procurando suprir de alguma forma a ausência da mãe, tentando fazê-los esquecer um pouco a tragédia de que haviam sido vítimas.
Nelinha chamava pela mãe e chorava de vez em quando, e o Juninho
agarrava-se a ela, olhos muito abertos, num pedido mudo de
ajuda e conforto. Nessa hora, Olívia tentava distraí-los, chamar sua atenção para outras coisas, numa tentativa desesperada de diminuir o sofrimento deles.
Conversara com Marina, pedindo-lhe sua ajuda. Ela, como mais velha, tinha
mais condições de entender o que acontecera. Fora decisiva e franca. A morte era uma condição definitiva. Chorar, lamentar-se, sofrer, não iria trazer Elisa de volta. A vida continuava, portanto, eles precisavam aceitar e procurar viver da
melhor forma possível.
Era difícil, ela sabia, mas com o tempo eles se acostumariam à nova
situação.
Marina ouvira tudo procurando conter as lágrimas e prometera cooperar.
—Tia — disse ela — eu nunca vou perdoar meu pai.
—Também não é assim. Ele errou, mas agora se arrependeu e vai ficar com vocês.
— Só porque não tem outro remédio. O que ele queria mesmo é ficar com
aquela mulher. Eu ouvi quando ele disse que queria nos levar para viver com ela. Eu não vou. Juro que não vou.
Olívia abraçou-a com carinho.
— Claro. Isso eu não vou deixar. Ele tem mais é que ficar aqui, cuidando da família, que é sua obrigação.
— Por obrigação, eu não quero — continuou Marina com raiva. — Ele não gosta de nós. Ele nos abandonou.
— Vocês são pequenos, não podem viver sozinhos. Apesar de tudo, ele gosta de vocês e vai ficar, porque sabe que é preciso.
— Quando eu crescer e puder, vou embora desta casa. Se você não me
quiser, eu vou para bem longe e ninguém nunca mais me verá.
— Não fale assim. Eu gosto muito de você, a Nelinha e o Juninho também. Se você se for, nós sentiremos muito sua falta.
— Eu fico só por causa de vocês, senão eu fugia, ia embora.
— Revoltar-se não adianta. O que você precisa é ter uma boa formação.
Estudar muito, aproveitar para aprender uma profissão, para ser independente e ganhar seu próprio dinheiro. Só assim fará o que quer e como quer.
— Um dia eu posso ser como você? Ter um carro, trabalhar o fazer tudo que eu quero?
— Claro, Marina. Eu mesma farei tudo para que você consiga. Mas agora
precisa ter paciência. Sua mãe não está mais aqui, e seu pai é que vai cuidar de tudo. Ele não tem
muita prática com crianças,
mas ele aprenderá.
— Isso vai demorar muito! — disse ela, pensativa.
— Que nada. O tempo passa depressa, você verá.
— Você vai ficar morando aqui? — perguntou Juninho.
— Só por alguns dias. Eu tenho minha casa, não posso abandoná-la.
Os três abraçaram-na assustados.
— Eu não quero ficar sozinha — disse Nelinha, chorosa.
— Eu também não — disse Juninho. — Estou com medo.
— Calma. Vocês não vão ficar sozinhos nunca. Como eu não posso ficar aqui todo o tempo, vamos arrumar uma pessoa boa, que ficará com vocês enquanto seu pai está trabalhando e eu também.
— Eu quero ficar com você! — choramingou Juninho.
— Eu também! — gemeu Nelinha.
— Não pensemos nisso agora. Saibam que eu nunca os deixarei. Estarei
sempre cuidando de vocês. Não precisam ter medo de nada.
Alzira, na porta da cozinha, os observava com os olhos cheios de lágrimas.
Era triste e sem remédio. Ela iria empenhar-se em arranjar uma pessoa boa.
Mas, naquele momento, observando a tristeza das crianças, se perguntava
intimamente por que Deus permitira que essa tragédia se consumasse.

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