"Tudo bem, essa é a última", falei enquanto fechava a porta da geladeira branca que ficava na cozinha revestida por azulejo português. Saí pela porta pintada de amarelo, estendi a mão e entreguei uma garrafa fechada de Skol Beats verde. Era a 5ª rodada. Acabou com meu estoque. Ela sorriu. "Valeu pela bebida grátis, otário". Ela tinha alguma coisa diferente, que me fez sorrir de volta. Consegui sentir uma pontinha, quase faísca, de felicidade. Foi bom. De um jeito que eu nem lembrava que poderia ser."Você tá triste?". Era a primeira vez, em anos, que alguém me fazia essa pergunta. A última foi no velório do meu pai. Claro, nesse tempo eu já tinha ouvido várias vezes perguntas como "tudo bem?" ou "como você vai?", mas eu não sabia que conseguia transparecer alguma coisa. E não queria que essa alguma coisa fosse tristeza. "Não é?", ela reforça, pedindo resposta. Mesmo estando óbvio, na minha cara e na minha vida, que eu estava mal para uma porra. "Tudo bem, você pode maquiar o quanto quiser. Talvez eu nem ligue".Eu sei que todo mundo precisa enlouquecer um pouco. Mas não sempre. Quando a gente enlouquece muito, as outras pessoas conseguem ver o quanto podemos quebrar. Já enlouqueci demais. Não queria que ela me visse quebrar. Só Lucas sabia das minhas fraquezas, loucuras e quedas. Já tivera mordido milhões de vezes diante dos olhos dele. Crises existenciais. Abstinências. Eu chorava e gritava "você não me enxerga!". Mentira. Visão de raio-X. A única coisa que ele fazia ao me ver assim era sorrir, me levantar do chão e dizer: "Esse é o problema? Então compro um novo óculos amanhã".Ana esticou a perna e apoiou os pés no descansador de couro que ficava na frente do sofá. Eu, sentado na cadeira giratória cinza, em frente (ou quase isso) a uma garota linda, sobre a qual eu não sabia quase nada. Os olhos enormes e azuis dela me fitaram de cima a baixo. As coisas estavam fora da ordem. E ninguém além de mim poderia consertar isso. A culpa era minha? Talvez, se ele não tivesse desistido de mim, ido embora, as coisas ainda estivessem no lugar. Talvez não. "A culpa não é minha. Ele foi embora, não eu. Por mim ainda estaríamos juntos". Ela me olhou da ponta do queixo com barba mal feita até os fios emaranhados e espetados fora da maior parte encaracolada que cacheava as falhas castanhas. Analisava-me e desprezava meus pequenos defeitos: cravos que seriam facilmente cobertos por uma base barata, rachaduras de frio nos lábios, que eram ainda mais notadas porque sentir frio na nossa cidade é realmente muito raro. O pseudocomeço de uma possível monocelha rala. "Tanto faz, você errou também. Se não estariam juntos agora, não? Enfim, tenho que ir. A cerveja acabou. Obrigado pela conversa. E por abrir a porta pra uma estranha". Mas ela não foi. Ficou me encarando, tentando arrancar alguma coisa de mim. Bom, fosse o que fosse, eu não tinha. Continuou encarando por no mínimo 3 minutos. Pareciam horas. Pisco. Ela me cega a laser azul, até finalmente me pedir carona.Deixei Ana numa casa pouco mais à frente da praça que me indicou da última vez. Era um bom lugar. Um ótimo lugar. Arrisco-me a dizer perfeito. Um complexo bem estruturado de dois andares, com belas janelas grandes e uma porta de vidro na entrada. Duas roseiras pequenas na frente do jardim. Era perfeito. Ana corria levando suas sardas e cicatrizes em direção ao portão que antecedia o gramado.Quando voltei para casa, percebi que tinha esquecido a droga da chave por dentro do apartamento. Merda. "Calma, Nicolas. Alguém aqui deve ter uma chave de fenda". 1.201. Arthur. Meu vizinho do andar de cima. Peguei o elevador, tive uma breve conversa sobre o tempo com pessoas que já estavam lá dentro, apertei o 12 em meio a outros botões. Um, 2,3. Chegamos. "Oi, tudo bom? Eu esqueci minha chave dentro do meu apartamento e fiquei preso por fora. Você tem chave de fenda, né?". Ele riu. Eu também riria. "Claro, eu te ajudo". Descemos pelo elevador de serviço. O social demorou demais. Ele me ajudou a desparafusar a fechadura, abrir a porta e colocar tudo no lugar de volta. O convidei para entrar, já que ele tinha me ajudado com tudo. Mesmo sem mais nenhuma garrafa de Skol Beats, Stella Artois ou Budweiser – graças a Ana, que tinha a capacidade incrível de beber álcool como um fusca velho e nem se quer embolar as palavras – ainda devia ter alguma garrafa de whisky ou vinho tinto perdidas pelo armário. Ele preferiu uma taça.Eu desconfiava da queda de Arthur por mim há muito tempo. Mas só confirmei minha suspeita depois de ouvir comentários indiscretos da síndica do prédio (que adorava se fingir de cupido). Mas eu ainda chorava pelos cantos por causa de Lucas, e não pensava em sair daquele estado de tristeza até que ele voltasse. Mas quando percebi que as minhas esperanças eram inúteis e que logo eu teria de tomar uma séria decisão sobre as blusas, a camiseta, o moletom rasgado e a calça jeans boyfriend que ele havia deixado perdidos dentro de uma mala, no fundo do guarda-roupa, comecei a reparar em Arthur. Não como quando reparei em Lucas. Até porque mal tive tempo pra isso. Quando ouvi aquela voz de arrepiar os pelos da nuca, já tinha me dado o ultimato. Apaixonado. O amor não demorou muito pra chegar. Veio depois do segundo dia que vi seu sorriso amanhecer do meu lado. Era a melhor vista do mundo. Vê-lo ainda perdido no castanho dos próprios olhos. E eu tinha camarote exclusivo e pista Premium. Mas perdi. Perdi tudo isso. Preciso me convencer.Eram 20h13min quando percebi que a noite poderia terminar de um jeito não planejado. "Acho que o único motivo pra eu continuar querendo que ele volte é a proteção. Entende?". Ele assentiu com a cabeça. "Nosso amor não é fraco. Ele me amava muito, eu sei disso. Até hoje acho o nosso fim uma idiotice. Ainda me perco nos motivos pelos quais ele foi embora". Arthur passou o braço pelos meus ombros e me puxou pra mais perto. E eu deixei. Precisava de um abraço. "Você deveria esquecer tudo isso. Esquecer. Esquecer ele. Talvez eu possa te ajudar". Os fios do cabelo quase ruivo dele encostaram-se ao meu rosto. Cheirava a shampoo de laranja com gengibre. Ele pôs o braço esquerdo cruzando minha cintura. Puxou-me ainda mais para perto. Tenho que considerar essa atitude.Se alguém visse de outro ângulo que não o nosso, enxergaria a seguinte cena: Um cara de cabelo alaranjado, blusa da The Killers e calça original Skinny, sentado no meio de um sofá suede cinza. E outro cara. Eu. Blusa preta, bermuda cobalto da Lacoste. Olhos verdes fixos nos olhos pretos à sua frente. Passando as pontas dos dedos na pele pálida que se postava. Tentando ter certeza se aquela beleza era real. Tentando. Tentando ter certeza se queria estar ali. Tentando. Tentando ter. Certeza.

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AMNÉSIA
RomansaEm um mundo onde os ponteiros do coração se partiram no término de seu romance com Lucas, Nicolas vagueia à beira do colapso emocional. Três anos de autodescoberta se estendem diante dele, uma jornada para costurar as lacunas abertas por essa doloro...