Parte 1

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Acordei com uma garota ao lado esquerdo da minha cama. Ela estava enrolada no meu lençol branco de algodão. Seu cabelo louro espalhado pela fronha vermelha que ganhei de Natal da minha tia-avó Lúcia. Ela tinha a pele parda e uma cicatriz no pulso esquerdo. Eu não sabia como ela tinha ganho aquela cicatriz. Não sabia qual era seu nome. Não lembrava a cor dos seus olhos. Mas, mesmo assim, ela estava na minha casa, no meu espaço. E eu nem sabia o motivo. Provavelmente transamos ou sei lá, mas, por quê? Eu lembro que fui a algum lugar e que detestei. Talvez ela fosse a única coisa que eu menos odiei. Ou talvez eu estivesse carente demais para pensar em qualquer outra coisa que não fosse me instalar em outro caos que não o meu.

Lembrei que bebi. Mais nada. O que aconteceu? Não sabia quem era a garota e não sabia como eu conseguia ficar de ressaca com só uma garrafa de Stella Artois.

De repente, ela acordou. Deu-me "bom dia". Respondi. Perguntei seu nome. Respondeu-me com uma voz áspera e calma: "meu nome é Ana." Ela também não sabia o meu e perguntou. "Nicolas. Mas, todo mundo me chama de Nico. Você pode me chamar assim."

Ela levantou do emaranhado dos lençóis e procurou alguma coisa debaixo da cama, atrás da porta, até que, finalmente, encontrou um vestido azul-celeste de cetim atrás da escrivaninha. "Meu deus, como isso foi parar aí?" "Eu detesto essa sensação de impotência. Posso discordar de mim mesmo e não saber. Nunca mais faço isso". Ela olhou para mim e a primeira coisa que percebi foram seus olhos azuis. Como pude esquecê-los?

Ela me disse que estava atrasada, precisava ir. "Não sei sair dessa rua". Não queria que ela se perdesse. "Acho melhor eu te levar".

Eram 07h32min da manhã de um domingo e eu não tinha muito o que fazer. Levei Ana pra casa. Não só porque não queria ela perdida por aí, mas também porque sair da minha rua exigia um caminho lindo. Praias, Orlas, Bares e Coqueiros. Passei por uma ciclovia e lembrei que ele adorava bikes. Lembrei que ele tinha duas ou três se contasse com as que ficavam na casa de veraneio em Porto Seguro. Quando passamos o carnaval por lá, pegamos as bicicletas pela manhã do domingo. Eu odiava domingos. Fomos dar umas voltas. Lembrei que ele acabou caindo por causa de uma pedra. Ele ainda não andava muito bem. Lembrei que tivemos de voltar pra casa pra fazer um curativo. E que Lucas sempre reclamava gritando "ISSO ARDE", mas depois parava, porque sabia que eu odiava gritos e que depois ficaria tudo bem. Lembrei-me de como ele falou que eu ficava sexy fazendo bico, de como aquilo resultou numa tarde de sexo até o pôr-do-sol pra esquecer-se da dor. A partir daquele dia passei a amar domingos.

Deixei Ana na praça principal da avenida que ela falou. Disse que não morava muito longe dali. Tudo bem. Tchau Ana, tchau Nico. Não, não estava tudo bem. Eu não sabia nada sobre aquela garota. "Quem é você, Ana?". Deixa pra lá. "Não faz mais isso, Nicolas".

Como na maioria dos domingos, eu iria almoçar na casa da minha mãe. Ela era a melhor mãe do mundo. Uma adorável senhora de 59 anos. Meu pai morrera nove anos antes, pouco depois do aniversário de casamento dos dois. Infarto. Foi um choque na família, mas passou. Como tudo deveria passar. Nos apoiamos no amor um do outro. Um tempo depois, Luíza me apresentou a Lucas.

Lembro-me do primeiro almoço em família que ele foi como meu namorado. Foi uma merda. Meu padrinho surtou. Aquele bêbado idiota. Eu tive que sair correndo com Lucas pra ele não me espancar. Babaca. Lembro-me de como Lucas chorou e de cada palavra que me disse. "Eu acho que te amo. Na verdade, eu te amo de verdade. Mas eu não posso voltar lá. Caralho, ele vai matar a gente. Se você me ama também, vai entender, não vai?". E foi assim que saímos da casa da minha mãe, pegamos o carro dele e sumimos por alguns dias. Quase um ano depois, meu padrinho convidou a família – inclusive eu e Lucas– pra um almoço na casa dele. Ele tinha uma notícia a dar. E desculpas a pedir. Anunciou que iria se casar. O noivo dele era um cara negro, alto de olhos cor-de-azeitona. Lindo. Realmente lindo. Ninguém ficou surpreso.

Passei por algumas ruas estreitas, beiras de praias e praças, até chegar à casa da minha mãe. Buzinei e ela apareceu na janela de borda bege na frente da casa. Reconhecia os sons do meu HB20 branco. Saiu pela porta de madeira maciça e arrumou-se colocando o cabelo grisalho para trás, puxando o vestido rosa para baixo. Abriu um sorriso estreito de alívio. Talvez já achasse que eu nunca mais voltaria ali. Desde o meu rompimento com Lucas, não aparecia nos almoços de domingo. Há dois anos. Da última vez, eu tinha tido uma conversa com a minha psicóloga – que também acabei abandonando – e ela disse: "você precisa de um tempo pra você. Um tempo sozinho". Acho que ela deveria ter colocado um prazo. Não tenho muita noção de tempo.

Ainda era cedo, 08h13min.
Minha mãe me disse: "Volta mais tarde, Nicolas. Você não tem muito o que fazer aqui agora". Obedeci. Resolvi dar umas voltas na praia, deixei o carro na garagem da casa dela. Peguei os patins branco-quase-preto-porque-nunca-lavei que sempre ficava guardado no meu porta-malas, amarrei os cadarços de um no outro, coloquei-os sobre meu ombro, que estava coberto pela minha blusa preferida. Podia ser só mais uma blusa preta, comprada em só mais uma loja de departamento qualquer em qualquer um dos milhares de shoppings que existem nessa cidade, mas era a blusa que ele me dera no nosso primeiro Natal juntos. Mas isso não importa. 'A gente' não importa mais. Chega de martirizar. Não quero mais pensar nele. Nem naquele sorriso lindo emoldurado por lábios rosados. Chega. Até o fim se cansa.

O mar reluzia à luz do sol. As ondas quebravam calmamente. Pessoas pareciam frangos empanados pela areia. Tudo como deveria ser. Casais se abraçavam debaixo de guarda-sóis. Pessoas sozinhas compravam cocos-verdes. E eu, um cara alto, moreno, de olhos verdes e cara de tédio, punha patins encardidos nos pés. Ajeitava minha bermuda azul-cobalto da Lacoste. Eu não queria estar sozinho ali. Não queria estar sozinho. As coisas tinham mudado. Não era mais tão raro eu me sentir solitário. Gente correndo do meu lado esquerdo, do lado direito. Gente por todos os lados. Gente se esquecendo na areia, no mar. Gente tentando sorrir, tentando chorar. Gente por todos os lados. Mas, mesmo assim, eu estava sozinho. Peguei meu celular, desbloqueei. Procurei no Spotify alguma música que me representasse. Andei pelo chão marcado de vermelho, exclusivo para rodas.

"I'm wasted on you. Too good to be good for me. Too bad that that's all I need."

Meu Deus. Eu não conseguia esquecer. Ele era incrível. Eu não precisava falar nada pra que aqueles olhos me decifrassem por inteiro. Ele era incrível. Não existia lugar mais seguro que seus braços. Com ele eu sabia o que era o amor. E talvez eu ainda soubesse. Só não conseguisse mais sentir.

AMNÉSIAOnde histórias criam vida. Descubra agora