2 - Hanna

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O pós-guerra (I)

Os cabelos curtos à altura dos ombros, com leves cachos bem pretos, reluziam. Ela misturava seu café com leite usando uma pequena colher. Olhava de espreita para aquele rapaz a sua frente. Caleb Lipschutz continuava o mesmo, tirando a presença de uma barba em seu rosto. Ele nem sequer tocou no chá que pedira. Estava com as mãos recostadas na borda da mesa olhando para Hanna com a ajuda de seus óculos. A moça sentia uma ponta de vergonha. Em sua memória, Hanna reviveu sua antiga vida em Cracóvia, na Polônia, quando era vizinha dos Lipschutz e via Caleb todos os dias. Lembrou que seu irmão mais velho, Yossel Szpilman, morria de ciúmes quando os dois estavam juntos e vivia ameaçando xingar Caleb. Isso nunca aconteceu.

— Ninguém sobreviveu. Apenas eu. — ela disse finalmente.

Caleb a encarou como se tivesse acordado de seus pensamentos.

— É mesmo? Eu sinto muito. Minha mãe e Joseph também morreram. Foi doloroso demais para nós. — ele disse cabisbaixo.

Hanna retornou à Polônia quando o campo de concentração Dachau foi libertado em 29 de Abril de 1945. Ela foi enviada para Dachau após os soldado de Hoffnung a espancarem em junho de 1944. E por lá ficou até a libertação. Ficou em um abrigo de refugiados em Varsóvia por um ano e decidiu retornar a Cracóvia, sua cidade natal. Num dos restaurantes mais famosos de Cracóvia, havia um mural que servia para as pessoas colocarem bilhetes avisando onde estavam. Hanna leu vários nomes, até mesmo de pessoas conhecidas. Tinha um bilhete da família do doutor Polanski, mas nenhum nome de seus familiares estava escrito naqueles pedaços de papel. Ela entrou no restaurante, pediu papel e caneta e escreveu:

"estou no hospital cristão de Cracóvia, no segundo andar, ala 7. Ass.: Hanna Szpilman".

E esperou. Dias, semanas, meses. Ninguém a procurou.

Havia conseguido um abrigo no hospital cristão de Cracóvia e dormia na ala das freiras. Fez amizade com Odete, uma freira francesa que estava ajudando as meninas refugiadas da guerra. De início, algumas freiras mais conservadoras tentaram impedir que Hanna ficasse no hospital porque era judia, mas Odete foi quem enfrentou suas superiores para que Hanna pudesse ficar lá. E assim nasceu uma grande amizade.

— Ninguém apareceu. Será que se esqueceram de mim? — ela questionou certo dia olhando para a janela do hospital.

— É claro que não se esqueceram. —  Odete lhe confortou.

Hanna ficou no hospital até o fim de 1947, quando decidiu que já estava na hora de dar um rumo à sua vida. Todo mês ela ia ao tal restaurante e escrevia um bilhete novo para sua família. Até que o dono do estabelecimento a convidou para ser garçonete. Ela conseguiu juntar um dinheiro e alugou um apartamento de um quarto, cozinha e banheiro na rua de trás do restaurante. Despediu-se de Odete com lágrimas nos olhos.

Comprou uma Menorah* para enfeitar sua pequena mesa na cozinha do apartamento e toda noite rezava para encontrar seus familiares. Colocou o nome deles debaixo das sete pontas da Menorah e, cada dia, ela acendia uma vela em uma ponta diferente.

Deus, é claro, podia ter muito bem ouvido as preces de Hanna, mas a sua família já não estava naquele mundo há muitos anos.

Em fevereiro de 1948, o governo americano que estava caçando freneticamente os nazistas no pós-guerra, publicou uma nota oficial dos nomes de algumas vítimas do Holocausto que morreram nos campos de extermínio. Uma cópia dessa nota estava afixada no restaurante em que Hanna trabalhava.

Seu mundo desabou.

Paul Spzilman e Judith Szpilman, pais de Hanna. Yossel, Deborah, Shmuel e David Szpilman, irmãos de Hanna, todos mortos no campo de Sobibor em 1942. Aquele comboio que partiu do gueto os levou para as câmaras de gás de Sobibor. Hanna ajoelhou-se na rua e começou a chorar, ao mesmo tempo, gritava.

Não havia túmulos e nem lápides para depositar seu sofrimento diante da perda da família inteira. Por meses ela só chorava. Até tinha guardado a Menorah no armário. Não comia. Tinha perdido a fome. Foi muito duro o ano de 1948 para Hanna, ela também fora demitida de seu emprego como garçonete.

Decidiu que não queria mais ficar em Cracóvia. Pegou o resto de suas economias e partiu. Antes, porém, foi a um lindo jardim em sua cidade natal, um que ela gostava muito de ir com seu pai e Yossel quando era apenas uma garotinha. Escolheu a árvore mais bonita e vistosa e lá depositou seis pedrinhas, cada uma representando um membro de sua família e nunca mais voltou àquele lugar.

Havia rumores por todos os lados que soviéticos e americanos estavam disputando partes do mundo. "Eles querem dividir o mundo em dois", era o que se ouvia pelas ruas. Hanna não queria estar tão perto assim dos soviéticos, eles eram bem mais cruéis que os americanos. Ouvira dizer que a União Soviética era uma verdadeira ditadura sanguinolenta. Não queria viver em mais um regime terrível. Procurou ir o mais para o ocidente possível, mas se viu sem dinheiro, sem comida e sem abrigo. Estava em Stuttgart, Alemanha.

— Eu tenho um filho. — Ouviu Caleb dizer.

Ficou surpresa. Um filho? Será que estava casado? Nada disse.

— Ele se chama Leonhard. Vive comigo e com meu pai aqui em Stuttgart.

— E a mãe dele? — questionou Hanna.

— Faleceu quatro meses depois que ele nasceu.

— Sinto muito.

Hanna, por um instante, ficou calada e imaginando como e onde Caleb teria arrumado uma esposa. Ele estava preso em um campo de concentração. Será que havia conhecido outra garota lá? Uma que a substituira nos serviços domésticos da Casa dos Soldados em Hoffnung. Ficou matutando.

— Vi que estava procurando uma vaga naquele albergue. Você não tem onde ficar?

— Não. Não tenho nada. Nem dinheiro, nem casa, nem comida. Estou sozinha no mundo Caleb. — Hanna deixou pequenas lágrimas escaparem de seus olhos acastanhados.

— Então venha comigo. — e o rapaz estendeu-lhe a mão novamente.

*Menorah - castiçal com sete pontas. Símbolo do judaísmo.

Renascenças da GuerraOnde histórias criam vida. Descubra agora