4 - Edith

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O pedido e a carta

Strauss estava com um carro que Edith não soube reconhecer. Ela se sentou no banco da frente e sentiu as mãos ásperas do ex-sargento em seu colo. Olhou para ele.

O passeio naquele dia foi diferente. Chegaram ao rio Neckar à 549 quilômetros da colina Bernhartshöhe em Stuttgart. Strauss colheu uma rosa e deu-a a Edith que sorriu agradecendo. As margens do rio reluziam pontinhos brilhantes do Sol escaldante daquele verão. Strauss segurou a mão de Edith e a abraçou. Ela retribuiu o abraço.

Enquanto esteve se escondendo dos Aliados nos primeiros anos pós-guerra, Strauss estava em Dresden na casa de seu tio paterno Bernd Strauss. Os dois ficaram muito próximos desde então e, por isso, o sobrinho visitava o tio com certa frequência.

— Esse automóvel é do tio Bernd. Ele disse que eu poderia ficar com ele. —  disse Strauss.

— Por que ele lhe daria um carro? — Edith ficou curiosa.

— Ele está velho e muito debilitado. Não está mais em condições de dirigir. Além disso, fica mais fácil para eu ir visitá-lo.

— Isso é verdade. — comentou Edith.

— Bom, eu não vim aqui falar sobre o tio Bernd. - ele disse se soltando do abraço e segurando as mãos de Edith, ficando de frente para ela.

— Sobre o que você veio falar? — Edith piscava os olhos em um ritmo mais acelerado que o comum.

— Quero lhe fazer um pedido.

— Por favor.

— Case-se comigo?

Edith ficou surpresa. Deixou a rosa cair no chão, sem querer. Sua boca ficou entreaberta e os olhos arregalados.

— Estou esperando sua resposta. — ele insistiu.

Ela ficou imóvel. Sua respiração estava mais acelerada. Suas pernas pareciam não se prender ao chão. Será que seria capaz de viver um outro casamento? Dormir ao lado de outra pessoa que não fosse Wichard? Se entregar à outro homem?

Strauss era 15 anos mais novo que ela. Poderia ser seu filho. O que diriam as outras pessoas? O padre, Samuel, seu neto Leonhard...

— Querida? — era Strauss de novo.

— Sim! Eu aceito.

O rio Neckar presenciou um beijo apaixonado entre eles naquela tarde. O amor renasceu no coração de Edith. As boas Renascenças.

Antes de irem para a casa dos Lipschutz buscarem Samuel, passaram pelo cemitério de Stuttgart para visitar o túmulo de Lisie. Edith deixou a rosa que Strauss lhe dera em cima da sepultura. Schuzy estava lá. Ela acariciou os pêlos do gato que ronronou. A flauta transversal também estava lá, já corroída. Edith chorou, soluçando.

Wichard não tinha um túmulo. Seu corpo foi queimado após o suicídio. Apesar de ter sido um verdadeiro carrasco, Edith ainda pensava nele. Ele deixou uma carta que estava guardada no criado mudo de Edith até aquele presente momento e ninguém sabia disso, apenas ela.

A carta de Wichard Schmidt:

É com muita coragem que me dispenso dessa vida. Eu sou um homem honrado e sempre serei, mesmo após a minha morte. Hoje faço isso porque não suporto a ideia de viver em um mundo onde minha princesa não existe. Se ela não está aqui, por que estarei? Eu honrei meu nome do início ao fim. Cumpri meu papel ao ajudar a pátria. Eu vivi a pátria. Eu sou a pátria. A vida é injusta com tudo e todos. A vida amargurou milhares de judeus pelo mundo e, agora, ela me amargura também. Onde estará minha princesa? Com certeza ao lado de Deus, sorrindo como só ela sabe. E por que ela está lá? Por culpa minha. Deus a enviou para mim e eu a enviei de volta para ele e, por isso, não mereço continuar aqui. Tudo que fiz aqui foi para um bem maior. Eu acredito fielmente que a Alemanha será tudo que sempre idealizei. Mesmo que o querido Herr Führer não esteja mais aqui entre nós. O reich será consolidado. Os Aliados cairão. Os judeus serão totalmente aniquilados, mas eu não estarei aqui para ver isso. Não estarei porque minha filha não está. Porque eu permiti que ela não estivesse. Como dói em meu peito. Saber que fui eu o responsável por matá-la. Tudo seria tão lindo e perfeito se não fosse por um judeu desgraçado que surgiu das sombras para atormentar-me a paz. Ele sim deveria ter morrido. Infeliz. Um judeu não merece viver. Não merece procriar e nem merece as bênçãos de Deus. Um judeu é uma poeira debaixo dos pés dos arianos e essa poeira acabou com a minha vida e a da minha filha. Como eu queria voltar no tempo e não ter disparado aquele tiro. Como eu queria estar brincando com minha princesa e ouvindo-a tocar a flauta. Eu queria tantas coisas às quais hoje não posso mais. A morte me espera. Sempre esteve me esperando. E agora ela clama por mim e eu irei até ela. É com muita coragem que irei. Pois sou e sempre serei o comandante Wichard Schmidt. Mesmo que não haja mais Hoffnung e nem mais judeus para eu aniquilar. Eu sou e sempre serei o comandante. Como último pedido, se é que posso dizer assim, desejo que meu corpo seja queimado. Não quero ninguém velando sobre minha carcaça. Não quero flores e lápides com meu nome. Quero apenas abraçar a morte. Silenciosamente e em paz.Wichard Schmidt.

Estavam indo para a casa dos Lipschutz para buscar Samuel e dar a notícia a todos. Preparariam um jantar delicioso para comemorar o noivado. Estavam felizes e queriam compartilhar aquela felicidade. Mas, a alegria de Edith se dissipou rapidamente. Será que Caleb teria a coragem de substituir sua amada filha? Será que seu neto iria chamar outra pessoa de mãe?

— Leonhard, venha aqui com a vovó. — ela pegou o menino pelo braço e o retirou de perto de Hanna.

Fitou Hanna com fúria e olhou para Caleb em sinal de desaprovação.

Renascenças da GuerraOnde histórias criam vida. Descubra agora