Quando eu trabalhava como coroinha numa paróquia em Minnesota, eu tinha diversas funções, acender e apagar as velas, cuidar do vinho, limpar o confessionário, entre outras. Mas uma das que eu mais gostava era cuidar do “Quadro divino”. O quadro divino era uma interação criada por nosso padre Mathew, onde os fieis vinham, escreviam seus maiores pecados, medos e fraquezas em uma folha de caderno, dobravam e prendiam num quadro de recados que o próprio padre havia comprado. Minha função era pegar esses papeis, levar até a fornalha da igreja e queima-los para que sua fumaça fosse vista pelos fieis ao final da missa e eles pudessem (de forma figurativa) se livrar daqueles problemas. Mas não era exatamente isso que eu fazia. Os papéis só eram queimados no final da missa e eu tinha muito tempo disponível enquanto o padre dava o sermão. Neste meio tempo, eu gostava de pegar os papéis e ler um por um para ver de quais problemas as pessoas queriam se livrar. Não me orgulho muito disso, afinal é uma grande invasão de privacidade, mas eu era um adolescente muito inconsequente na época.
A maioria dos relatos era de traições, furtos ou pensamentos ruins, mas houve um dia em que eu li um que jamais sairá da minha mente. Já faz muito tempo, mas lembro de praticamente cada palavra. Era assim:
“Meu nome é Thomaz Andrew. Sou casado, tenho 42 anos e moro em Minnesota com minha mulher e filhos. Estou escrevendo aqui como uma tentativa de redenção. Não posso confessar esse pecado ao padre. Ele jamais me olharia com bons olhos novamente, afinal o que eu fiz foi algo monstruoso. Há alguns anos, tive um caso fora do casamento com uma jovem de Dakota que veio passar as férias aqui. Não foi algo que durou muito, digamos assim, não excluindo a culpa que senti por tê-lo feito. Jamais havia traído minha esposa antes e pretendo jamais traí-la novamente, mas às vezes a carne é fraca e acabamos cedendo a certas tentações. O nome da Jovem era Danielle, ela tinha 22 anos e pouco juízo na cabeça, mas era uma menina doce e com ideias incríveis sobre o mundo. Meio que me apaixonei por ela, mas eu já era casado e não podia abandonar toda uma vida por ela. Então após algumas semanas nos encontrando escondidos, decidi terminar com tudo isso antes que alguém descobrisse. Danielle voltou para Dakota e eu voltei 100% para minha família. Porém, alguns meses depois, numa manhã ensolarada de domingo, acordei com alguém batendo a minha porta. Era Danielle e ela estava com uma barriga de gravida. Aquilo me fez entrar em pânico, pois já havia deduzido tudo o que havia acontecido. Eu e Danielle havíamos sido descuidados algumas vezes e agora ela estava gravida, de mim! Não a deixei falar, puxei-a pelo braço e levei até a minha caminhonete. Não podia arriscar que minha esposa a visse. Então comecei a dirigir. Danielle disse que não queria dinheiro, só queria que seu filho pudesse ter um pai. Ela era tão doce e inocente... Meu deus. O que foi que eu fiz?
Continuei dirigindo até que chegamos a uma parte mais isolada da floresta que cerca a cidade. Um caminho de terra pouco acessado. Conversei com Danielle por mais de duas horas, tentando convence-la a abortar, mas ela não queria isso. De certa forma havia pego amor por aquela criança e estava decidida a tê-la. Eu não podia permitir que aquilo acontecesse, se ela pedisse um teste de DNA ou algo do tipo, eu estaria ferrado. Minha esposa, meus filhos... Eu não podia perdê-los. Então fiz o que tinha que ser feito, Danielle não tinha parentes próximos, talvez alguns amigos na universidade em Dakota, mas ninguém intimo a ponto dela discutir sobre isso. Tentei convence-la uma ultima vez a abortar, mas ela estava relutante, então dei a volta, peguei a espingarda de caça na caminhonete e aponte para ela. Ainda posso ouvir as palavras que ela disse ao cair de joelhos implorando pela vida. Disse que iria embora, para eu não me preocupar com aquilo. Que eu nunca mais ouviria falar dela. Mas eu não podia correr o risco. Pedi uma ultima vez que ela abortasse. Hank, meu amigo de caça, era cirurgião, ele poderia dar um jeito nisso. Mas ela respondeu que jamais iria se livrar da criança. Então eu a levei para mais fundo na floresta e pedi que aguardasse de costas numa arvore, tomei distancia e apontei a espingarda, quando estava prestes a disparar ela se virou pra mim. Não havia mais lagrimas em seus olhos, apenas ódio. Um ódio tão profundo e intenso que parecia vir da parte mais obscura de sua alma.
- Pode tirar a minha vida, mas essa criança vai viver... Para a sua desgraça, ela vai viver. – Danielle disse e como que em uma maldição uma forte ventania correu pela mata em seguida. Meu chapéu chegou a voar. Eu deveria ter parado naquele momento... Mas eu estava obstinado, então enquanto aqueles olhos que transbordavam ódio me encaravam num olhar gélido e mortal, eu disparei.
O tiro duplo da escopeta ecoa pela minha mente até hoje. Lembro vividamente daquilo, dela tombando enquanto a vida deixava seus olhos, mas não o ódio, o ódio ainda estava lá quando eu a enterrei.
"mas essa criança vai viver... Para a sua desgraça, ela vai viver" a frase corria pela minha cabeça num loop infinito. Eu precisava me certificar, por conta disso atirei na barriga... Meu maior pecado, minha sina, a cruz que carregarei comigo até o final dos meus dias.
A aquela altura eu havia chegado ao final da folha. Estava horrorizado com a história. Conhecia bem o Senhor Thomaz, era um membro ativo da igreja e sempre dava ofertas altas na hora do dizimo. Mas para a minha surpresa, a história não acabava ali. No verso da folha havia mais coisas escritas.
“Havia decidido esquecer essa história. Apesar de sofrer eternamente com os efeitos dela, tentei voltar a viver normalmente e deu certo, por alguns anos. Mas nos últimos dias, coisas estranhas começaram a acontecer. Todas as noites eu acordo escutando um choro de criança ao longe. Quando pergunto para minha mulher ela diz não escutar nada. Embora eu continue ouvindo insistentemente o choro que consegue ser agudo e grave e me tirar até do sono mais profundo. Minha alma treme e meu corpo se arrepia com isso. E as coisas só pioraram com o passar dos dias. O choro agora era constante durante as madrugadas. Dormir tem se mostrado uma tarefa quase impossível. Ontem à noite fui até a cozinha após acordar com o choro e encontrei pegadas infantis que formavam mini poças de sangue que iam da porta da sala até a porta do meu quarto. Aquilo me fez sentir um medo e um pavor que nunca havia sentido antes. Peguei um balde e um esfregão e limpei tudo. No balde a água suja misturada ao sangue formou uma coisa grotesca de ser ver. Mas nada foi tão grotesco quanto o que eu vi ao jogar o balde de sangue na pia. Um feto já em estado bem avançado saiu de dentro do balde. O sangue escorreu pelo ralo, mas o feto se manteve na pia. Ele de alguma forma estava vivo e chorava de forma tão perturbadora e melancólica que parte da minha alma e sanidade morreu ao ver a cena. Eu o enrolei num pedaço de pano e o queimei no quintal. O som que ele fez enquanto o fogo o consumia... Deus, não é o tipo de coisa da qual se esquece. Ainda que no meu leito de morte, vou me lembrar daquilo. Se de fato existe um Deus, imploro por seu perdão. Acredito ter sofrido o suficiente e sinceramente não sei por mais quanto tempo vou aguentar, a saídas mais fácil parece cada vez mais a melhor opção. Deus... Me perdoe”.
A carta terminava assim, mas a história ainda não havia acabado. Alguns dias depois daquilo o Sr. Thomaz foi encontrado morto em sua residência. Enforcado sobre a própria cama com o lençol. O lugar onde vivíamos era bem pacato, então noticias do tipo geravam muita discussão.
Muitas pessoas não acreditaram quando o delegado deu sua versão sobre o que encontrou na cena do crime, mas eu acreditei afinal eu já conhecia a história.De acordo com o delegado, a mulher do Sr. Thomaz havia acabado de voltar de viagem quando encontrou o marido enforcado com o próprio lençol e uma poça de sangue sobre a cama. Ao ver aquilo ela ligou desesperada para delegacia. Quando os policiais chegaram ao local eles analisaram todo o perímetro e o delegado jura que junto à poça de sangue, sobre a cama, havia um feto ainda vivo.
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• Necrotério •
Horrorcontos, histórias reais e lendas de terror em apenas um livro. criado em: 29/11/2017 [#274 em Terror - 30/11/2017] [#83 em Terror - 02/12/2017] [#68 em Terror - 03/12/2017]