O ciclo do despertar

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Despertei. Não me lembro de onde eu estava ontem e muito menos do que fiz. Paredes brancas são só o que consigo ver. Quanto mais eu tento me lembrar, mais minha cabeça dói. É como se meu cérebro não quisesse lembrar de algo.

Tento me levantar, mas não consigo usar minhas mãos como apoio. Elas estão... Amarradas?!

- Tem alguém aí? – Grito. – Socorro! – Mas é em vão. Escuto algumas vozes abafadas do outro lado, mas acho que não podem me escutar.

Eu só posso ter sido sequestrado. Droga, por que não consigo me lembrar?

- Por favor, eu tenho uma filha que precisa de mim... – Nada. Só o silêncio como resposta.

Sento junto a uma das paredes de meu cárcere, um pouco macia demais para uma parede. Fecho os olhos e tento adivinhar o que pode ter acontecido. Começo pela minha memória mais recente. Eu estava em casa. Havia acabado de brigar com minha esposa Jane. Algo sobre não conseguirmos mais pagar as contas. Droga, não consigo lembrar direito, parece que foi há anos.

- Café – Diz uma voz suave e empurra uma bandeja com ovos mexidos por baixo de minha porta.

- Hey, HEY! – Grito indo em direção à porta. – Pode me dizer o que está acontecendo? Por favor, eu tenho esposa e filha. Você tem que me soltar. Por favor.

A pessoa que estava do outro lado da porta não se moveu, pude ver sua sombra por baixo na porta. Ela pareceu ponderar um pouco sobre o assunto e respondeu em seguida:

- De novo isso, Senhor Adrian? Achei que tínhamos resolvido da ultima vez.  – Tão logo respondeu se afastou da porta, pude ouvir seus saltos altos se afastando.

- NÃO! Por favor, não me deixe aqui. – Mas já era tarde. Ela tinha se afastado.

O que ela quis dizer com aquilo? Eu já havia conversado com ela antes? Eu não me lembro. Mas aquilo só podia significar uma coisa, eles estavam me alimentando. Não estavam pensando em se livrar de mim. Provavelmente devem estar ligando para Jane agora pedindo alguma quantia absurda de resgate. A qual ela não vai poder pagar... Estamos falidos. O que eles vão fazer quando descobrirem?

- Olá. - Diz uma voz infantil vinda de perto de mim.

- Quem está aí? – Pergunto enquanto olho por todo o cômodo, mas não vejo ninguém. A iluminação é fraca. Se limita apenas a pouca luz que entra pela fresta da porta.

- Você é meu pai? – Pergunta a mesma voz. Uma voz estranhamente familiar.

Ao cerrar os olhos consigo ver uma silhueta pequena no canto do quarto.  Parecia ser uma criança. Sinto um arrepio macabro percorrer cada centímetro do meu corpo.  Nunca tive medo do sobrenatural, mas naquelas condições... Qualquer um teria.

- Papai? – A criança agora vinha em minha direção. Não passava de uma sombra pequena se movendo no canto do quarto. Como um espirito que perturba um jovem adormecido.
Conforme a sombra se aproximava, podia ver com mais clareza, mas o medo me fazia recuar. O que diabos estava acontecendo ali?

- Papai, me abraça? – A coisa agora estava tão próxima que pude sentir o cheiro de carne queimada que ela exalava.
Comecei a gritar desesperadamente enquanto esmurrava a porta. O suor frio que o medo me proporcionou caia sobre meus olhos e pude sentir a ardência.

- Me ajudem. Tem algo aqui comigo! Deus me ajude! – Gritei a plenos pulmões. Neste momento eu não olhava mais para trás, apenas chutava a porta alheio a coisa que se esgueirava atrás de mim.

Pude perceber alguém se aproximar da porta. Dessa vez era um homem e a julgar por suas passadas, era enorme.

- Senhor Adrian, por favor, acalme-se. Não há nada aí, nós dois sabemos disso. Está tudo na sua mente. – Respondeu ao meu pedido de socorro.
Olhei para trás e ele estava certo. A criatura não estava mais lá.

- Pode me explicar o que está acontecendo, por favor?  Eu não quero morrer. – Eu tenho uma esposa e uma filha.

Após alguns segundos de silêncio ele respondeu:

- Vou chamar o Dr. Frederick.  – E se afastou.

Quase implorei para que ficasse, não queria ficar sozinho, não ali. Aquela coisa podia aparecer novamente, e eu simplesmente não podia encara-la. Após alguns minutos senti alguém se aproximar.

- Sr. Adrian, como vai nessa manhã? – Perguntou uma voz simpática e calorosa.

- Eu... Eu preciso saber o que está acontecendo. Por favor. Minha mulher e minha filha devem estar preocupadas.
O homem que só podia ser o Dr. Frederick puxou o ar como quem vai dar uma noticia dolorosa.

- Sr. Adrian, o que tenho para te falar não é fácil. Mesmo passando por isso pelo menos uma vez por semana com o senhor nos últimos vinte anos.

- Vinte anos? Você está louco? – Eu simplesmente não entendia. Como se não bastasse todo aquela caos, minhas narinas se encheram novamente com o cheiro de carne queimada.  Ao olhar para trás vejo aquela criatura novamente, no outro extremo do quarto.

- Por favor, abra a porta. Tem algo aqui comigo! –

- Não, senhor Adrian, não há nada aí. – Respondeu o Dr. Com uma frieza estranha. – Seu nome é Adrian P. Charles, você foi condenado pelo homicídio de Susan F Charles, sua filha.

- Não, não, não. – Minha mente estava a ponto de explodir. A criatura se rastejava para cada vez mais perto de mim. Agora eu podia ver seu rosto. O que um dia havia sido o belo rosto de uma criança, agora não passava de carne podre e carbonizada.

- Na noite de 24 de Outubro de 1997 o senhor foi detido após incendiar sua casa com sua filha e esposa ainda dentro.  – Continuou o Dr. – Por sorte sua esposa sobreviveu, mas sua filha foi carbonizada ainda viva. Desde então o senhor está internado aqui. Na prisão psiquiátrica do San Francisco.
Tudo o que o doutor falava não fazia sentido... Nada daquilo fazia.

- Papai... – Disse a criatura agora me encarando com seus olhos cegos, queimados pelo fogo. – Foi quando ela me abraçou e tudo fluiu pela minha mente como se fosse água. Eu me lembrei, das brigas e discussões, do quanto eu queria que o sofrimento da minha família acabasse. Lembrei dos gritos da minha pequena Susan enquanto ela esmurrava a porta de seu quarto, implorando para sair e do cheiro de carne queimada que adentrou minhas narinas momentos depois... Meu deus. O que foi que eu fiz?

Eu só não tenho forças para continuar agora que me lembro. Caio de joelhos, a criatura já não estava mais lá, ela nunca esteve. Estava apenas na minha mente. Era a culpa. Sinto as forças deixarem meu corpo. O Dr. Ainda falava, mas eu já havia deixado de escutar. Minha visão fica turva e eu desmaio.

Despertei. Não me lembro de onde eu estava ontem e muito menos do que fiz. Paredes brancas são só o que consigo ver. Quanto mais eu tento me lembrar, mais minha cabeça dói, é como se meu cérebro não quisesse lembrar de algo.

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