Capítulo 14- Diga-me Como Sentir

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Em meio ao desespero e ao medo, vi a imagem de Tracy me agarrar forte e gritar que estava tudo bem, que ele iria cuidar de mim. Como fui parar em sua casa, eu não sei. - não lembro. - mas parecia que eu estava sendo salvo, salvo do inferno por um anjo.

Minhas pernas estavam travadas e eu não conseguia falar, apenas derramava lágrimas e mais lágrimas.

-Consegue me ouvir? Vai ficar tudo bem, acredite! Carter, eu estou aqui agora.

Eu estava em coma, e só ouvia os ecos da sua voz. Meu coração estava à mil, parecia querer quebrar os ossos e rasgar a pele que o limitava à meu corpo.

Tracy estava me carregando. Vi  ele me pôr debaixo do chuveiro frio e ligar a torneira. Demorou, mas eu consegui acordar e balançar a cabeça. Me libertei da paralisia e o abracei instintivamente.

-Tracy... Socorro.

Depois não lembro como chegamos a cozinha. Ele me servia um chá quente e me emprestou algumas roupas que ficaram muito grandes em mim.

-Então, me conta como você foi parar naquele buraco com aquelas cobras... As amordaças nas mãos e na boca?

Engoli em seco. Não podia contar a ele sobre QR. Eu estaria o colocando em risco também.

-Sequestro relâmpago. - inventei na hora. - Eles cobriram meu rosto com um pano preto e me meteram dentro de um carro. Parece que me deram alguma injeção. Eu apaguei e quando acordei, voilà!

Ele balançava a cabeça, ainda não convencido.

- E o que fazia essas horas da noite na estrada?

- Eu costumo correr à noite. - respondi. - E você? O que fazia?

Perguntei, tentando mudar o assunto.

- Eu estava voltando de uma festa e o pneu do meu carro furou. Tinha um de reserva, mas precisava de algo que me ajudasse a retirar o outro. Eu acabei vendo a cova e fui lá por curiosidade. Ainda bem.

Ele sorri. Presto atenção em seus lábios rosados, quase vermelhos e dentes brancos. Sorriso de lado, cabelos no rosto. -  o que o deixava ainda mais lindo. - usava uma camiseta cinza da qual deixava desenhado seu corpo atlético. Prestei atenção em cada mínimo detalhe seu e seus traços inconfundíveis que passei anos estudando. A toalha em cima da cadeira e o livro de física em cima da cama. Era uma casa legal, luxuosa, espaçosa e sem divisão de cômodos. Eu me sentia seguro perto dele, imaginava que ninguém poderia me ferir ali, porque teria ele para me proteger. Confortante esse meu pensamento, e eu não queria me livrar dele nesse momento. Embora precisava, e muito. Não queria, assim como não queria me iludir sobre alguma chance de "nós" existir.

-Você foi legal comigo. Obrigado Tracy.

Eu me levanto e ando direção a porta.

-Aonde você vai?- Tracy pergunta.

-Embora. Pra minha casa. - falei.

-Quer saber? Não precisa ir. Fica aqui, dorme aqui hoje.

Achei que nunca me pediria isso.

-Não sei se é uma boa idéia. Precisa de privacidade, eu não quero incomodar.

-Eu estou pedindo. Além do mais, está tarde. Nenhum taxi vai te atender agora. Vem comigo.

Tracy me estende as mãos e sorri. Eu ainda não acreditava que isso estava acontecendo. Entre todas as cenas que eu havia imaginando, essa não estava no meu inventário. Não havia sensação melhor.

Quando agarrei as mãos de Tracy, um choque percorreu todo o meu corpo, se concentrando em meu coração, que parecia quase explodir dentro de mim. Então ele me guiou até sua cama e eu deitei.

-Tracy, eu...

-Caramba, Carter! Custa aceitar? Fez isso comigo quando precisei, lembra?

-Não achei que lembrasse.

-Acho que você que esqueceu.

-Tracy... Só não me deixa sozinho hoje. - minha voz saiu rouca.

-Eu prometo.

Me virei para o lado da cama. Senti ele abrir o edredon e enfiar-se dentro dele.

Só estava poucos centímetros longe de mim.

Senti o cheiro do seu travesseiro. Ainda cheirava à aquele perfume tonteador, que sempre me fazia fechar os olhos, e agora não foi diferente.

Imaginei não poder tê-lo por completo, e nenhum terço seu. Nenhum traço se quer...

E isso acabava comigo, derrubava tudo que eu havia construído por dentro e o desespero insistia em sair de dentro de mim. Tentei mantê-lo e sufocá-lo. Sabia que se transparecesse iríamos começar uma conversa que pra mim não teria sentido.

Ele diria que nunca iria ficar comigo, que amava Jesse mais do que tudo. E sua agulha me perfuraria outra vez e me faria adormecer, e eu teria que voltar dos mortos de novo.

Faria eu tomar seus remédios mais de uma vez, e eu novamente estaria trancado num quarto escuro e frio, tentando entender o por quê de estar ali... pra depois ter de começar tudo de novo. Não, eu não podia...

Uma lágrima caiu de meu rosto e sem querer, mesmo que ainda sufocado, meu desespero veio à tona.

Tentei conter, pôr tudo de novo para dentro, mas senti Tracy merxer-se na cama e quando dei por mim, ele tinha me abraçado.

Ele agora não estava nenhum centímetro longe de mim.

Estávamos no mesmo lençol. Sentia suas pernas encostarem nas minhas e seus braços em volta dos meus, me segurando. Sentia sua pele fazer a minha se arrepiar e sua respiração era quente e confortante.

***

Dormi poucos minutos, mas tive a impressão de ter dormido horas. Tateei a cama em busca de seu corpo quente e avassalador, não encontrei.

-Tracy? Olá?

Levanto da cama e ando descalço pela casa chamado por ele. Notei logo à frente um bilhete escrito num post-it colado na mesa.

"Precisei sair. Jesse quis ir ao cinema de última hora, acredita?"

-Prometeu não me deixar hoje.

Digo a mim mesmo, largando o bilhete. Como me sentia um lixo descartável naquele momento. E a capacidade que ele tinha de me esquecer tão rápido parecia proposital. Até quando eu poderia agüentar isso? Tracy não me merecia, eu sabia disso, mas eu não buscava saídas, eu não tinha saídas, não pestanejava, não procurava fugir, não sabia mentir pra mim mesmo.

Corri desesperado ao banheiro. Gritando com uma falta de ar insuportável. Agonia. Algo trancava minha garganta.

Prouro insistentemente por algo cortante e acho dentro de uma caixinha umas duas ou três lâminas de Gillete.

-Prometeu não me deixar sozinho hoje.

Faço um corte profundo em minha coxa direita. O sangue aparece quase que imediatamente.

-Prometeu.

E faço outro corte, novamente na mesma perna.

-Você prometeu!

Grito e corto outra vez a perna. A dor que sentia por fora era suportável perto da dor que sentia por dentro.

Choro gritando que o odiava e repito que ele havia prometido.

Tudo, tudo era culpa dele. Não, não poderia existir em minha vida. Nunca... Nunca.

Meus dedos estavam cheios de meu sangue. Eu estava fazendo um estrago em mim mesmo.

Alguém me puxou para trás, o que me fez larga a Gillete no chão. Continuei gritando descontrolado enquanto a pessoa tentava me conter, segurando fortemente meus braços, não vacilando enquanto fazia força para escapar deles.

-Não! Não, não, não, não, Tracy! Prometeu pra mim. Sério. Prometeu pra mim.

-Para com isso! Para agora! Chega!

Ouvi a voz rouca de Zac. Era ele quem estava me segurando. Continuei o meu ataque de desespero, não consegui parar, até que Zac me derrubou no chão, segurou meus braços para trás com uma de suas mãos, enquanto a outra apertava a minha cabeça no chão do banheiro.

-Pare. - sua voz era trêmula e autoritária. - Pare, por favor!

Fui me alcamando aos poucos, até que o desespero cessou e eu pude respirar novamente.

Zac me levou até uma cadeira e fez um curativo em mim. Me sentia culpado por ter feito toda a cena, mas não era culpa minha.

-Como me achou aqui?- perguntei.

-Eu te ligava, você não atendia. Segui o GPS. Não me surpreendido quando meu carro parou aqui em frente. -sorri sem graça, forçado, irônico. - Tracy Stuart. Olha o que ele está fazendo com você.

-Pior, olha o que eu estou fazendo comigo.

-Não vai precisar levar ponto. -fala convicto.

-Não sabia que queria ser médico.

-Não quero, mas fiz um curso de enfermagem, foi meio que pra fugir das cobranças do meu pai.

-Pelo menos você tem um pai. Eu não sei nem onde que anda o meu.

Zac acabou o curativo. Ainda doía um pouco. Notei como seus olhos ficavam bonitos na luz, mais claros. Eram azuis aqua e depois ficam uma espécie de verde quase castanho.

-Vem. Eu quero te mostrar um lugar.

***

Era extremamente lindo. Zac tinha me levado a um campo deserto onde as gramas balançavam conforme o vento soprava. Estávamos na caçamba da sua pick up. Zac tragava um cigarro. As estrelas do céu eram brilhantes e a lua ali parecia ser maior.

Incrível como em meio a tanta escuridão, eu conseguia ver fragmentos de luz. Era isso que me fortalecia. Eram essas coisas que me faziam ficar e não ir, persistir e não desistir.

-Por quê?- perguntei.

- É pra onde eu venho quando não tenho pra onde ir- respondeu. - Você não tinha pra onde ir.

- Por que me trouxe aqui?- repeti.- Por que eu? Mudou tanto em tão poucos dias, Zac.

Zac ficou em silêncio. Decidi não fazer mais perguntas e deixá-lo em paz.

- Eu vi o diabo, Carter. Eles estava olhando nos meus olhos.

Zac finalmente se pronúnciou. Ele me olhava.

Eu não olharia Zac como estava olhando se eu não soubesse os problemas que tinha em casa com a mãe. Era prostituta e se envolveu com um agiota.

-Atira.

Ele disse que foi o que ouviu da mãe quando o namorado apontou a arma  em direção a cabeça de Zac depois de uma briga feia.

-Atira.

Foi o que ela respondeu.
Ele apontou  a arma, mas não precisou atirar para que Zac morresse. Ele apontou, mas ela puxou o gatilho, ela o segurou e ele morreu.  Vi Zac chorar naquele momento. Isso era assustador, embora quis ver isso, esperei uma vida e esperaria dez se fosse preciso.

- Eu sei que te fiz muito mal, Carter. Eu sei que eu fui os seus motivos, sei que você me odeia, eu sei que tudo que eu fiz doeu e essa ferida ainda não cicratizou. Você não sabe o quanto eu me odeio por isso, não sabe quantos me odeiam por isso.

De novo. De novo pensei que aguentaria, que eu não iria fraquejar e de novo fraquejei.

Passei a mão no ombro de Zac e ele tremeu. Tentei e ele se esquivou.

-Zac...

-Não.

- Por favor...

- Vai ter medo de mim.

-Eu não tenho medo de você, não mais.

Zac me encarou. As lágrimas se esfriaram em seu rosto quando o vento gélido soprou. Ele fez uma cara de repulsa.

- Não tem... -tenta um sorriso.

Levanta e passa a andar pela caçamba, desabotoando aos poucos a camiseta.

- Você não tem medo de mim? É o que todos dizem: "você é tão lindo",  " Seus olhos são tão azuis, Zac", "Seu corpo é perfeito".

E era mesmo, mas parecia que todos esses elogios faziam Zac sentir nojo, uma espécie de pena de si mesmo, uma vontade incontrolável de se livrar, de não ser mais ele.

-Não tem nojo...

Zac tira a camiseta e vira as costas pra mim. Me assusto ao ver que foi marcado à ferro quente nas costas, quase no ombro. Tinha um "QR" cravado nele por toda a vida.

- Qualidade Racional. - ele disse.- Um selo de garantia. Eu era vendido... Desde os 13 anos...

Fiquei em silêncio tentado digerir tudo. Ele ainda estava de costas pra mim.

-Sente medo agora!

Ele gritou estrondosamente e me fez estremecer dos pés a cabeça.

Levantei sem hesitar e num impulso já estava abraçando Zac, com intuito de protegê-lo. Agarrei com força. Ele virou-se e me abraçou.

-Eu não medo de você.

Fiquei ali no calor de seus braços. A tela do meu celular ligou. Mensagem.

"Olhe por cima do ombro. Está sendo observado agora".

Esse QR me assustava, esse tirava meu sono, era desse que eu estava fugindo, era dele que eu tinha medo.

Desliguei a tela. Me sentia seguro ali. QR não queria me alcançar, queria mostrar que podia fazer se quisesse.

Abraçar Zac me dava forças.

Eu daria minha munição para ela e puxaria o gatilho se fosse necessário.

Hey guys! Estamos chegando na reta final de Coração Vingativo. O que estão achando? Quais suas teorias?

Coração Vingativo (RELEITURA)Onde histórias criam vida. Descubra agora